Um encontro com o vice-presidente chinês
Estive na China pela quarta vez em menos de dez anos. Desde 2004, minhas visitas sempre estiveram voltadas à consecução de pesquisas de mestrado e doutorado. Esta última ocorreu, entre os dias 20 a 31/05, a convite do Partido Comunista da China a um programa chamado “China nos Livros”. Reuniram-se pesquisadores, acadêmicos e jornalistas de 14 países diferentes. Pessoas voltadas, em suas áreas, à cobertura da China.
Uma profícua viagem de estudos que envolveu extensa programação de debates, mesas redondas e encontro com lideranças chinesas de todos os níveis. Entre esses encontros causou grande impressão a informal recepção oferecida no Grande Salão do Povo com o atual vice-presidente da República da China, Li Yuanchao.
Formalidade e informalidade
Antes do encontro fui avisado acerca da atenção concedida por Li Yuanchao às questões da América Latina. Exatamente duas semanas antes do encontro o vice-presidente chinês esteve na Venezuela fechando parcerias na área energética entre os dois países.
Todos conhecem a famosa formalidade chinesa a este tipo de encontro. Não esperava nada diferente, desde a preparação até a recepção em si. Tudo obedeceu ao jeito chinês de fazer as coisas. Só soubemos deste encontro pela manhã. O horário marcado à recepção foi às 17 horas. E às 17 horas, pontualmente, as portas do Grande Salão foram abertas. Um a um dos participantes foram cumprimentados por Yuanchao; cada um sentou em seus lugares previamente estabelecidos pelo cerimonial, assim como cada um recebeu um dispositivo informando sobre os participantes que ladeariam o vice-presidente da República.
Antes do encontro tratei de me informar acerca da carreira deste homem que poderá encabeçar a próxima geração dirigente da República Popular. Advogado, Doutor em direito, militante do Partido Comunista da China (PCCh) desde 1978. Antes do atual posto encabeçou o governo e o PCCh em Nanjing e Jiangsu, foi secretário nacional de organização até 2012. Um currículo muito comum entre os líderes do país: formação superior em todos os níveis, ex-governador de ao menos duas províncias e experiência no trabalho interno do PCCh. Um mandarim confuciano de altíssimo nível, diga-se de passagem. Algo nada incomum na seara do Estado e do PCCh.
A formalidade é quebrada nas palavras iniciais de nosso anfitrião. Agradecimentos, citação de nomes e trabalhos dos convidados. Sorrisos e disposição à troca de ideias. Gírias em inglês e brincadeiras que deixaram nossa interprete corada. Assim prosseguiu o restante da reunião em duas horas muito marcantes para todos nós.
Transições na América Latina e na China
Previamente fora acordado que seria impossível a todos os convidados emitirem questões. Logo, um representante de cada continente seria escolhido. Foi quase a natural a minha escolha como representante da América Latina e Caribe. Desde que saí do hotel, após um dia inteiro de reuniões com altos representantes do Ministério das Relações Exteriores, pus na minha cabeça que não poderia deixar passar em branco uma oportunidade única que estava para chegar.
Se fosse para me dirigir ao vice-presidente, que fosse evitando clichês, com extrema educação, inglês impecável e uma questão de fundo sobre conjuntura internacional e o futuro do socialismo. Desde que percebi o estilo do mandatário percebi que não viria uma resposta generalizante, puramente diplomática e repleta de tergiversações. Sabia que aquele homem para chegar onde chegou passou por inúmeras provas e disputas renhidas. Sabia que sua indicação para os sete que atualmente compõem o Comitê Permanente do Politburo do CC do PCCh teve forte oposição do ex-presidente Jiang Zemin. A resposta de Xi Jinpeng e Hu Jintao foi sua indicação ao cargo de vice-presidente da República. Oficialmente não é membro formal do referido Comitê Permanente. Porém é o oitavo membro informal, com grande prestígio. Tinha certeza de que algo de fundo viria da boca daquele homem.
Tinha sete minutos para me apresentar e elaborar uma questão. Fui o terceiro a falar e as respostas anteriores acerca das relações da China com a África e uma possível passividade chinesa diante dos acontecimentos no Oriente Médio somente me deram a certeza de que existe uma confusão entre jornalistas e “especialistas” em China: em sua maioria não compreendem que a noção de tempo aos orientais é diferente desta mesma noção a nós ocidentais. Tempo, história e guerra são quase o mesmo ideograma. E tenho clareza de que na mente dos chineses o tempo corre a favor deles. Sabem que um dia chegou ao fim os impérios mongol, romano e inglês. Um dia chegará a hora dos Estados Unidos.
Apresentei-me discorrendo acerca da minha jornada acadêmica, dos artigos e as relações e respostas que busquei, e busco em minhas pesquisas. Dei destaque à minha militância no Partido Comunista do Brasi. O vice-presidente fazia sinal positivo com a cabeça. Mas, como os nordestinos isso não é sinal de concordância. É sinal de atenção ao interlocutor.
