Grito latente que chega às ruas desafia políticas de cultura
A formulação de políticas públicas para a cultura e para a juventude, que se espalham pelo país, depende da compreensão deste fenômeno que surgiu das ruas, como um grito que estava latente na juventude. Esta é a percepção e o desafio que os participantes do encontro se propuseram nos debates que prosseguem neste sábado.
O presidente da Fundação Maurício Grabois, Adalberto Monteiro, procurou distinguir que, embora o “brado das ruas” tenha manifestado com muita veemência os temas da saúde e da educação, é inevitável observar que a cultura comparece de maneira transversal entre as reivindicações. “Uma das motivações para as pessoas terem ido para as ruas é a baixa qualidade da vida urbana, a imobilidade, a insegurança, um mal–estar se expressa culturalmente em suas diferentes formas”, disse Monteiro. Para ele, o direito de usufruir de cultura e dos espaços culturais comparece como parte desse escopo entendido como qualidade de vida urbana.
O professor da Escola de Comunicação e Artes da USP, Celso Frederico, apresentou um painel sobre a relação entre os comunistas, o marxismo e a esquerda, e a produção cultural no Brasil, desde o início do século XX. Em sua análise, entre tropeços, falhas estratégicas de interpretação e até mesmo rejeição da intelectualidade e dos artistas, o comunismo brasileiro nunca deixou de ter uma posição e intervenção clara sobre o assunto. Como ele demonstrou, essa trajetória permite entender algumas referências para o atual cenário cultural, possibilitando a reflexão sobre a intervenção dos comunistas nas políticas de governo.
Como ele pontuou, a assunção de artistas comunistas influentes no cenário cultural brasileiro revela a importância que o debate cultural tinha para o Partido Comunista do Brasil, e a forma como moldou a cultura em muitos momentos chaves da história nacional. O ápice dessa influência e afluência cultural se deu na década de 50, com a admissão pelos marxistas de que “se há um desenvolvimento capitalista no país, é preciso influenciar”. Como dizia, Roberto Schwarz, naquele momento, o país ficou irreconhecivelmente inteligente com intelectuais e artistas como Niemeyer, Paulo Freire, os músicos da bossa nova, os cineastas do cinema novo e do teatro de arena, e tantos outros. Frederico destaca o modo como temas centrais do debate político apareciam em obras do cinema novo, como a questão agrária.
Outro destaque, segundo o professor, são os Centros Populares de Cultura (CPCs) da juventude estudantil com suas “peças de teatro político de agitação e propaganda”, que influenciaram gerações de dramaturgos e atores. “São muitas as personalidades do teatro, hoje, que dizem que tudo começou com os CPCs. Não sei se aquelas peças tinham valor estético, mas tinham valor cultural, certamente”, avalia ele.
Foi um momento de forte ligação da juventude com as questões do Brasil, quando viajavam pelos grotões para conhecer a “realidade brasileira”. “Depois vieram as viagens de mochileiros pela América Latina”.
Ao mesmo tempo, havia uma crise econômica e um grande impasse político com vários projetos em disputa. “Em contraponto à frase de Schwarz, temos o Febeapá de Stanislaw Ponte Preta, o Festival de Besteiras que Assola o País”, lembrou Frederico, referindo-se ao reacionarismo que se hegemonizou após o golpe de 1964.
Embora a repressão tenha sido brutal, principalmente contra os militares nacionalistas e democratas, Frederico avalia que a classe média foi poupada de uma repressão mais brutal, possibilitando que, durante algum tempo, a juventude encontrasse na cultura e nas artes um canal de expressão.
A partir de uma dupla leitura do golpe, diametralmente oposta, passou a haver uma defesa de arte nacional e popular, outros defendiam um apolítica cultura classista. Vertentes que dialogavam com as leituras de que o Partido Comunista teria radicalizado à esquerda (movimento de marinheiros e sargentos) propondo uma busca de novas alianças para derrotar a ditadura, contra a visão de que teria havido um desvio de direita para apoiar Jango, propondo uma política de enfrentamento de classe contra classe ou luta armada. “Na década de 70, no teatro operário, vai aparecer com mais clareza esse classismo cultural”, cita, mencionando o clima de catarse que permeava as peças, com forte envolvimento emocional de todos com a peca.
De qualquer forma, o Partidão tinha a hegemonia no campo cultural, por meio de uma estética realista que se expressava por meio de grupos de teatro como o Opinião. “O Partidão começou a perder força com o avanço da ideia da luta armada”, avalia ele, citando peças que acenavam pra isso, entregando fuzis para senhoras na plateia.
Segundo ele, essas peças circulavam em torno de um público muito restrito formado pelo movimento estudantil. “Quando a direita se incomoda e o CCC [Comando de Caça aos Comunistas] começa a atentar, o teatro pede segurança aos estudantes”, diz Frederico. Segundo ele, o Teatro Oficina, com peças como “O rei da vela” e “Roda viva”, anunciando o tropicalismo, põem fim à estética realista, na busca por empatia com o público. Frederico lembra entrevista de José Celso Martinez Correia, que dizia que o objetivo era colocar o público cara a cara com sua miséria, a miséria de seu privilegio as custas dos mais pobres.
Ainda assim, essas correntes conviviam, somando-se à “esquerda festiva” e seu teatro da boa consciência, gerando um curioso e rico debate entre realismo, politica classista e revolucionária ou contracultura, sufocada mais tarde pelo AI5.
