A maioria de extrema direita na Suprema Corte dos EUA age como assassina serial da democracia nos EUA. Primeiro foi “Bush v. Gore”; depois, os “Cidadãos Unidos”; agora, estriparam a Lei dos Direitos de Votar [orig. Voting Rights Act] –, mas parte significativa da mesma história criminosa leva a marca do suprematismo branco – escreve Robert Parry.

Seja qual for o palavreado ou a torturada lógica ‘de lei’ que se aplique, a feia verdade é que a maioria de extrema direita que domina hoje a Suprema Corte dos EUA está em guerra contra a democracia norte-americana. Ou, dito de outro modo: aqueles juízes [no Brasil, não se sabe por quê, os juízes da Suprema Corte brasileira, o STF, são chamados ‘ministros’] entendem que ninguém estaria obrigado a respeitar decisão democrática, no caso de ser decisão tomada por maioria de votos de negros e mulatos.

Os cinco juízes Republicanos que hoje votam na Corte Suprema dos EUA sabem perfeitamente que estados que têm macabra história documentada de legislação racista, premiados com o fim das garantias antes vigentes de igualdade para todos, rapidamente cuidarão de impor  mudanças nas leis eleitorais estaduais, para dificultar o mais possível o voto de negros, mulatos, hispânicos. Os mesmos cinco juízes também sabiam que, em 2010, ao dar ganho de causa ao movimento “Cidadãos Unidos” [orig. Citizens United] estavam abrindo as comportas para que conhecidos super bilionários de extrema direita inundassem de dólares as campanhas políticas e a imprensa-empresa, veiculando propaganda de mistificação.

O cenário para esse ataque jurídico-assassino contra a democracia nos EUA já estava construído, quando a Corte [presidida pelo juiz] Roberts, já antes da Corte [presidida pelo juiz] Rehnquist, agiu para suspender a contagem de votos na Flórida, e, de fato, impôs George W. Bush na Casa Branca – apesar de derrotado no voto popular nacional e também derrotado no estado ‘indeciso’ da Florida pelo Democrata Al Gore, se a contagem física de votos fosse levada a término, como ordenava a lei estadual. (Todos os detalhes em meu livro Neck Deep [Afundados até o pescoço].[1])

O caso Bush v. Gore foi o primeiro indicador claro de que a moderna Direita Republicana estava decidida a usar a Suprema Corte como arma para renegar a democracia e assegurar que os Republicanos continuassem a controlar o governo dos EUA. A direita, naquele momento, já estava decidida a manter o próprio poder; e a usar, para tanto, quase qualquer meio possível.

Por mais que a presidência de Bush tenha sido um desastre para os EUA e para o mundo, foi maná caído do céu para a maioria da Corte Suprema, de direita. Bush conseguiu substituir dois juízes que não ajudaram na sua ‘eleição’ – William Rehnquist e Sandra Day O’Connor – por extremistas de direita: John Roberts e Samuel Alito.

Os dois indicados por Bush empurraram a Corte Suprema ainda mais para a direita e deram aos Republicanos a esperança de conseguir conter a onda crescente de mudanças demográficas pela qual passam os EUA e que se refletiram na eleição de Barack Obama em 2008 – o primeiro presidente afro-americano da história dos EUA. Com a nova composição, a Corte Suprema dos EUA tinha meios reais para (re)impor o poder branco.

O caso dos “Cidadãos Unidos” de 2010 foi o golpe seguinte, cujo autor foi a Corte [presidida pelo juiz] Roberts, no ‘STF’ dos EUA: tornou legal o gasto de “dinheiro obscuro” [de fonte não declarada] para a propaganda eleitoral (veiculada sempre pela imprensa-empresa, televisões e jornais) nos EUA. Aquela avalanche de dinheiro da direita – combinada com a crescente frustração entre os eleitores, ao final dos dois primeiros anos da presidência de Obama – ajudou a eleger as maiorias Republicanas mais sordidamente direitistas que os EUA jamais viram na Câmara de Deputados e nas Assembleias estaduais por todo o país.

