O capital faz seus novos caminhos, agora com um Estado protagonista
A estrutura da oferta de bens no mercado internacional mudou irreversivelmente, e a crise que começou em 2008 é apenas a manifestação de um processo que já vinha de muitos anos. Segundo o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, os antigos centros da economia mundial, Estados Unidos e Europa, jamais recuperarão sua posição preponderante na produção industrial.
Enquanto isso, o dirigismo do capitalismo chinês promove as reformas que continuarão a fazer do país asiático o motor econômico do planeta. Ao Brasil, cabe abdicar da sobrevalorização cambial, que já durou tempo demais, e aproveitar as oportunidades que aparecem: concessões de infraestrutura e o celebrado Pré-Sal.
Essas reflexões de Belluzzo estão apoiadas nos dois autores aos quais se dedicou em quase 40 anos de carreira: Karl Marx e John Maynard Keynes. Em “O Capital e suas Metamorfoses”, o objeto é o próprio conceito de capital, abstrato e sempre em movimento, sempre se concretizando em formas diferentes. A partir desse conceito, Belluzzo examina os fenômenos do capitalismo financeiro, da crise de 2008 e da reorganização da economia mundial.
Valor: Um tema atual discutido no livro é a chamada financeirização, a partir dos anos 1980. Como esse tema aparece em um autor do século XIX, como foi Marx?
Luiz Gonzaga Belluzzo: É o cumprimento do conceito do capitalismo, levando ao paroxismo a acumulação de riqueza abstrata. Para alguns, há um descolamento entre o capital financeiro e o industrial; mas essa tese acha que, ao controlar a finança, controla-se o capitalismo. Algo assim ocorreu depois de 1945, com a repressão financeira. Por um momento, controlou-se a finança, garantindo certa estabilidade. Mas, à medida que a expansão ocorria, não teve jeito de segurar. A partir dos anos 1980, a finança ganhou outra dimensão. Marx fica aturdido com a financeirização que vê na Inglaterra do século XIX. Ele sabia que isso é parte central do sistema.
Valor: Depois das crises, vêm as sínteses e o capital assume novas formas. Estamos num momento desses?
Belluzzo: Acho que Marx, enquanto escrevia “O Capital”, foi ficando cético. Ele diz que as formas do capital são cada vez mais socializadas, e fala claramente na classe de administradores que surge, os executivos de hoje. Tanto a empresa quanto a finança levam o capitalismo a um maior grau de controle centrado na finança. Ele diz que a evolução do sistema está se organizando e se encaminha para mais concentração das forças produtivas, submissão do trabalho, mudança nas relações dentro da empresa.
Valor: Como é a relação com as classes burguesa e trabalhadora?
Belluzzo: Marx não escreveu sobre a dialética do trabalho; se não, o livro se chamaria “O Trabalho”. O trabalho é produto da relação capitalista, mas subordinado e impessoal. Com o avanço do capitalismo, o trabalho fica cada vez mais submetido. Não só trabalhadores, mas administradores e burgueses também. Eles são suportes da relação social.
Valor: O senhor menciona os movimentos de contestação surgidos da crise. Eles podem tomar corpo?
Belluzzo: Eles refletem a socialização da relação capitalista. Da classe operária clássica, houve poucas manifestações. O capitalismo mudou a composição das classes sociais. Tem uma massa diversificada de dependentes e assalariados. A classe operária tradicional, das fábricas, não sumiu, mas sua composição mudou. Os processos de produção mudaram. Como vão se formar coágulos de resistência política? Por enquanto, é uma resistência difusa, de protesto e insatisfação com as instituições políticas. Isso vai ter um tempo de maturação. O desfecho não é tão rápido.
Valor: O senhor se refere às crises como um todo?
Belluzzo: Sim. A economia americana se recupera devagar e comemora até gol contra. O afrouxamento monetário ajudou, mas gera problemas mais à frente. Tentei mostrar, a partir de Marx, que está havendo uma transformação enorme na economia mundial. Tão importante quanto a do fim do século XIX, quando a incorporação de áreas agrícolas no Novo Mundo gerou uma crise agrária violenta na Europa. A queda de preços dizimou os camponeses europeus. Na Inglaterra, produziu o declínio da aristocracia, que, apesar da burguesia, era quem governava. A Inglaterra perdeu a liderança industrial. Hoje, a queda de preços é na indústria, com a incorporação da Ásia.
Valor: O capitalismo de Estado chinês afeta a interpretação marxista do capitalismo?
Belluzzo: Há quem opine que a China vai convergir para uma economia parecida com as ocidentais. Não creio. É um capitalismo de Estado bem eficiente. Os chineses dizem que sua capacidade de fazer reformas está na flexibilidade – que ironia… – do modelo político, ao contrário dos países ocidentais, que vergam sob o peso de interesses particularistas. Esses interesses não pesam no Estado chinês. Já estão fazendo reformas na previdência, na terra, a fusão de empresas estatais e privadas… O marxista chinês diz que é o caminho do socialismo. Outros dizem que é capitalismo de Estado. Estes têm razão.
