Cultura não-perecível e seus mata-burros
No debate sobre cultura, somos todos “culturais”: artistas, políticos, gestores, intelectuais, militantes, público. Sendo assim, ninguém está nele como consumidor, mas como produtor. O mundo no qual uns inventam e outros degustam já não existe mais. É passado. Hoje, existe muita gente e muitas organizações com urgência de inovação e capacidade para gerar e incrementar oportunidades culturais.
Não dá mais pra falar em políticas públicas, campanhas eleitorais, mobilizações sociais e estratégias de comunicação sem levar em conta o dinamismo criativo da juventude – ainda que não seja exclusividade dela. Hoje, mundo afora, vemos jovens conciliando sua extraordinária criatividade com ideais de igualdade, liberdade, solidariedade e causas ambientais. São ações pra lá de culturais e que produzem alteração dos sentidos. Apesar disso, talvez a sociedade em geral (me arrisco aqui a uma generalização perigosa) não coloque essa nova forma de produção cultural – que, ao mesmo tempo, é difusa e inclusiva, sedutora e promotora de dissensos – no topo da lista de preocupações coletivas, assim como também não prioriza as artes stricto sensu.
É por isso que os que já se sabem “culturais”, e atuam por esse caminho, já compreenderam que o fluido território da cultura está para além dos meros serviços e produtos criativos de qualidade, mas se dá na relação dialógica de experiências que devem ser vitais. Mais que entretenimento, diversão e beleza (ainda que cultura também seja isso tudo), o que fica são as experiências eivadas de sentido, que tensionam valores e indiferenças. São essas experiências que se constituem em respostas culturais pessoais e coletivas, conectadas com o global e com local, mas desafiando o antigo, seja público ou privado. Quando dispostas à provocação de novas experiências sociais, torna-se o próprio vértice da cidadania cultural: protagonismo no lugar de passividade, ampliação da noção de cultura ao invés de sua reclusão ao ambiente de criação solitária e supervalorizada, valorização do comum sem negação do que é próprio.
Aqui, porém, há um mata-burro. Embora a rede seja multiconectada e global, nossas cidades e sociedades vivem uma encruzilhada de códigos, com alguns propondo um urbanismo às avessas, a valorização da hierarquia e da exclusão, do autoritarismo financeiro como única regra. Estes, negam os códigos da convivência, da democracia, da sustentabilidade e da criatividade. Explicitam, assim, que o principal problema da sociedade em rede não é a tecnologia, que ela conhece e usa em abundância, mas a política.
Há muitos estados/cidades/países mais interessados em oferecer “melhorismos” e cumprir regras e estabelecer aparências do que em liderar fluxos dialógicos de bem-estar e de emancipação social. Eles se fazem como o oposto do necessário. Precisamos de Estados que não se resumam à lógica do favor, à do tratamento do cidadão como cliente, mas que aceitem e respeitem os movimentos sociais/culturais com suas pautas, seus estilos, suas propostas e suas ações.
Nesse mata-burro, contudo, além do Estado e daqueles gestores públicos que se converteram em gestores do nada, do estéril e do glamour, estão todos os que mantêm a falsa impressão de que controlam e percebem tudo. Sim, o mundo mudou. Agora nos expressamos com mais liberdade e por meios tão diversos e pulverizadores quanto tivermos talento e disposição para utilizar. Mas podemos ser apenas passageiros nessa mudança, apenas usuários dessa tecnologia e também produtores do nada, do estéril e do glamour. Acronia e atopia envoltas em ansiedade e verborragia.
Para nossa sociedade atravessar esse mata-burro será necessário enfrentar suas grandes questões e superar a cultura do perecível. Encarar os grandes temas: que relação mantemos entre Estado e sociedade? Porque vivemos com medo de tudo? O que é a infância no mundo atual? Pra que serve a vida nas cidades? Nossas crianças estão submetidas a um estágio preparatório para o sucesso econômico que desejamos pra nós? Por que aceitamos este estágio latente de escravidão generalizada? Realmente estamos preocupados com os temas ambientais ou isso é apenas nosso charme pessoal? O que queremos da educação pública? Privatizamos o público e a política: e daí? Que democracia é essa? Que tipo de cidadania estamos desenhando? Esses temas e outros tantos.
Para os “culturais” – lembremos: todos, não apenas os artistas – fica a obrigação de criar, propor e tornar acessíveis códigos de sentido concretos. Visões de mundo distintas da visão pasteurizadora e homogeneizante proposta pelo mercado. Precisamos ter sentido identitário e ser inventivos, atraentes, inquietantes. Só assim nossas experiências culturais serão vitais. É, sinceramente, sintomática a nula preocupação dos partidos políticos com a cultura. O mesmo vale para o Estado, corriqueiramente inebriado com o intranscendente e cosmético que sustenta. Como já se disse, nosso problema não é de tecnologia, mas de política.
Glauber Piva é sociólogo e diretor da Ancine (Agência Nacional do Cinema).