Dado que 2010 foi ano de censo, os Republicanos estavam exatamente onde desejavam estar para tomar muitas e muitas cadeiras no Congresso e usá-las para concentrar os votos Democratas e da esquerda em alguns poucos distritos isolados, montando maiorias conservadoras sólidas em outros distritos cuidadosamente traçados no mapa. (A redistribuição de eleitores em novos distritos eleitorais traçados ‘a dedo’ garantiu que continuasse a haver maioria Republicana na Câmara de Representantes, apesar de os candidatos Democratas terem tido mais de um milhões de votos, que os Republicanos, em todo o país, em 2012.)

Suprimindo eleitores

O resultado da eleição de 2010 também capacitou as câmaras de deputados estaduais controladas por Republicanos para que começassem a coordenar estratégicas para suprimir votos de negros, hispânicos, jovens e pobres – vistos como eleitores predominantemente Democratas. Foi quando, por todo o país começaram as surgir leis que obrigavam a exibir documento com foto, aumentaram-se os requisitos a ser cumpridos pelos candidatos e reduziu-se o tempo funcionamento das sessões eleitorais[2].

Mas esse plano não levou a todos os resultados que a direita esperava obter, porque ainda encontrou o obstáculo da Lei dos Direitos do Eleitor, sobretudo nos estados ‘Confederados’, como o Texas, onde a lei geral continuou a amparar o eleitor. Servindo-se dela, o Departamento de Justiça conseguiu coibir inúmeros efeitos das tentativas para dificultar a ida do eleitor às urnas. E as minorias, em 2012, ainda asseguraram votos chaves para a reeleição de Obama.

Assim sendo, a Lei dos Direitos do Eleitor, de 1965 (confirmada pelo Congresso em 2006), passou a ser o alvo prioritário da Suprema Corte dos EUA, presidida pelo Juiz Robert.

Em decisão histórica, ontem, 3ª-feira, 25/6/2013, os cinco juízes de extrema direita que operam na Suprema Corte dos EUA – Roberts, Alito, Antonin Scalia, Anthony Kennedy e Clarence Thomas – estriparam, esquartejaram a Lei dos Direitos do Eleitor.[3]

Os cinco juízes nem se preocuparam com apresentar qualquer argumento lógico ou de Direito Constitucional. O único ‘argumento’ apresentado foram mapas demográficos mostrando que os eleitores negros concentravam-se em áreas que a Lei dos Direitos do Eleitor protegia e que, nessas áreas, o percentual de eleitores negros era em geral equivalente, e às vezes superior, ao percentual de eleitores brancos. Assim sendo… brancos e negros não estariam sendo tratados como iguais perante a lei… A lei pois seria antidemocrática… porque protegia eleitores negros contra eleitores brancos…[4]

Mas a verdade é que a lei estava funcionando na direção de proteger minorias. E a nova lei nada faz na direção de impedir que voltem a ser implementados os mesmos velhos truques usados antes contra as minorias, contra os quais a lei se fez. Como disse a juíza Ruth Bader Ginsburg, contra a modificação, ninguém apresentou qualquer argumento a favor de a Suprema Corte atropelar decisão do Congresso, reafirmada há apenas sete anos.

“Excluir da lei a exigência de nada modificar sem autorização, em lei vigente que está tendo sucesso no objetivo visado, é como jogar fora o guarda-chuva, sob uma tempestade, porque, com ele aberto, você está conseguindo não se molhar” – escreveu Ginsburg.

Não há qualquer dúvida de que a Constituição dá ao Congresso poder explícito para aprovar leis que protejam o direito de votar dos negros nos EUA. A 15ª Emenda diz que “O direito de votar dos cidadãos dos EUA não será negado nem reduzido pelos EUA nem por qualquer dos estados, por motivos de raça, cor, ou condição preexistente de escravidão.” E acrescenta: “O Congresso terá poder para fazer valer esse artigo mediante a legislação adequada.”