Valor: A fusão das empresas na China, por obra do Estado, é um reflexo da socialização que o senhor identifica em Marx?
Belluzzo: O grau de concentração na indústria mundial é impressionante. Em todos os setores, poucas empresas dominam o mercado. Espalham as fábricas pelas regiões onde o custo é menor e transacionam internamente. Isso é irreversível. As empresas chinesas ainda são relativamente pequenas. A China está concentrando brutalmente suas empresas, para terem porte para competir. Essa é a socialização da economia.
Valor: A socialização pelo capitalismo de Estado tem particularidades significativas?
Belluzzo: É uma diferença semântica. No máximo, talvez a China construa algo como o Estado do bem-estar ampliado.
Valor: O modelo do bem-estar também não está esgotado?
Belluzzo: Hoje, a questão é pensar além dele. A tendência do progresso técnico do capitalismo, em Marx, é a desvalorização da força de trabalho. Hoje, vivenciamos a construção do mercado de trabalho marxista. Em Bangladesh, China, México, vigoram as piores condições de trabalho. Os trabalhadores de baixos salários são submetidos a uma disciplina que lembra Manchester no século XIX. Os de alto salário são submetidos a uma tensão e uma insegurança incríveis. É o moinho satânico, mais satânico ainda. E tem uma inovação que Marx não viu. Keynes, um pouco: o consumo como instrumento de acumulação. Ele funciona como se fosse investimento, pelo financiamento. O consumo é intransitivo, uma relação com o valor de troca. Conheço pessoas que saem para consumir sem saber o que vão comprar.
Valor: Mas a expansão do consumo já era imprescindível para o Estado de bem-estar original.
Belluzzo: Foi um mecanismo virtuoso de crescimento do gasto público, do investimento privado, da renda, do consumo. Os operários entraram no mundo do consumo de duráveis. Esse Estado de bem-estar chegou ao limite. O que houve nos anos 1980, com [Ronald] Reagan e [Margaret] Thatcher foi a resposta à perda de dinamismo daquela economia. O que eles pensavam que fariam era desregular as finanças e baixar os impostos dos ricos, para que a poupança aumentasse. Não foi o que aconteceu. A escalada da China não se explica sem o movimento do grande capital americano, europeu, japonês, desregulado. O que foi o neoliberalismo? Foi abrir espaço para as empresas ganharem competitividade em outros lugares, com custos salariais mais baixos. É a lógica da acumulação e da competição capitalistas.
Valor: Como o antigo centro do capitalismo sairá do impasse?
Belluzzo: Como ajustar as economias que vieram de um sistema de proteção a uma situação em que os competidores têm salários muito mais baixos e métodos de produção avançados? Vejo pessoas nos EUA certas de que o país vai recuperar a liderança industrial. Não vai. Entre a crise de 1929 e Bretton Woods, passaram-se 15 anos de guerra e crise. Estamos numa crise mais complicada ainda. A estrutura da oferta mundial mudou. Quando os EUA recomeçam a crescer, o déficit comercial explode, porque bens industriais têm elasticidade-renda alta.
Valor: Até que ponto essa crise se reflete no impasse brasileiro atual?
Belluzzo: O Brasil não debate a economia nacional com a perspectiva das transformações do mundo. O que aconteceu conosco? Começamos a mudar de posição bem no momento da migração do grande capital. O Brasil perdeu a posição que tinha nos anos 1970, de país emergente com indústria mais avançada. Depois, estabilizamos a economia e cometemos um erro fatal ao insistir no câmbio valorizado. Nunca vi um país ficar tanto tempo com o câmbio valorizado e imaginar que nada vai acontecer. Agora temos duas oportunidades: as concessões, que podem trazer ganhos ao setor industrial pelo efeito-demanda, e o Pré-Sal.
Valor: E quanto à concentração dos mercados? O BNDES tentou criar gigantes brasileiros…
Belluzzo: Não sei se tentaram nos setores certos, mas a questão é que as empresas brasileiras ainda são nanicas. Não adianta mais pensar naquele sistema empresarial de competição perfeita. Aliás, isso nunca existiu, a não ser na Inglaterra do começo da Revolução Industrial, com o monopólio da indústria. Os outros sistemas industriais nasceram monopolizados.
Valor: Em que sentido este livro retraça sua carreira acadêmica? Os ensaios usam Marx para falar da crise atual, as respostas que vieram, a posição do Brasil…
Belluzzo: Na carreira, me dediquei a dois autores, Marx e Keynes. Minha tese é sobre a controvérsia do capital, em que Joan Robinson dizia que se tratava de um conceito metafísico e Piero Sraffa assumiu uma posição positivista, criticando a circularidade da teoria clássica. Ele dizia que é errado tentar estabelecer uma relação direta do preço dos fatores de produção para suas remunerações, porque se desprezam as interrelações dentro do sistema. Comecei assim e acabei na teoria do valor de Marx, que faz uma pergunta diferente dos clássicos, apesar de partir de [David] Ricardo e Adam Smith.
Valor: Como é a pergunta?
