Discurso afetuoso


Ó poetas de gabinete,
Que da vida sabeis apenas a lição dos livros,
Vossa poesia é um jogo de palavras.
Vossa poesia é toda feita de habilidades de estilo,
Sem a marca um pouco suja da experiência vivida.

 

Não sabeis de nenhuma espécie de sofrimento,
De nenhum dos aspectos sedutores do mal,
Não sabeis de nada que está realmente na vida.


Não vos inquieta o desejo de quebrar a monotonia,
A exasperada fadiga das coisas iguais,
A saborosa audácia do mau gosto.


Tudo em vós é correto, frio, sem surpresas.


Ah, tudo que sabeis é através dos livros.
Não sofreis a curiosidade viciosa das aventuras,
Nem a mágoa dos meses vividos à toa,
Nem o bocejo que a mulher tão desejada provocará um dia.
Não conheceis o remorso das devassidões
E a desvairada esperança que há num amanhecer depois
da noite perdida.


Para vós não existe a vida: existem os temas poéticos.

 

 

Ribeiro Couto
Publicado no livro Um Homem na Multidão (1926).
In: COUTO, Ribeiro. Poesias reunidas. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1960. p.131