Frederico ainda criticou a “valorização ingênua da cultura popular” que sempre reaparece na esquerda. Uma concepção de que todos são intelectuais e artistas. “Gramsci não achava que a cultura popular era progressista”, afirmou, citando uma outra vertente que costuma atravessar o tempo.
Com essa perda de hegemonia da esquerda sobre a cultura, surge também uma nova postura do Estado, que de censurar, passa a financiar, criando, então uma política cultural, por meio da Embrafilme, Instituto Nacional do Cinema a do Livro, Funarte, entre outros órgãos, assim como a elaboração de uma política nacional de cultura pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). “O governo começa a concorrer com artistas independentes, promovendo um espantoso desenvolvimento da cultura”, afirma.
Os militares viam a integração nacional como um objetivo nacional permanente e passam a financiar o desenvolvimento dos meios de comunicação de massa. “O Ministério da Comunicação é pensado sob o prisma da da segurança nacional”, contou o pesquisador. Neste momento, parte da classe artística está no exílio, parte nas companhias teatrais com lógica empresarial e outra parte cooptada pela dramaturgia da Rede Globo. “Alimentavam a ilusão de passar alguma ideia pela Rede Globo, furando o bloqueio ideológico”, diz. Havia ainda um pessoal que foi para o teatro amador nas periferias e ficando lá.
“Olhando para trás com os óculos de hoje, havia uma concepção de que a cultura era eminentemente subversiva com viés à esquerda. A arte se contrapunha ao mundo alienado, do dinheiro e da mercadoria, com valores humanos. Hoje, a mercantilização da cultura com a indústria e a culturalização da economia relativiza esse conceito”, diz o pesquisador.
De repente os donos do dinheiro se tomaram de amores pela cultura. Com esta imagem, Frederico mostra como o cenário cultural muda na nova economia brasileira. “Cultura é um bom negócio”, dizia documento do Governo FHC, estimulando o investimento de bancos e grandes grupos econômicos na cultura, a partir da renúncia fiscal. Este conceito evolui, hoje, para a noção empresarial de que “a economia criativa” é um novo ramo dos negócios. “A cultura passa a seguir a lógica especulativa, com bancos comprando obras de arte e alavando artistas plásticos”.
Frederico citou a polêmica edição da revista Carta Capital, que liga ciclos da economia aos ciclos culturais, desde a revolução de 30, com a força da literatura regional, o ciclo JK com a bossa nova, o cinema novo e a arquitetura modernista, para concluir que nos dez anos do “ciclo lulista” há um vazio cultural. “Pode não haver uma grande produção cultural, mas há uma proliferação da cultura na periferia”, afirma ele. Para concluir, Frederico diz que os “nem nens”, aqueles que não têm nem escola nem trabalho formal se tornaram sujeitos culturais.
“O povo preto e pobre passa a produzir uma intensa cultura, com seus saraus, coletivos de hip hop, comunidades do samba, literatura marginal, convivendo com elementos regressivos com o funk da ostentação ou o forró universitário e seu conteúdo machista, por exemplo”. O professor Frederico fez uma provocação a que todos refletissem sobre qual a intervenção do comunismo e das políticas públicas, neste novo cenário de cultura vinculada ao mercado, somada à forte produção cultural que desponta nas periferias.
Implosão reflexiva
Após a apresentação didática e marcada pela linearidade cronológica do pesquisador, o músico Jorge Mautner “desorganizou” a reflexão, com seu discurso pluralista, tropicalista, simultaneista, autofágico, includente e provocativo. Com isso, o compositor causou reações apaixonadas da plateia, que passou a dialogar nos mesmos termos, implodindo um eventual pragmatismo que se pretendia ter nesta primeira mesa, deixando a elaboração formal para o dia seguinte. Durante as intervenções da plateia, houve até quem se expressasse sintetizando suas ideias por meio de um improviso poético.
Mautner vê com otimismo e naturalidade a jornada de manifestações de junho. Para ele, a internet amplifica o caráter antropofágico da cultura brasileira, ao absorver, a sua maneira, o modo como as juventudes de todo o mundo vêem se manifestando. Em sua opinião, os comunistas precisam estar atentos a essa realidade, ouvir com atenção o que têm a dizer e dialogar apropriadamente com esse mistério.
A artista plástica Mazé Leite também considera que “havia e ainda há” um estado de latência que explodiu em junho. “É um momento no mundo, inclusive, que se expressa de forma muita rica e complicada, que precisamos entender como olhar para isso com um olhar novo”, questionou. Ela entende a proposiçãoo do professor Frederico como um desejo pessoal de interpretar a realidade e o que é a cultura brasileira, hoje. “Temos que contar com nossa tradição marxista, em que a análise parte do dado concreto que a realidade mostra”.
A atriz Ana Cristina Petta, a Tininha, comentou as intervenções apontando o clima de participação política que tem ensejado a sociedade civil, no momento. Ela citou encontro de cerca de mil produtores culturais e artistas no Teatro Oficina para discutir políticas culturais e as questões da cidade. “O próprio teatro Oficina simboliza em seu corpo as contradições que a cultura enfrenta na atualidade, ao disputar com um shopping center o espaço tombado em que está”, lembrou ela.
Participaram ainda da mesa e das intervenções o coordenador do coletivo de Cultura do PCdoB, Javier Alfaya, Nereide Saviani, da Escola Nacional de Formação do PCdoB. A plateia esteve composta de produtores e gestores culturais, artistas, intelectuais, militantes de diversos movimentos, assessores de gestores e parlamentares, entre outros.Assista abaixo, a intervenção de Jorge Mautner: