Cordeiro é subsecretário-geral do Ministério de Relações Exteriores brasileiro e disse que evitaria “falar das glórias” da política externa, focando naquilo que é necessário melhorar. No entanto, é inevitável observar como o Brasil se tornou referência, especialmente nas Américas, de como deve ser a relação com a África. Segundo ele, o Itamaraty é constantemente demandado por outros países sobre que tipos de projetos são viáveis para cooperação com o continente, em sua diversidade e diferenças regionais.
Para exemplificar o vínculo umbilical do Brasil com a África, o embaixador relatou a polêmica sobre a posição do país sobre o Saara Ocidental, em conflito com o Marrocos. Embora não reconheça a República Saharaui Ocidental, o Brasil considera o território em disputa e defende na ONU o direito do seu povo a autodeterminação. “Trabalhamos no sentido humanitário, com uma série de aportes via embaixada em Argel e observadores militares brasileiros nos dois lados da disputa”, afirmou.
Cordeiro relatou o episódio da Batalha dos Três Reis, em 1578, em que a Espanha absorve Portugal, quando o rei marroquino derrota os reis aliados de Portugal. “Em São Paulo, os bandeirantes avançavam sobre a linha de Tordesilhas. Dessa forma, quando Portugal retoma sua autonomia, o Brasil já é maior que aquele acordado entre as duas potências ibéricas. Ele citou ainda o vínculo mais forte com aquele continente, por meio do aporte forçado de capital humano que transformou as Américas.
A África retribui
Mas Cordeiro destaca a necessidade de haver uma percepção da nova África, que sofre um processo de renascença nos últimos anos, com redução de conflitos, independência e avanço de lideranças políticas cientes da importância da soberania de seus países. São um bilhão de pessoas que compartilham conosco o Atlântico sul. “Por qualquer critério de análise, é um continente que se constrói e se ergue, trabalhando com suas próprias forças, desenvolvendo capacidade intelectual, industrial, com lideranças conscientes disso”, declarou Cordeiro, acrescentando que a maior parte das lideranças tenta construir uma democracia representativa com eleições regulares.
Mas a elite brasileira e sua mídia estão cegas para isso, ao considerar que a política externa do Governo Lula representa um descaminho da tradição diplomática ao dialogar com países pobres e miseráveis em vez dos EUA. E a falta de visão, literal, não ocorre apenas aqui. Como embaixador no Canadá, Cordeiro ficou espantado quando um jornal daquele país mostrou uma foto de conferência em Copenhagem em que Obama cumprimenta os chefes de estado chinês e russo, dizendo que o norte-americano está atento para o avanço dos países emergentes. O detalhe, segundo ele, é que outra foto da mesma situação, tirada de outro ângulo, mostra Lula e seus diplomatas na mesma cena, sendo que o brasileiro foi o responsável pelo encontro de todos. “O jornal do Canadá não conseguiu perceber uma nova conformação de poder internacional. Esconderam o Brasil na foto, quando era Lula que convidara Obama para conversa com o que viria a se tornar os Brics.”
Para o embaixador, o Brasil tem responsabilidade na governança global. Ele justifica de diversas formas essa obrigação. A multiplicidade de culturas e etnias vivendo juntos é um dos motivos que tornam o Brasil um lugar especial no mundo. Ele lembrou os milhões de libaneses e sírios, mais do que aqueles que vivem nos seus países de origem. A mudança de consciência racial de 8% para 52% dos negros nos censos do IBGE também são reveladores de como o país se apercebe de sua diversidade.
“O Brasil só não tem embaixada no Bahrein e no Iêmen”, diz ele, sobre África e Oriente Médio, destacando que Lula e Dilma criaram 19 novas embaixadas naquela região, demonstrando prioridade, que se reverteu em incremento do comércio e forte presença das empresas brasileiras. O Brasil apoia desde o fim da Segunda Guerra Mundial, os processos de descolonização da África. “Com exceção das colônias portuguesas”, revela ele.
Segundo Cordeiro, há uma tradição diplomática de muito diálogo interno entre divisões do Itamaraty para garantir sustentação a uma ideia, antes dela chegar ao alto da hierarquia. Esse cuidado, desde sempre, visa a evitar também as críticas públicas de que o Brasil gasta demais com política externa. Ele citou um dos destaques dessa nova relação, com a cooperação de saúde em que o Brasil instalou uma fábrica de antirretrovirais em Moçambique com participação de outras instituições sanitárias brasileiras. Esta é talvez a medida mais importante do combate à aids naquele continente.
O embaixador citou ainda a construção da Marinha da Namíbia. A defesa marítima é uma novidade no país onde piratas roubam o atum de suas águas, pois essa população sempre teve os olhos voltados para o deserto interior, em vez do oceano à frente.
