ENTREVISTA: Dyneas Aguiar e o processo de cisão dos comunistas brasileiros entre 1956 e 1962.
Buonicore: Em 1956, o secretário-geral do Partido Comunista da URSS, Nikita Krushov, numa sessão privativa, apresentou aos delegados do XX Congresso daquele partido um relatório minucioso denunciando os erros e crimes cometidos por Stalin. Qual foi o impacto deste relatório secreto no interior do movimento comunista e do Partido Comunista do Brasil?
Dyneas: Partimos de um momento muito importante na vida do nosso partido e da própria humanidade, que foi a crise no interior do Partido Comunista da União Soviética devido ao chamado Informe Secreto de Kruschev, apresentado no XX congresso do PCUS, ocorrido em 1956. Este informe rompeu com toda uma concepção do que tinha sido a construção do socialismo na URSS. Apresentou o processo não como um avanço revolucionário para os povos do mundo inteiro, em particular para os povos que compunham a União Soviética. Deu a idéia de que ao invés da humanidade ter avançado, na verdade, ela havia retrocedido.
Aquilo causou um impacto muito forte no movimento comunista mundial e no nosso partido em particular. Nós tivemos uma delegação que participou do 20º Congresso, dirigida pelo Diógenes Arruda. Voltou ao Brasil depois de nós termos tomado conhecimento do Informe Secreto. Inclusive me lembro muito bem a maneira como ele foi divulgado entre nós. Foi num domingo, eu havia ido a uma reunião da juventude comunista no bairro do Ipiranga e na volta comprei um jornal, o Estadão. Fui lendo no ônibus – quando levei um tremendo susto, ao vê-lo publicado pelo num caderno especial.
Logo no começo, inclusive, dizia-se que aquele documento era falso e que tinha sido elaborado pela CIA. Mas, o fato concreto é que as questões agora estavam colocadas publicamente. Na reunião da direção, que houve em seguida, Diógenes Arruda e os demais membros do partido que estiveram no 20º congresso, informaram que não haviam tomado conhecimento oficial do Informe de Krushov durante o período que estiveram na URSS. Ele foi lido numa reunião fechada, apenas para os delegados do próprio PCUS e, portanto, os representantes brasileiros ficaram sabendo do seu conteúdo no mesmo período que nós.
A partir de então, desencadeou no nosso partido um movimento dirigido por Agildo Barata, apoiado numa série de intelectuais – por exemplo, Jorge Amado – que, inclusive, conseguiu adesão do setor que dirigia a parte de imprensa partidária. Na época tínhamos uma rede de jornais diários, revistas e outras publicações. Este grupo publicou, sem antes ter apresentado à direção do partido, um manifesto no qual exigiam que se discutisse abertamente o conteúdo do Informe do 20º congresso e as posições do nosso partido.
O escritor Jorge Amado chegou a dizer que as revelações de Krushov faziam-no sentir como se estivesse mergulhado num mar de lama. As críticas ao período anterior foram muito violentas, não baseadas numa análise mais profunda. Por outro lado, a maneira como foram apresentadas as críticas provocou uma reação contrária e no mesmo tom. A posição de Agildo teve repercussão muito grande porque o seu grupo tinha, como eu já havia dito, uma influência muito grande na imprensa partidária. Como isso podia recrutar pessoas para as posições deles. Em São Paulo a direção do partido chegou a fazer uma operação de guerra. Militantes, principalmente da Mooca, Tatuapé, ocuparam a sede do jornal comunista Notícias de Hoje. Aqui a polarização foi muito forte.
Buonicore: Quais foram as alterações que ocorreram na direção partidária naqueles anos de crise?
Dyneas: Tudo que falei anteriormente ocorreu ainda em 1956. No ano seguinte, finalmente, houve a reunião do Comitê Central. Foi a primeira resposta oficial à luta interna que havia surgido. As posições do Agildo foram debatidas e muito criticadas. Ele acabou sendo afastado do Comitê Central e, logo em seguida, do próprio Partido.