Essa emenda teve de ser ratificada em 1870 durante a Reconstrução, o que implica dizer que muitos brancos nos estados do sul e em outros distritos racistas jamais a aceitaram como legítima. Com o fim da Reconstrução, em 1877, os brancos da Velha Confederação trataram de reafirmar o controle político e usaram táticas as mais variadas para impedir que muitos negros votassem.

Só em 1960, com o Movimento dos Direitos Civis, o governo federal reafirmou sua decisão de garantir justiça também aos afro-norte-americanos, inclusive o direito de votar: foi quando foi aprovada a Lei dos Direitos de Votar, de 1965. Porque o Partido Democrata nacional muito se empenhou para divulgar essas mudanças e fazer aprovar a nova legislação, muitos brancos, nos estados do sul, filiaram-se ao Partido Republicano.

Esse ‘recrudescimento’ na organização das elites brancas deu impulso à eleição de Richard Nixon, depois, de Ronald Reagan, e de George H.W. Bush – todos esses apelaram aos eleitores brancos, em campanha carregada de slogans racistas, embora construídos em linguagem cifrada. A estratégia Republicana incluiu meter juízes racistas na Suprema Corte, sempre atentos ao projeto de fazer retroceder os ganhos dos anos 1960s no campo dos direitos civis.

Para que seus clamores racistas soassem menos ofensivos, a direita começou a apresentar-se como aderida à mitologia fundacional dos EUA, com renovados apelos aos “direitos dos estados”, numa narrativa histórica inventada segundo a qual os principais “Modeladores da Constituição” [orig. Framers of the Constitution] – gente como George Washington e James Madison – desprezariam a ideia de qualquer governo central forte. A verdade é quase o perfeito oposto disso.

‘Reposicionar a marca’ dos racistas

O que a direita estava fazendo com sua história-simulacro era abrir caminho para que neoconfederados neoliberais se ‘reposicionassem’ (como marca, no mercado): dos declarados apelos ao racismo simbolizados pela bandeira Stars and Bars,[5] substituída pela bandeira da Guerra Revolucionária, com uma cobra enrolada e o motto “Não mexa comigo”.[6] Mas, apesar das imagens de apelo mais popular de 1776 para 1860, a filosofia ‘de fundo’ era o mesmo racismo.

Essa transformação cosmética da direita norte-americana – das alusões cruas à Velha Confederação às referências mais palatáveis à Guerra Revolucionária – apareceu mais visível depois da eleição de Barack Obama em 2008. A direita reconheceu que as mudanças na demografia que haviam possibilitado a eleição de um negro já ameaçavam frontalmente a sobrevivência da supremacia dos brancos.

Assim, o movimento Tea Party – invocando o mito fundador que a direita cuidadosamente reinventara – organizou-se para “retomar para nós o nosso país” [orig. take our country back], ajudada pelo financiamento massivo que lhe vinha dos irmãos Koch e de outros bilionários da extrema direita.

A atual mensagem da direita norte-americana continua ocultada numa embalagem que leva estampada a palavra “liberdade” – no sentido em que a palavra era usada por proprietários de escravos e pelos Confederados durante a Guerra Civil. Toda a mensagem da direita nos EUA visa exclusivamente a promover a “liberdade” dos brancos norte-americanos, para voltarem a reinar sobre – e manter sob rédea curta – os norte-americanos não brancos.

Não está claro sequer se muitos norte-americanos brancos de direita aceitam ou não que negros e outros não brancos merecem plena cidadania, posição que muitos no Tea Party parecem partilhar com seus ‘líderes’ – proprietários de escravos ‘Fundadores’, vários grupos no sul de antes da Guerra Civil, os Confederados e a Ku Klux Klan.

Esse sentimento estava no coração das leis Jim Crow durante a segregação no sul, que negava direitos de cidadania aos negros, apesar do que determinam as 14ª e 15ª emendas; é visível também na persistência com que a direita negou direitos de votar a moradores do District of Columbia, muitos dos quais são negros e enfrentam “taxação sem representação”; é visível ainda na obsessão com que a direita mantém-se agarrada à teoria conspiracionista segundo a qual Obama teria nascido no Quênia; e incendeia a oposição Republicana que impede absolutamente qualquer reforma da imigração, porque abre a possibilidade de cerca de 11 milhões de imigrantes sem documentos – a maioria dos quais são hispânicos – receberem direitos de cidadania.