Minha questão foi clara sobre a visão dele sobre a relação entre a transição vivida na China nos últimos 30 anos e a transição entre as ditaduras militares, passando pela violência neoliberal até hoje onde alguns países como a Venezuela e Bolívia, inclusive, advogam o socialismo. Busquei pontuar, sempre, o nefasto papel cumprido pelos Estados Unidos na região. Percebi mais um sinal de positivo com a cabeça.
Serventia ao horizonte socialista
Como disse, sabia que não viria uma resposta qualquer. Uma longa resposta de 20 e poucos minutos me aguardava. Após elogios à minha trajetória, Yuanchao foi direto ao ponto: “as ditaduras militares e o neoliberalismo somente serviram para demonstrar que o socialismo é o único caminho viável para a América Latina”.
Daí veio uma aula de estratégia e tática do movimento comunista internacional desde a Revolução Russa. “Cada país deverá encontrar seu próprio caminho ao socialismo”. Colocou, ironicamente, que “o povo chinês sempre foi incomodado com a influência exercida pelo modelo soviético”. “O próprio presidente Mao era o mais incomodado, nos dizendo sempre que deveríamos achar nosso próprio caminho de construção do socialismo”.
Calmo, afável, reto. Falou honestamente da necessidade de “fundir o marxismo com o pensamento de gigantes latinoamericanos como José Marti e Simon Bolivar”. Sobre o Brasil, deixou clara sua simpatia com a trajetória do Partido Comunista do Brasil, “partido irmão e fundado na mesma época que o Partido Comunista da China”.
Abriu um largo parêntese para descrever uma “longa conversa noite adentro com meu querido amigo Nicolás Maduro, onde pudemos trocar inúmeras opiniões sobre a atual situação do socialismo, como construir o socialismo e as razões da superioridade do socialismo diante do capitalismo”.
A condução da radicalização política e a economia
Estava digerindo sua visão de mundo, pensando no fato de o vice-presidente da maior nação do mundo ter encontrado tempo em sua conturbada agenda para receber-nos. Mas, sua resposta não tinha findado. Passou a falar exclusivamente na condução política de processos complexos. Deixando claro que sabia o que estava ocorrendo na América Latina, expressou que “existe uma radicalização em curso na América Latina e o sucesso dos movimentos e partidos que advogam o socialismo está na capacidade de conduzir essa radicalização de forma que a América Latina não seja vítima de uma apostasia, pois os interesses contrários ao progresso da região são poderosos”.
Não sei se o objetivo dele era transmitir um recado, mas para mim estava claro. Existem erros políticos, subestimação do inimigo, falta de base estratégica, falta de teoria revolucionária e péssimas experiências no âmbito da condução econômica nas experiências populares na América Latina. Subjetivismo cristão, caudilhismo de esquerda, ilusão de classe e falta de perspectiva diante de mandatos que estão a se encerrar, cuja falta de um partido político consequente faz-se sentir com força. Muita emoção e pouca razão. Essa é a América Latina cuja observação de Yuanchao deixa subentendida.
Por fim, o desafio de governar. Yuanchao comparou a experiência revolucionária chinesa, “uma tomada de poder pelas armas, em guerras prolongadas”, “enquanto um fenômeno novo ocorre no mundo, cuja América Latina é o principal laboratório de experimentação”. Continuou, “em seu continente partidos revolucionários estão alcançando o poder pelo voto”. Para ele, isso engendra o desafio de “governar melhor que os conservadores”. E governar melhor que os conservadores, para ele, “é não somente ser bom gestores políticos, mas mestres em matéria de economia”. Certamente retirou de Lênin a famosa frase de 1920 quando colocou que “em determinado momento, devemos discutir mais economia em detrimento da política”. De forma mais sofisticada, encerrou com a seguinte afirmação: “não devemos atropelar até a morte a economia pela política”.
Satisfação e comparações
Senti-me satisfeito, realizado após um encontro deste nível com uma pessoa cujas responsabilidades são difíceis de serem aferidas. Os desafios políticos brasileiros me tomaram de assalto logo em seguida. As comparações podem parecer ser desonestas, porém inevitáveis.
O sistema meritocrático chinês está a produzir e reproduzir políticos de alto nível, estadistas em grande parte. Homens e mulheres de larga visão, ampla cultura universal e conhecedores de seu arredor. Às vezes parecem arrogantes, mas não. Apenas sabem de seu lugar em seu país e no mundo. Tem de ser capazes de dar cabo a desafios impostos à China que envolvem uma batalha que pode decidir o próprio futuro da humanidade. O horizonte estratégico deles é completamente outro em relação ao que percebo nas figuras de Estado no Brasil. É outra história…
Eles se preparam, planejam e executam. Não podem dar-se ao luxo de recorrer a manuais para saber o que certas doutrinas permitem ou não. Buscam a verdade nos fatos, sabem onde querem chegar. Uma pergunta me assalta após sessões de debates com os chineses.
Afinal, onde o Brasil quer chegar?
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Doutor e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP. Autor de China Hoje: Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado (Anita Garibaldi/EDUEPB, 2012)