Lula simplificou
Essa posição mais proativa também cria problemas para o Brasil. Existia uma crítica submissa na opinião publicada de que a estatura econômica do Brasil no mundo não permitia ralhar com outros países, principalmente com os EUA. Os países desenvolvidos, quando reconheciam a responsabilidade brasileira na governança global, era pra convidar-nos a lutar no Iraque. Por outro lado, Cordeiro revela que o Itamaraty tem reticência em afirmar a liderança brasileira, como fazem outros países. “A liderança é reconhecida por quem segue”.
Aos poucos, foi ficando claro que tipo de governança global o Brasil queria para si. Abriu universidades e implementou políticas sociais em países que precisavam, embora também contribui com a defesa da fronteira marítima do Líbano ao oferecer uma fragata com esta função. Embora complexa, o Brasil tem posição clara sobre Israel e Palestina. “O Brasil votou pelo direito aos estados de Israel e Palestina. Não só reconhecemos a Palestina como estado, como fazemos campanha para levar a América Latina para votar na ONU por um assento para a Palestina.”
O embaixador brasileiro afirma que algumas questões são tão complexas que qualquer intervenção ocidental representa uma leviandade. “Eu confesso não ter intelecto para tratar fenômenos como o islã político”, disse ele, para exemplificar o caso do conflito na Síria, que não se trata simplesmente de um ditador oprimindo seu povo, mas também de um país laico que resiste a ataques fundamentalistas islâmicos. “Washington gastou muito dinheiro acreditando que esta seria uma derrota rápida, mas o dinheiro foi parar nas mãos dos mesmos grupos combatidos no Iraque”.
Do mesmo modo, ele citou reunião entre o presidente do Egito, Mohamed Mursi, recém deposto pelos militares e a ministra Teresa Campello, para adquirir tecnologias sociais para gerar emprego e distribuição de renda. “Somos muito demandados para isso e a ministra Tereza fica até brava que mandamos muitos governos discutir isso com ela. O cadastro único é a base, grita ela!”, disse o embaixador, brincando.
Em meio a tanta complexidade diplomática, Lula simplificou a postura do Brasil em relação ao resto do mundo. “Em vez de dizer que vai tornar o Brasil uma potência nuclear, ele disse que ia fazer com que cada brasileiro tivesse três refeições por dia”. Segundo Cordeiro, esta postura teve um apelo na África, que poucos brasileiros dimensionaram.
A eleição de José Graziano para a FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura) foi ganha com o apoio da África. Cordeiro brincou dizendo que comparado com o candidato espanhol, Graziano era feio e se vestia mal. “Orientamos ele a fazer uma boca de urna dizendo: sou aquele que ajudou o Lula a tirar trinta milhões da miséria. Essa foi a bandeira dele contra o elegante espanhol”.
“O Brasil tem algo que a sociedade brasileira ainda não entendeu, mas que o os intelectuais de Harvard chamam de soft power, o poder brando”, diz ele, exemplificando com o carinho que o Haiti tem pelos brasileiros, desde que viram nos documentários de cinema da década de 1950, aquele grupo de homens negros triunfando no futebol contra o resto do mundo.
Brasil é uma força pelo bem no mundo, resume o embaixador. De acordo com ele,  todos querem ter maior relação com o Brasil, o que cria um déficit de US$ 80 bi na Agência Brasileira de Cooperação por fazer. “São recursos que significam investimentos e não gastos, como trata a imprensa”, diz ele, ressaltando que o Brasil está muito presente na África, por exemplo, por meio de suas empresas, criando mercados. “As igrejas brasileiras estão em todo lugar”, diz.
A armadilha das cisões
Em diálogo com as dificuldades apresentadas pelo embaixador, a professora Arlene Clemesha, da USP, alertou para as armadilhas que corremos o risco de cair por conhecer pouco o Norte da África e o Oriente Médio. Ela relatou a curiosidade do título dado a um artigo seu, publicado internacionalmente, que destacava o fato do Brasil ser um recém chegado ao Oriente Médio, já que Rússia, Índia e África do Sul, dos Brics, já mantinham proximidade com a região.
“Temos a vantagem do atraso, por poder se colocar de maneira a evitar problemas antigos da região”, defendeu a historiadora. Segundo ela, é preciso conhecer a história para não cair nas armadilhas de interpretação, que são muitas. Ela citou algumas das cisões fundamentais na região, como a Palestina/Israel, sunita/xiita e a aparente cisão liberalismo e islã político, “uma das maiores armadilhas”.
Arlene lembrou, por exemplo, que o atual movimento de reivindicação de democracia no Egito, não é novo, mas vem do final do século XIX, com os modernistas islâmicos. “Não podemos cair na armadilha de achar que a reinvindicação democrática não pode dar certo, por ser muito recente, porque ela tem uma história”, afirmou. Ele diz que em 1911, o Egito viveu um momento muito parecido com o atual, quando houve inclusive um forte movimento feminista. Por outro lado, é preciso ter cuidado com a interpretação negativa dos golpes de estado, pois o fracasso da independência do Egito propiciou que o golpe de 1952 fosse progressista por derrubar o rei e expulsar os ingleses.