É esse medo de real democracia – com a promessa genuína de “uma pessoa, um voto” – que levou a maioria de direita que hoje comanda a Suprema Corte dos EUA a dar mais esse presente ao neoconfederados dos EUA, para inverter a tendência de os eleitores construírem, nas urnas, uma crescente consciência de igualdade racial no país.

Se a era dos direitos civis começou nos anos 1960s como uma espécie de Segunda Reconstrução – metendo justiça e decência guela abaixo até dos brancos sulistas mais racistas –, então não parece haver dúvidas de que a decisão dos juízes Roberts, Scalia, Kennedy, Thomas e Alito do Supremo Tribunal Federal (STF!) dos EUA equivale a pautar, em 2013, o início de uma nova era do mais repugnante racismo legal nos EUA.

Depois que a Lei dos Direitos de Votar foi estripada na 3ª-feira, velhos operadores dos Velhos Confederados esfregaram as mãos de júbilo, já calculando quantos votos de eleitores negros e mulatos poderão subtrair nas próximas eleições, para engordar o número de Republicanos brancos no Congresso.

“Com a decisão de hoje” – disse Greg Abbott, do Ministério Público do Texas, “a lei que obriga o eleitor a exibir a Cédula de Identidade com foto entra em vigor imediatamente. E podem-se usar mapas de novos distritos eleitorais, aprovados em Assembleias estaduais, sem ter de esperar aprovação do governo federal.”

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[1] https://salsa.democracyinaction.org/o/1868/t/12126/shop/shop.jsp?storefront_KEY=1037

[2] Nos EUA, as eleições nem sempre são aos domingos e há zonas eleitorais q só funcionam em horário comercial, o que torna impossível o voto para muitos trabalhadores [NTs].

[3] Ontem, a Suprema Corte introduziu duas modificações na Lei dos Direitos do Eleitor: (1) excluiu o artigo que tornava a lei obrigatória em todos os estados. Agora, o Congresso terá de reescrever a fórmula demográfica segundo a qual a lei se aplicará, estado a estado (tarefa que os especialistas consideram impossível; assim, sem nova fórmula, as garantias q a lei assegurava aos eleitores ficaram, de fato, suspensas); e (2) excluiu o artigo, da seção 4 da Lei, que obrigava todos os distritos e estados a respeitar a Lei ‘nacional’, impedindo-os de introduzir mudanças locais sem prévia aprovação do Departamento de Justiça; as mudanças – todas e quaisquer – foram, na prática, liberadas. Para entender isso, é preciso ter em mente que a lei, antes, visava a proteger minorias étnicas e raciais; essa proteção foi retirada (mais e melhores detalhes sobre isso em http://www.timesleader.com/news/news/628007/Supreme-Court-negates-key-part-of-Voting-Rights-Act) [NTs].

[4] É exatamente o mesmo argumento que o PSDB apresentou, no Brasil-2012-13, para votar contra a Lei de Quotas para Pobres: disseram que criar quotas mínimas a serem preenchidas por pobres seria proteger os pobres e não proteger igualmente os ricos; que se se reservassem quotas para negros, a lei seria racista, porque estaria vendo diferenças entre brancos e negros… Esse é EXATAMENTE o mesmo argumento que o Magnolli vive a repetir no jornal O Estado de S.Paulo e na tela da rede Globo [NTs].

[5] Lit. “Estrelas e barras”. A primeira bandeira dos EUA, dos Confederados. Pode ser vista em http://en.wikipedia.org/wiki/Flags_of_the_Confederate_States_of_America [NT]

[6] Vê-se em http://www.gadsden.info/history.html

Publicado em 25/6/2013, Robert Parry, Consortium News,
http://consortiumnews.com/2013/06/25/supreme-courts-war-on-democracy/

Traduzido pelo coletivo Vila Vudu