Marx, pensador da democracia – parte 7
Marx e uma definição original de política
De fato, graça às análises de A guerra civil na França e de sua definição de democracia, nós podemos encontrar em Marx uma ideia original de política.
Partindo de Marx, nós podemos afirmar que a democracia não se reduz a ser uma certa organização institucional, a ser um certo tipo de regime político, mas que ela é um modo de ser do político. E esse modo de ser é a manifestação do conflito, é a interrupção de um poder que se determina por uma igualdade formal, ou pelo menos privado de toda uma parte de sua dinâmica política. Mais uma vez, a igualdade não é apenas a igualdade dos cidadãos perante a lei, mas a igualdade possibilitada, por esses próprios cidadãos, de ascender aos diferentes locais institucionalizados do poder. O modo de ser do político é menos a gestão cuidadosa de um interesse comum nos gabinetes ministeriais do que a atividade de um comum que só pode ser litigiosa. Esse comum que é por natureza conflitivo é o poder político e o problema de seu acesso. O conflito se dá entre duas concepções: para nela ascender são necessários os títulos que devem mostrar uma competência, é a tendência aristocrática; e a outra afirma que a política levanta os sem-títulos, que a política deve ser aberta a todos, é evidentemente a tendência democrática. O conflito, longe de ser a degradação da ordem, é a manifestação de uma brecha no terreno da igualdade. Há a política em razão de um universal, a igualdade, mas uma igualdade que se mede pelas possibilidades efetivas que têm os cidadãos de participar das instituições, de redistribuir o poder, de torná-lo móvel. Quando essa igualdade existe apenas no modelo encantatório, aparece, então, o conflito, ou seja, a expressão por uma parte dos cidadãos de um dano sofrido, o dano causado por uma lógica política que reativa uma tendência aristocrática ou oligárquica de poder.
Em Marx, os indivíduos que carregam essa subjetivação do dano formam o proletariado. Em vez de apresentá-lo como a vítima expiatória do capitalismo, ele o define em uma pura perspectiva política. O proletariado é o sujeito que organiza, em uma dada sociedade, o litígio político concernente à distribuição do poder. É o sujeito político porque é ele que interrompe a concentração do poder e a divisão representativa entre a vontade dos cidadãos e a da política institucionalizada. O proletariado, em Marx, é a figura do político que coloca a necessidade de pensar a sociedade a partir do conflito, a partir da divisão desigual do poder. Compreendemos, então, que a democracia não é um simples regime constitucional, já que não é propriamente um regime, mas uma dinâmica política onde há uma mobilização das figuras em litígio que contestam a repartição do poder. O proletariado é um modo de subjetivação, eu entendo por essa expressão o modo de constituição de um sujeito político que produz o conflito de poder dos sem-poder e sem-título, conflito que é uma resposta a uma situação política que cria uma relação puramente fictícia entre a cidadania e a soberania.
Pode-se dizer então que a democracia é um modo de subjetivação permanente da política. Evidentemente o termo política significa outra coisa, não é a gestão do fluxo econômico, dos lugares e das funções. Trata-se de entender por política a possibilidade dos cidadãos de interromper uma certa ordem política, uma certa repartição do poder. Essa política de interrupção, que é a própria democracia, é feita em nome da igualdade. A interrupção, o conflito visa a tornar efetiva a igualdade como igual possibilidade de participar do poder. Essa definição da democracia está viva para nós em Marx, e em particular o Marx de A guerra civil na França. A ditadura do proletariado mostra-se como esse poder de interrupção de uma certa distribuição do poder. E mostra-se também como um modo de subjetivação, como criação de um sujeito político que reivindica o poder dos sem-poder. Lembremos dessa afirmação de Marx: “os simples operários, pela primeira vez, ousaram infringir o privilégio governamental de ‘seus superiores naturais’”.
Por consequência, a democracia se funda sobre a possibilidade de interrupções, de quebras, pontuais e locais, pelas quais a lógica igualitária vem lembrar que pode ser efetiva, a igualdade deve se conjugar com uma participação extensiva dos cidadãos no poder. A democracia por meio da manifestação do conflito torna comum aquilo que jamais foi dado como comum: o poder.
Manifestamos, ainda assim, um ponto de desacordo com o pensamento político de Marx. Ele pensa que a história está chamada a realizar uma democracia que torne efetivo o reino da igualdade, quer dizer, uma democracia onde os cidadãos disponham para sempre de um acesso igual ao poder. Marx postula que o conflito pode ser resolvido na história com a chegada da sociedade comunista. Nós não pensamos que um dia a democracia possa corresponder ao seu próprio nome. Mas isso não significa nenhum desencantamento frente à política. A democracia inclue nela aquilo que chamamos de um malogro político, um malogro democrático: o povo jamais poderá ser totalmente representado, haverá sempre uma distorção entre a vontade dos cidadãos e a vontade política institucionalizada. Mais precisamente, a democracia é a aceitação dessa diferença pela constituição de sujeitos políticos que tentam reduzi-la devolvendo mobilidade ao poder. A democracia vive em permanente tensão entre os fatores que tentam bloquear a distribuição do poder e os sujeitos que intervêm para reivindicar que o acesso ao poder, em uma democracia, não depende de um título ou de uma competência. A democracia é um processo, mas um processo inacabável.
Chegou a hora de tratar da nossa última parte e de avaliar os efeitos da definição marxista da democracia em nosso presente.