Entretanto, ao mesmo tempo, ocorreu outra mudança importante na nossa direção nacional, que apontava num outro sentido. Os camaradas Maurício Grabois, João Amazonas e Diógenes Arruda foram afastados de suas funções executivas e logo depois enviados para atuar nos estados. Grabois foi mandado para o Rio de Janeiro, Amazonas para o Rio Grande do Sul, Arruda para Pernambuco. Carlos Danielli, Pedro Pomar, Calil Chade e uma série de outros companheiros, na prática, foram destituídos de suas funções, mas não da direção partidárias. Eles eram tachados de esquerdistas, sectários, por não aceitarem a nova linha política que estava sendo aplicada.
Luís Carlos Prestes, secretário-geral do PCB, por sua vez, se colocava numa posição como se nada tivesse a ver com o que tinha acontecido até então. Aquilo tudo parecia não ser com ele. Procurou descarregar toda responsabilidade nos ombros de Amazonas, Grabóis e Arruda, especialmente neste último.
Logo em seguida, apareceu a chamada Declaração de Março de 1958. Não vou entrar muito no conteúdo deste texto, pois já foi muito discutido entre nós. O documento absorvia todas aquelas idéias apresentadas nos informes de Kruschev ao XX Congresso. Quais eram elas?
Kruschev e o PCUS defendiam que, naquela quadra histórica, a principal via para se conquistar o socialismo era a via pacífica. Eles então introduziram os chamados “três pacíficos”: caminho pacífico, competição pacífica e coexistência pacífica. E, depois, os “dois todos”: Partido de todo o povo e Estado de todo o povo. Esses eram os pontos básicos no qual se concentraram as discussões no interior do movimento comunista brasileiro e internacional. Muito não concordaram com essas mudanças de concepções.
Antes do XX Congresso sempre afirmávamos que a luta revolucionária teria que ter a forma que as lutas de classes no interior de cada país exigissem, podendo ser pacífica e, principalmente, através de enfrentamentos armados. Só a luta revolucionária poderia garantir a troca de classes sociais no poder político. Esta era a visão tínhamos até então. Com a Declaração de Março de 1958 o Partido abandonou definitivamente o que tinha sido aprovado no IV Congresso, realizado em 1954. Abandonou o caminho revolucionário, a perspectiva revolucionária e entrou na linha exclusiva do caminho pacífico apregoada por Krushov.
Buonicore: O que ele significou o V Congresso do PCB neste processo de luta interna? Fale um pouco sobre ele.
Dynéas: Em 1960 foi convocado o V Congresso do PCB. Então, as posições ficaram ainda mais claras. Até porque as teses congressuais explicitavam ainda mais a linha política proposta pela direção nacional. Por isso mesmo, desde o início nos opusemos a elas. Grabois e Amazonas foram os que mais se destacaram no debate, criticando as teses apresentadas. Diversos outros companheiros participaram das discussões que antecederam à realização do Congresso, como o Carlos Danielli, Lincoln Oest e Calil Chad. Mas, não existia nenhuma articulação entre eles.
Uma vez, numa reunião do Partido, rebatendo àqueles que diziam que “aquele era um grupo anti-partido, que estava formado há muito tempo”, Danielli respondeu: “não foi nada disso. Inclusive, considero que foi um erro não termos nos articulado durante o período do V Congresso. Se tivéssemos feito isso, o resultado poderia ter sido outro”. Mas, nós fomos educados dentro da disciplina partidária, dentro do centralismo-democrático. As decisões dos congressos são leis, que só podem ser modificadas em outro congresso.
Por isso, quando saiu a resolução do V congresso, aprovando a linha reformista, não concordamos com ela, contudo tínhamos obrigação de aplicá-la. Isso, de certa maneira, enfraqueceu nossas posições. Ainda não tínhamos a idéia de romper, constituir uma dissidência nacional. Ficamos nas nossas trincheiras, cada um no seu estado.
Buonicore: Como se deu este debate no Estado de São Paulo, onde você atuava?
Dyneas: Anteriormente, na preparação do V congresso, participava das reuniões do Comitê Municipal do Partido em São Paulo, mas não era membro da direção. Geralmente estava ali para tratar das questões sindicais, juvenis e de formação, que era onde atuava e mais gostava de fazer.