Na opinião da arabista, a chave para entender que posição assumir em relação a estas regiões de intensa cizânia, é importante buscar sempre favorecer a soberania daquele povo. “A posição histórica do Brasil de não intervenção permite isenção e colaboração”.
A Síria, lembra ela, teve sua independência em 1918 pelas mãos de combatentes árabes. Os franceses criaram uma região alauita dentro da Síria, em 1972, composta por 12% da população, uma população que se militarizou ao entrar para o Exército como prevenção a massacres de que já foi vítima em sua história. “São cisões que praticamente se apagaram no tempo, mas que voltaram à tona no século XX com estímulo ocidental”.
A grave cisão Fatah e Hamas é outra que, analisa Arlene, foi, em última instância, resultado do boicote internacional à eleição que o Hamas venceu. “É importante conhecer as cisões e suas histórias para se posicionar com ações para minimizar uma por uma, pois cada uma delas é passível de ser minimizada”.
Para ela, é possível haver uma conciliação no longo prazo entre palestino e israelenses. Arlene critica setores judeus que acusam governos que apoiam a Palestina de serem antissemitas. “Desculpem-me, mas acusação de antissemitismo não vale mais. Esta acusação é velha e não vai convencer mais”, diz. Ela lembra, inclusive, que o Brasil tem enorme cooperação militar, comercial e intelectual com Israel.
O Saara latino
Mohamed Zrug representou a Frente Polisário, que defende a independência do Saara Ocidental, contra o Reino do Marrocos. Ele apresentou um painel histórico da evolução da luta de seu povo, expressa nos tratados internacionais e na repressão militar marroquina, apesar de inúmeros reconhecimentos da soberania saharaui pelo mundo. “A própria Onu considera este o último caso colonial na África”.
Zrug apela a posicionamentos mais contundentes da América Latina como elemento fundamental para reduzir o conflito. “Temos uma história colonial hispânica comum que nos aproxima como povos, tanto que Panamá, México e países caribenhos foram os primeiros a reconhecer a nossa independência”. Para ele, o reconhecimento de países importantes como Guatemala, Brasil , Chile e Argentina, continuam não reconhecendo. “Eu não critico as relações entre estes países e o Marrocos, mas tentativa do Marrocos de condicionar acordos contra os saharaui”.

 

A dívida com a África
Jorge Árias, do Partido Comunista de Cuba, mencionou os vínculos solidários que seu país mantém com a África. Para ele, Cuba tem laços indissolúveis com a África, devido à enorme dívida contraída com os 1,3 milhões de escravos arrastados da África.
Árias lembrou que os escravos se integraram aos exércitos libertadores contra o colonialismo espanhol. Do mesmo modo, os negros construíram o processo revolucionário cubano. “Não podemos falar de nossa nacionalidade sem a África”.
O comunista pontua que Cuba tem participação nas lutas por independência de países africanos em conflito anticolonial. “Muitos cubanos morreram para isso em Angola”. Árias destaca ainda, que, diferente dos países desenvolvidos capitalistas, Cuba não roubou nenhum barril de petróleo ou minério africano.
Cuba tem 250 projetos de cooperação em 51 países africanos. São milhares de médicos e outros cooperantes trabalhando na área da saúde. A ilha de Fidel tem uma enorme responsabilidade pelo enfrentamento a graves surtos de meningite na África.
Mesmo com seus limites econômicos, Cuba faz aportes significativos, numa permanente solidariedade com a África. Há programas de alfabetização naquele continente, e muitos jovens africanos formados em Cuba, inclusive lideranças politicas importantes do Continente Negro. “Fidel diz que ser internacionalista é saudar nossa própria dívida com a África. Esta continuará sendo nossa filosofia com aquele povo”.
Cooperação brasileira
Francisco Rubió, do Partido Pátria Livre (PPL), reafirmou a dimensão da cooperação brasileira atual com países da África. Ele contou sua experiência pessoal como professor de medicina na UFMG, quando organizou missão que era parte da agenda de cooperação com Angola na área da saúde.
Além disso, ele celebra a disposição brasileira de transferir tecnologia próprio no combate a bactérias e vírus de grande letalidade. Foi implantado em Angola um laboratório de alta contenção. “O Itamaraty e o Ministério da Defesa apoiam intensamente a cooperação militar e em saúde”.
O Brasil assinou acordo de cooperação em 1990, ainda no governo Collor, segundo Rubió. A Empresa Odebrecht teve participação na recuperação da infraestrutura após a guerra civil em Angola. Ele reconhece que a visita de Lula desencadeia essa grande cooperação com a África. “É Lula que passa a olhar para frente”. Ele citou ainda linhas de crédito, incremento do comércio, feiras de indústria e defesa, tecnologia da informação e mobilidade urbana, educação superior à distância, além de um cabo marítimo entre São Paulo e Luanda para avanças as telecomunicações entre os continentes.