EM TODA MINHA VIDA DE MENINO CAIPIRA, SÓ TIVE UM CACHORRO: O VIAJANTE!

– O Viajante ficou na fazenda São José, quando vim morar, sozinho, em São Paulo. Do alto dos meus treze anos de idade, quantas noites chorei de saudades dos meus pais, dos irmãos e do Viajante. Ele era um «purus vira-latas», de pelos curtos e negros como o azeviche. Ele adorava correr pelos trilhos (caminhos secundários), fora das rotas de estradas de servidão e dos carreadores da fazenda de café, onde nós vivíamos.

Ele era quase que necessariamente um cão de companhia; não era um cão de guarda, na verdadeira acepção da palavra, mas era aquele que mais barulho fazia na presença de algo que pudesse intimidá-lo; não era um cão de caça, mas tinha uma qualidade incomum de «caçar frangos», quando saíamos a caçar frango para a refeição do dia; frangos estes criados livres e que beiravam o estado selvagem.

Sem o Viajante, teríamos comido muito menos frangos lá na fazenda; isso implica em dizer que o frango caipira que abatíamos para consumo era a maior fonte de proteínas de que dispúnhamos por aquelas bandas. Uma vez que nós já houvéssemos escolhido qual era o frango daquele dia e o indicávamos ao Viajante, incitando-o, ele se dedicava a correr atrás daquele frango, mesmo que voasse, que pousasse em árvore ou se escondesse, o viajante não desistia nunca, até que a ave se cansasse de correr; o viajante o alcançava e punha as duas patas dianteiras sobre a ave e só as retirava após chegarmos ao local, solicitando que ele largasse o frango.

Às vezes, ele me acompanhava até o córrego (Rio do Pântano) e ficava aguardando todo o tempo que brincávamos; sentado calmamente no barranco do rio; algumas vezes nós levávamos toras de bananeira, para brincar de jangada no rio: nós lançávamos as toras no rio num ponto a montante do local desejado; como as toras de bananeira boiam, nós nos debruçávamos sobre elas, que nos levavam devido à corrente, até um ponto à jusante.

Por vezes isso representava 50 metros, às vezes, mais. Ato contínuo, colocávamos as toras nas costas e seguíamos correndo por fora d´água, entre os barrancos, com o fito de que a parte mais gostosa do brinquedo, a cavalgada nas toras, se repetisse. O Viajante latia feliz, correndo atrás, com aquele jeito feliz que só os cães de menino caipira sabem latir.

No dia em que saí de casa, não encontrei o viajante, para despedir-me dele. Ocorreu que o bom velhinho nunca mais me encontrou. Por algum tempo acreditei que o motivo que impedia que ele pudesse me encontrar, era devido ao exagerado número de crianças da grande cidade. «Chose de lês enfant». Nunca mais o vi. Oito meses depois que cheguei a São Paulo, minha família chegou de mudança. Perguntei pelo Viajante: ele havia morrido um mês depois que saí da fazenda. Durante muito tempo me senti culpado pela morte dele, provavelmente por saudade.

Minha mãe certa vez me confidenciou de que o Viajante havia contraído uma doença esquisita, após a minha partida e não queria comer; de jeito nenhum. Meu coração caipira, feito de vidro, quebrou-se ali. Nunca mais haveria de ter um cão.

Agora, que passei dos sessenta anos de idade descobri, através de meu irmão Nelson (que escreveu um e-book sobre nossa família na fazenda); que o Viajante foi sacrificado pelo motivo de ter sido mordido por um cachorro louco e ter sido infectado pelo tal.


Não chorei ao saber, mas minha face ganchou mais uma ruga, devido à tristeza do caso pelas minhas lembranças.

 

  Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.