Armando Mazzo era o principal dirigente municipal do Partido. Ele era membro dos comitês estadual e central, e apoiava as posições do grupo do Prestes. No entanto, tinha algumas posições divergentes quanto à implementação daquelas políticas. Ele tinha aquela marca operária. Durante a conferência municipal assistimos a um espetáculo deprimente, que foi os ataques ao Mazzo. Ouvimos coisas absurdas. O pessoal que vinha não sei de onde para falar mal dele. Uma pessoa foi à tribuna para responsabilizá-lo porque, quando saía para trabalhar, a mulher recebia o amante em casa. Coisas desse tipo. Foi um verdadeiro massacre. Pomar, Arroyo, Duarte e eu tentamos defendê-lo. Não adiantou e acabou sendo destituído do cargo que exercia.
Depois veio a Conferência Estadual. É claro que a maioria dos delegados era ligada às posições de Prestes. Participaram Mario Alves, Carlos Marighela e até Prestes. E aí aconteceu uma dessas coisas meio folclóricas. Justamente na hora da minha intervenção na qual criticava a direção, por causa do processo de dissolução da União da Juventude Comunista, chegou Prestes. Então, pararam tudo para recebê-lo, como normalmente se faz quando o dirigente principal chega num evento deste tipo.
Neste mesmo momento, o Giocondo Dias chegou, sentou-se ao meu lado e disse: “olha, sei que você estava criticando Prestes. Mas deixa o velho, fala mal de mim. Diga que eu é que sou o responsável por tudo isso”. Achei isso um verdadeiro absurdo e voltei para tribuna e disse o que tinha a dizer.
Nesta mesma reunião, um outro dirigente do partido veio para conversar comigo. Chegou dizendo: “ah, eu sei que você estava com idéia de sair daqui”. Espantado, respondi: “eu? Não tinha passado isso pela minha cabeça!”. Ele enrolou, enrolou e, no fim, fez uma proposta para que eu fosse para Brasília. O movimento sindical naquela cidade estava precisando de assessoria e eu era membro do Conselho Sindical de São Paulo. Foi deste jeito que acabei indo parar em Brasília. Fui para trabalhar no Sindicato da Construção Civil. Isso tudo ocorreu entre 1960 e 1961.
Buonicore: Afinal, quando e quais motivos que levaram a cisão entre os comunistas brasileiros? Qual foi o seu papel neste processo?
Dynéas: Em agosto 1961, para nossa surpresa, foram publicados nas páginas do jornal Novos Rumos, órgão oficial do PCB, novo programa e estatuto. Os quais já haviam sido registrados no Tribunal Superior Eleitoral. A direção nacional do PCB, para conseguir a legalidade, havia mudado até o nome do Partido: de Partido Comunista do Brasil passava ser Partido Comunista Brasileiro. Retirava-se do estatuto que o Partido se guiava pelo internacionalismo e o marxismo-leninismo.
Mudanças como essas, pela sua importância, só deveriam ser feitas com a aprovação em um congresso partidário, assim acreditávamos. Então foi elaborado um documento para direção nacional, assinado por cem camaradas, protestado contra as mudanças e exigindo a convocação de um novo congresso. O texto ficou conhecido como a “carta dos 100”.
Contudo, há uma trégua na luta interna por causa da grave crise político-militar que se abriu com a renúncia do Jânio Quadros em agosto de 1961. Nós de Brasília, por exemplo, chegamos a organizar grupos de resistência à tentativa de golpe militar contra a legalidade, que tentava impedir a posse do Jango, o vice-presidente constitucional.
Retiramos quase uma dezena de deputados federais que estava ameaçada de ser presa. Fizemos esse serviço porque o exército havia tomado conta das principais estradas de acesso à capital. Mas, nós conhecíamos todos os caminhos alternativos pelo cerrado e, através deles, levamos os deputados para Goiás, onde o governador Mauro Borges liderava a resistência no estado. No Rio Grande do Sul, era o governador Leonel Brizola que comandava a rede da legalidade. O camarada João Amazonas, dirigente do Partido no Rio Grande do Sul, organizou as colunas de trabalhadores para resistir ao golpe.