Belluzzo: Ele pergunta em que condições os produtos do trabalho humano assumem a forma valor. Marx investiga a sociedade burguesa em seu regime de produção. Como abordar essa sociedade? A partir de sua categoria elementar, a mercadoria. Ele não pergunta pelo valor, mas pela mercadoria, o produto do trabalho com uma forma social, expressa na forma valor. A fenomenologia do valor, que percorre todo “O Capital”, é analisada supondo o regime do capital constituído. A circulação simples aparece como dimensão do capitalismo. No terceiro volume, ele estuda as formas particulares: capital a juros, renda da terra etc. O valor só existe quando a subsunção do trabalho ao capital é real, no regime de acumulação capitalista. Em sociedades pré-capitalistas, há dinheiro, mas não como valor. Ele não faz uma história do dinheiro.
Valor: Ainda assim, o dinheiro é um conceito central em Marx.
Belluzzo: O dinheiro, no capitalismo, é a forma do valor por excelência. A mercadoria não sai das mãos do produtor na forma natural, mas como valor de troca, com denominação monetária. Ninguém apresenta no mercado uma camisa como tal. Apresenta com preço. No capitalismo, a riqueza é calculada em termos monetários. Marx se interessa pelo dinheiro como forma geral da riqueza. O mesmo em Keynes, que dá muitas voltas, mas formula a questão no conceito de preferência pela liquidez: quando todos convergem para a forma de riqueza universal. Isso é importante em Marx. Ele repete que o capitalismo, mais que um regime de produção de riquezas, é o regime que busca a acumulação de riqueza abstrata.
Valor: A crise reacendeu o interesse por Marx. É um interesse fecundo ou passageiro?
Belluzzo: Com o colapso do regime soviético, Marx foi escanteado, como se tivesse dito algo sobre o socialismo real. Agora, a literatura sobre Marx está crescendo muito. Terry Eagleton e Nouriel Roubini escreveram sobre os acertos de Marx. Mas o ponto não é se está certo ou errado. Ele tem uma visão do capitalismo, seu funcionamento, as formas que assume. O leitor é que vai decidir se ele está certo ou errado. O esforço, hoje, é para se livrar dos antolhos do marxismo ortodoxo.
“O Capital e Suas Metamorfoses”
Luiz Gonzaga Belluzzo. Editora: Unesp. 192 págs., R$ 32,00
Sinopse
Diante do fracasso da tentativa de alentar o desenvolvimento no pós-guerra, o mundo pode estar passando por uma “grande transformação” no campo econômico. Contrariamente ao que seria desejável, no entanto, a economia estaria tratando de libertar-se dos “grilhões da sociedade”.
Ao desenhar, nesta obra, tal perspectiva sombria, que resultaria da frágil resistência à redução da vida humana à mera relação de troca, Luiz Gonzaga Belluzzo também sinaliza para uma saída. Ainda que esta tenha de brotar de uma situação limite, em que se torne intolerável para a maioria das pessoas a sensação de estar nas mãos de “tropas de uma ‘racionalização’ sufocante”.
Um ou outro cenário, de todo modo, brotam da mesma matriz: o capitalismo contemporâneo, que o autor aborda em alentadas análises nos cinco ensaios deste livro. No percurso para flagrar as artimanhas do capital e tentar compreender as consequências de suas metamorfoses, o autor retorna principalmente a Marx e Keynes, demonstrando a proximidade do pensamento de ambos e sua utilidade para analisar a economia contemporânea em sua complexidade. Mas ele também leva em conta aqui a voz dos movimentos sociais contestatórios.
Belluzzo constrói, assim, um panorama de múltiplas faces acerca de algumas questões centrais do mundo moderno, como a financeirização da economia e a incapacidade do desenvolvimento capitalista de atender aos anseios de ascensão, que incentiva e do qual se nutre. O autor também discute a visão de Marx sobre o caráter despótico do capitalismo e se contrapõe à tese de que o domínio das finanças na economia denunciaria um “descolamento” da valorização fictícia dos estoques de riqueza em relação à geração de valor na esfera produtiva – para o Belluzzo, ao contrário, essa hegemonia revela o desenvolvimento de novas formas, ainda mais avançadas, de valor.
Trechos
“O capitalismo da grande indústria, da finança e da construção do espaço global, entre crises e recuperações, exercitou os poderes de transformar e dominar a natureza – até mesmo de reinventá-la –, suscitando desejos, ambições e esperanças. A versão panglossiana desses prodígios nos ensina que a admirável
inclinação para revolucionar as forças produtivas hão de aproximar homens e mulheres do momento em que as penas do trabalho subjugado pelo mando de outrem seriam substituídas pelas delícias e liberdades do ócio com dignidade.”
“O sistema de valores e de concepções de vida dos Bobos [de Bobos in Paradise, de David Brooks]não admite o fracasso como resultado da operação de forças que não controlam. Essa válvula de compreensão da vida e de descompressão psicológica não funciona nas subjetividades inchadas pelo individualismo narcisista. A frustração e o medo se transmutaram em revolta contra o Outro.”
Publicado em Valor Econômico – 25/06/2013
Autor(es): Por Viana de Oliveira | Para o Valor, de São Paulo