Uma guerra, enfim
Nascido em 1934, Jean Ziegler foi relator especial da ONU para o direito à alimentação, entre 2000 e 2008. É sua a frase: “Cada criança que morre de fome é uma criança assassinada”. A FAO revela que esse crime ocorre no planeta a cada cinco segundos.
O sociólogo suíço esteve recentemente no Brasil para lançar seu livro “Destruição em Massa – Geopolítica da Fome” (Cortez Editora, 2013), que atualiza obras seminais do brasileiro Josué de Castro (1908-1973), como “Geografia da Fome” (1946), “Geopolítica da Fome” (1951) e o romance “Homens e Caranguejos” (1967), entre outras.
Lembrete: médico, nutrólogo, geógrafo, cientista social, escritor e político, o pernambucano Josué de Castro dedicou a vida ao combate à fome. Teve seus direitos políticos cassados pelo golpe de 1964 e se exilou em Paris, onde morreu.
Se parte desse passado é melhor esquecer, a realidade que Ziegler nos mostra, tanto no livro como na entrevista que concedeu à revista Caros Amigos (edição 195/junho 2013), é de uma atualidade incontestável.
É comum folhas e telas cotidianas, federações agropecuárias, consultorias econômicas e mesmo instituições internacionais, mostrarem-se preocupadas com a segurança alimentar quando o Carnaval 2050 chegar.
Até lá, a população mundial é prevista alcançar nove bilhões e a nossa malha ferroviária, provavelmente, terá a mesma extensão de hoje, diferente dos sambódromos do País, que estarão interligados para o Grande Desfile Nacional de Escolas de Samba, ainda com exclusividade de registro pela TV Globo.
Não se iludam. Tal horizonte serve, sobretudo, a justificar interesses vários atualíssimos: especulação imobiliária com terras agricultáveis em países pobres, avanço sobre áreas de preservação ambiental, incremento no uso de agroquímicos para obtenção de produtividade, concentração do comércio nas mãos de megatraders internacionais, ampliação da concentração fundiária e consequente redução de empreendimentos familiares.
Mantém-se assim um modelo de produção e distribuição falho, que pouco abandonou as raízes colonialistas.
Na balada até 2050, para atender o apetite do planeta com segurança alimentar, a produção mundial precisaria crescer 60 a 70%, conforme o humor semanal estatístico da FAO.
Maior parte dessa carga estaria reservada aos aptos ombros brasileiros que, orgulhosamente, sentem-se gentis e varonis, Pátria amada, Brasil.
Não seria necessário tanto esforço. Nem ter-se devastado tanto os solos, fauna e flora mundiais se tivéssemos usado os vastos conhecimento e tecnologia humanos para reduzir, pelo menos à metade, o desperdício de alimentos – entre 25% e 30% – e sua má distribuição pelas regiões mais pobres.
Não é de agora que a fome ronda cerca de um bilhão de pessoas. Nem se ignora que a atual produção de alimentos daria para alimentar toda a população mundial com a saudável ração média de 2,2 mil calorias-dia por adulto.
Peço calma aos mais glutões: ainda assim sobraria para quem quisesse repetir o mocotó.
Essa bênção, no entanto, afetaria os seis grandes grupos que controlam mais de 2/3 do mercado mundial de alimentos, verticalizados dos pés às cabeças de suas indústrias, estruturas de transporte, armazenagem e pesquisas. O mesmo para as indústrias de insumos agroquímicos.
Já não seria o bastante? Afinal, desde que globalizado, o capitalismo está em processo de acelerada concentração econômica.
Infelizmente, não.
Vivaldino, o capital financeiro passou a se interessar pelas commodities agrícolas, tornando-as acessíveis à especulação, o que fez os preços dos alimentos, calculados desde o ano 2000 mensalmente pela FAO, cresceram quase duas vezes e meia para o agregado de carnes, cereais, derivados de leite, óleos, gorduras e açúcar.
O braço da ONU para agricultura e alimentação, que hoje tem como diretor-geral, o brasileiro José Graziano da Silva, relaciona 62 países com déficit alimentar: 39 na África; 17 na Ásia; 3 nas Américas; e 3 na Oceania.
Para Jean Ziegler, a solução poderia ser resolvida pacificamente com três ações: proibindo a especulação em bolsas com commodities agrícolas; perdoando as dívidas externas dos países mais pobres; investindo em agricultura familiar.
Uma guerra, enfim.