Chegamos estabelecer contato com os camaradas de Trombas do Formoso, região goiana onde ocorreram importantes lutas camponesas dirigidas pelos comunistas, liderados por José Porfírio. Estávamos nos preparando caso a situação evoluísse para um enfrentamento armado com os golpistas. A posição do Partido em Goiás e Brasília era de resistir. Uma atitude que mostrava o sentimento revolucionário que existia entre muitos comunistas.
Buonicore: Então finalizada a crise político-militar recomeça a crise no interior do Partido Comunista?
Dyneas: Depois, veio a posse de Jango, através de um acordo que instituiu o parlamentarismo. E, então, o que fez a direção do PCB? No final de 1961, começou tomar medidas punitivas em relação aos dirigentes que haviam organizado a “Carta dos 100” e protestado contra o registro de novo programa e estatuto. Expulsaram Amazonas, Grabóis, Pomar, Danielli, Lincoln Oest, Elza Monnerat, José Duarte entre outros. Vários comitês sofreram intervenções. Somente em janeiro foi que os dissidentes resolveram convocar a Conferência Extraordinária para reorganizar o PC do Brasil.
Aquele documento elaborado pelo Grabóis que saiu na Tribuna de Debate do V Congresso, Duas concepções, duas linhas, deixava muito claro que não se tratava de uma situação radicalizada apenas no Brasil, mas no mundo todo. A luta de classes e antiimperialista estava se radicalizando. Havia o enfrentamento entre a União Soviética e o imperialismo dos Estados Unidos. A China avançava no seu processo revolucionário de construção do socialismo. Havia a resistência armada no Vietnã. Tínhamos tido recentemente a vitória da revolução cubana e, depois, da revolução argelina. Parecia haver um clima revolucionário em todo mundo.
É, justamente, aqui que ficava claro, para nós, o peso da traição de Krushov, que ao invés de apontar para este rumo revolucionário, apontava em outra direção. Dizia: “vamos parar com tudo isso para podermos ver se, através da competição pacífica, provamos nossa superioridade”. Lembro-me muito bem disso, porque teve um tempo em que eu colaborava com Notícias de Hoje, fazia traduções do espanhol, quando chegou um artigo de Kruschev que dizia: “até agora nós temos tal porcentagem, comparando os Estados Unidos com a União Soviética. Nós estamos crescendo a tanto por cento ao ano. Então, dentro de tantos anos, nossa produção será maior que a deles. O mundo, então, saberá qual é o melhor. E, pronto, estará resolvido o problema!” Através do exemplo o mundo seria ganho para o socialismo. Desse documento nunca me esqueço porque eu o traduzi e o entreguei para a publicação. Aquilo era a negação de tudo, inclusive da economia política marxista.
Uma das bases principais do processo revolucionário é quando a sociedade realmente se divide de maneira clara. Enquanto as coisas estiverem ainda nebulosas é difícil pensar em revolução. Esta polarização aconteceu na crise de 1961. Se, o partido – no caso o PCB – não tivesse cometido aquela verdadeira traição em relação à perspectiva revolucionária, aquele acontecimento poderia ter tido um outro desfecho. E seria um desfecho à base do enfrentamento. Não tenho dúvidas, de que ele teria sido favorável a uma posse plena de Jango e não aquela saída negociada com os militares, que estabeleceu o parlamentarismo visando enfraquecer o poder do presidente.
Buonicore: E você onde estava quando tudo isso acontecia?
Dyneas: Eu já estava trabalhando na prefeitura e era o secretário de agitação e propaganda em Brasília. Um dia chegou uma pilha do jornal Novos Rumos, órgão oficial do PCB, com a publicação dos novos estatuto e programa, que inclusive mudavam o nome do Partido. Peguei um exemplar, li, amarrei e coloquei num canto. Falei para a direção: “esse jornal nós não vamos distribuir”. E não distribuímos mesmo. Então, chegou Marco Antonio Coelho, dirigente partidário, e fizemos uma reunião. Nela reafirmei minhas posições e, então, me afastaram da direção do partido.
Enquanto isso tinha acontecido a reorganização do Partido Comunista do Brasil numa conferência extraordinária realizada em São Paulo no mês de fevereiro de 1962. Eu não participei dela nem assinei a “Carta dos 100”. A correspondência chegou atrasada. Alguns dias depois, Lincoln Oest me procurou e relatou o que havia ocorrido e me apresentou os documentos aprovados na conferência. Foi quando aderi ao processo de reorganização partidária. Mas, formalmente, eu ainda estava no PCB, não havia sido expulso.
Durante este tempo todo eu ia para São Paulo reunir-me com Arroyo, Pomar, Duarte, camaradas que eu conhecia há algum tempo. Trocávamos idéias e opiniões sobre os acontecimentos políticos em curso. Ainda não tratávamos de “como vamos nos reorganizar”, mas as reuniões existiam, porque a conferência não foi um aborto político que nasceu do nada, ela foi um processo.
Depois disso, aconteceu o “caso Guevara”. Inclusive, fui expulso, entre aspas, do PCB por causa disso. O Ministro da Justiça de Jango era de Goiás, acho que durante o gabinete Tancredo, no período do parlamentarismo. Um dia, o chefe de gabinete dele trouxe o embaixador de Cuba para fazer uma palestra sobre a revolução naquele país. No final da exposição, diante do meu interesse, ele me deu de presente o livro “Guerra de Guerrilha”, escrito por Che Guevara.
Levei o livro para o Rio de Janeiro e entreguei para o Grabois e Amazonas. Disse a eles: “olha, li e achei interessante. Ele nos dá, pelo menos, algumas indicações”. Naquele momento, final de 1961, estava sendo constituída a edições Futuro e o primeiro livro publicado foi Guerra de Guerrilhas.
Esta é uma experiência do movimento comunista no mundo inteiro. Quando é preciso firmar uma posição, a primeira coisa a fazer é criar uma editora e um jornal. Criamos as Edições Futuro e Maurício Grabois resgatou para nós o jornal A Classe Operária, da qual havia sido o último editor. O registro estava no nome dele. Este foi um importante instrumento tanto de divulgação quanto de organização no início do processo de reorganização do PCdoB, entre 1962 e 1964.
O que aconteceu depois? Houve uma forte pressão em cima do governo Jango e ele resolveu proibir a sua venda. O fato de ter sido censurado e apreendido deu a ele uma repercussão enorme.
Eu que já o havia recebido os livro e comecei vendê-los em Brasília. Novamente, Marco Antonio convocou uma reunião e, desta vez, me afastaram do Partido. A alegação era que eu estava comprometendo a segurança dos companheiros ao vender um livro proibido. Foi esta resolução que eles tomaram. Eu agradeci, evidentemente. A partir daí começamos a reorganizar, de fato, o nosso partido em Brasília.
Buonicore: Como foram esses primeiros anos de reorganização em relação ao número de militantes, influência política e estrutura material?
Dyneas: Nós nos reorganizamos, em fevereiro de 1962, à zero em relação a dinheiro e estrutura. Dávamos parte do nosso salário ao Partido. Só nos sobrava o suficiente para o arroz e feijão. O Danielli e o Arroyo tiveram que voltar a trabalhar na produção. Pomar, inclusive, começou a dar aulas e fazer traduções de livros. O Lincoln Oest tinha um cartório e por isso gozava de uma posição um pouquinho melhor. Desligados da produção só ficaram mesmo Grabois e Amazonas.
Quem tinha uma posição financeira um pouco melhor, nós limpávamos o tacho para poder montar a editora, produzir o jornal e sustentar as demais atividades do partido, inclusive as viagens aos estados. A situação era muito difícil. Mas, trabalhávamos com uma idéia fixa, uma certeza: “no futuro o nosso projeto vai dar certo”. E deu.
Como já disse, num primeiro momento, a nossa principal tarefa foi firmar a imprensa e a propaganda partidárias, relançar A Classe Operária e começar publicar livros – era por aí que íamos enfrentar o embate político e ideológico com o PC Brasileiro, que era bem mais forte que nós. Evidentemente, pela situação existente, o nosso isolamento tendia a ser muito grande. Muitos acreditavam que não conseguiríamos sobreviver.
Nós rompemos em um número muito pequeno de militantes. Na verdade, o que rompeu mesmo foi: em São Paulo – na capital, os distritais de Tatuapé e da Mooca, militantes na região sul paulistana e de algumas cidades do interior. Ali tínhamos o o Pomar, Duarte, Arroyo e Calil Chade. No Rio Grande do Sul muitos militantes ficaram com o PC do Brasil, pois ali estava o Amazonas. No estado do Rio estavam Grabóis, o Lincoln Oest e Danielli. Em Brasília, eu estava quase sozinho. Um pouco mais à frente começamos a pegar contatos em Minas Gerais e Goiás. Depois fomos aos poucos expandindo a organização do partido para outros lugares.
Em 1963 as coisas começaram a se radicalizar no país. Os enfrentamentos políticos e as crises foram num crescendo. As lutas democráticas tomaram um grande impulso. Contudo, o outro lado avançava também. Nenhum lado avança sozinho e, por isso, sempre aparecem os conflitos. As posições do Jango, em relação a alguns temas fundamentais, evoluíram num sentido positivo, como a regulamentação da remessa de lucro das empresas estrangeiras e o problema da reforma agrária.
Ainda outro dia ouvi um comentário que dizia: “a reforma agrária que levou o Jango a ser deposto hoje seria considerada pela UDR um grande projeto”. Porque ela era às margens das rodovias federais, apenas as federais. Mas, de qualquer forma, colocava em pauta um problema que era realmente grave – e continua sendo. Tivemos ainda as agitações no meio dos militares, como a revolta dos sargentos e dos fuzileiros navais.
Buonicore: Você estava em Brasília quando eclodiu o Levante dos Sargentos. Como foi a atuação do PC do Brasil durante aquele acontecimento?
Dyneas: Uma coisa que poucos sabem é que o PCdoB participou do levante de sargentos em Brasília. Éramos nós que tínhamos contatos com eles. O movimento reivindicava a posse dos sargentos eleitos e que haviam sido cassados pelos tribunais eleitorais. Parece que apenas um sargento conseguiu assumir o mandato. Os demais não. Eles, então, entraram em contato conosco na cidade de Brasília. Em São Paulo o contato foi com o PCB. Por isso, o Tenorinho (Luis Tenório de Lima) e outros sindicalistas do partidão foram presos e acusados de participação naquele movimento.
Discutíamos mais com o pessoal da Aeronáutica. Depois eles trouxeram o pessoal dos fuzileiros navais e do exército. Do exército havia o sargento Garcia, que havia sido empossado. Então, combinamos que esgotaríamos toda a luta do ponto de vista da legislação, mas se o tribunal superior negasse atender ao pedido dos sargentos, então, se faria uma demonstração. Isso é que foi planejado e foi isso que aconteceu
Eles fizeram o levante, nós procuramos articular ações na cidade. O pessoal da POLOP também tentou entrar nisso. Além dos nossos companheiros de Brasília, mobilizamos o pessoal das Ligas Camponesas, como o Tarzan de Castro e Diniz Cabral, que agora estavam conosco em Goiás.
O pessoal da Política Operária (POLOP) também veio para participar. Nós os levamos à noite para o meu apartamento e fizemos uma reunião. Informamos sobre os encaminhamentos sobre o levante, que ocorreria no dia seguinte. Eles ficaram por ali e nos saímos para ajudar no movimento dos sargentos. A participação deles foi essa: a vontade de participar, mas não estiveram na ação concreta.
Então, houve a ação militar. Troca de tiros mesmo ocorreu apenas com o grupamento da polícia especial de Brasília. O levante da Aeronáutica foi tranqüilo. Partimos então para mobilizar os fuzileiros navais, e também tudo correu bem. Seguimos para o exército. O sargento que ali estava articulado conosco disse: “não concordamos em fazer um levante dessa forma. Nós damos nossa solidariedade ao movimento, mas achamos que uma rebelião não dá”. Aí houve toda uma discussão: “nós somos pelo caminho pacífico. Não deve haver confronto armado”. E nós tínhamos decidido com os fuzileiros navais que iríamos ocupar o quartel. Os oficiais começaram chegar e fomos prendendo todos eles. Nós já tínhamos reservado a base da torre de Brasília para colocar os presos.
Conversamos e, no fim, decidiram: “não, vamos ocupar. Amanhã cedo faremos uma proclamação”. Então, nos retiramos e voltamos para o quartel da aeronáutica. Reunimos e dissemos: “bom, aqui terminou. Daqui para frente vai ficar somente o protesto”. Foi quando nós pegamos alguns armamentos e saímos. Eles foram presos, responderam processos, mas ninguém pegou pena pesada. O levante durou apenas uma noite. O objetivo deles não era tomar o poder, como chegou afirmar a imprensa conservadora. A questão central, como dissemos, era simplesmente garantir a elegibilidade dos sargentos eleitos.
Esta foi uma página da luta do nosso povo para ampliar os seus direitos democráticos, uma luta para que cabos, sargentos e suboficiais pudessem participar plenamente da vida política. Coisa que acabou acontecendo mais à frente com a democratização do país após o fim da ditadura militar.
Buonicore: Qual foi o impacto do golpe militar no processo de reorganização do PC do Brasil que tinha começado em 1962?E os efeitos desse golpe sobre o PC brasileiro?
Dyneas: Pela informação que recebi, fui cassado no AI-1 e o coronel que dirigia meu inquérito virou secretário de segurança pública de Brasília. A vontade que ele tinha de botar as mãos em mim era muito grande. Felizmente para mim, no momento do golpe, eu estava me preparando para viajar para um curso político-militar na China e, por isso, não fui preso naqueles dias.
Com o golpe de Estado, num primeiro momento, o nosso partido não foi muito golpeado. Afinal, não tínhamos um peso político e social muito grande. Os golpistas concentraram os seus primeiros ataques sobre o PTB, o PCB, o Brizola e o Arraes, aquelas forças que tinham maior expressão e estavam mais ligadas ao regime deposto.
Contudo, dentro do Partido Comunista Brasileiro estalou uma luta interna muito grande. Prestes afirmava que não havia perigo de golpe militar; pelo contrário, se os militares tentassem dar o golpe suas cabeças seriam cortadas. Todas as teses que a direção do Partido Comunista Brasileiro havia defendido durante anos – pelo menos desde 1958 – pareciam ir por água abaixo. Em compensação, as teses que nós defendíamos repentinamente foram reforçadas pela nova realidade que foi se constituindo após o golpe militar.
No interior do PCB surgiram vários agrupamentos. A maioria seguiu o caminho da luta armada, ainda que sob uma perspectiva foquista. Marighela formou a Ação Libertadora Nacional (ALN). Mário Alves e Jacob Gorender formaram o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR). Apareceu a Dissidência do Partido Comunista Brasileiro no movimento estudantil no Rio de Janeiro. Outros agrupamentos foram surgindo no interior do PCB.
A luta interna no PCB se agravou em função do VI Congresso que se aproximava. Nos debates preparatórios os grupos de oposição começaram ganhar força. Para impedir sua vitória, a direção tomou medidas de caráter administrativo, afastando todo o pessoal do Marighela, que tinha muita força em São Paulo. No Rio de Janeiro a oposição também foi afastada. Isso ocorreu em vários outros lugares. Na verdade, o 6º congresso só se realizou depois de feita uma limpeza geral na oposição de esquerda.
Neste mesmo período, alguns setores do Partido Comunista Brasileiro se aproximaram de nós. Foi o caso do Comitê Regional do Ceará, que rompeu e, praticamente, todos vieram conosco. Em escala menor, o mesmo aconteceu no Maranhão. Houve o ingresso do Comitê Regional Marítimo – dirigido por José Maria Cavalcante e Luiz Guilhardini. Na Guanabara, o pessoal do Jover Teles, Armando Frutuoso e Lincoln Bicalho Roque foi para o PCBR, mas logo se incorporou ao PCdoB. Vários militantes do PCB, isolados ou em grupos, romperam, se aproximaram das nossas posições e foram se incorporando ao nosso partido.
Este crescimento numérico e organizativo permitiu ao PC do Brasil, em 1966, realizar sua VI Conferência Nacional. Dela participaram delegações do Rio Grande do Sul, Guanabara, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás, Brasília, Pernambuco, Ceará, Maranhão e Bahia. O Partido, de fato, já era outro.