Desde o início do século XX, desenvolveu-se, no campo da intelectualidade de esquerda, uma forte corrente que buscou minimizar – ou mesmo desqualificar – as contribuições de Engels ao processo de construção do marxismo. O conflito ganhou novos contornos com a publicação, nos anos 1930, dos livros Manuscritos econômico-filosóficos e A dialética da natureza. O primeiro havia sido escrito por Marx em 1844; o segundo, elaborado por Engels na década de 1870. Estes trabalhos, redigidos em períodos e sob perspectivas muito distintas, passaram a ser considerados provas definitivas da existência de profundas diferenças teóricas e metodológicas entre esses dois grandes pensadores socialistas. Engels, considerado mecanicista, positivista e economicista; Marx, dialético e antidogmático.

Entre outras coisas, Engels passou a ser acusado de ter criado os pressupostos teóricos e políticos do reformismo social-democrata e do chamado stalinismo. Os alvos principais – mas não exclusivos – dos críticos foram os seus textos filosóficos, nos quais ele buscou demonstrar a existência de um movimento dialético também na natureza. Uns o acusaram de tentar naturalizar a história humana; outros, contraditoriamente, de buscar humanizar a natureza.

Houve, assim, uma verdadeira subversão da opinião amplamente hegemônica no interior do movimento socialista até as primeiras décadas do século XX, quer na vertente social-democrata quer na comunista. Num artigo fúnebre, escrito em 1895, Lênin escreveu: “Desde o dia em que o destino juntou Karl Marx e Friedrich Engels, a obra a que os dois consagraram toda a vida converteu-se numa obra comum”. E concluiu: “o proletariado pode dizer que a sua ciência foi criada por dois sábios, dois lutadores, cuja amizade ultrapassa tudo o que de mais comovente oferecem as lendas dos antigos”. Não há nada de exagero nesta afirmação leniniana.

Os críticos muitas vezes – e infelizmente – utilizaram a própria modéstia de Engels para atacá-lo. Buscaram demonstrar que ele foi, em todos os aspectos, um pensador muito inferior a Marx. Pior: alguém que havia contribuído para descaracterizar a obra do genial amigo.

Em 1884 – ainda sob o impacto da morte de Marx –, Engels escreveu: “Durante toda a minha vida tenho feito aquilo para que fui talhado: ser um segundo violino – e creio que me tenho saído muito bem nesta função. Eu sou feliz por ter tido um maravilhoso primeiro violino: Marx.”  Numa das notas em seu Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã, seguiu no mesmo tom: “Não posso negar que antes e durante a minha colaboração de quarenta anos com Marx tive certa participação independente, tanto na fundação quanto na elaboração da teoria (…). A contribuição que dei (…) poderia ter sido trazida por Marx mesmo sem mim. Ao contrário, o que Marx fez eu não estaria em condições de fazer. Marx estava mais acima, via mais longe, tinha uma visão mais ampla e mais rápida que todos nós. Marx era um gênio; nós no máximo, tínhamos talento”. Engels via-se, no máximo, como um bom segundo violino. Mas, na sinfonia que compuseram juntos e que embalou as revoluções do século XX, o segundo violino foi imprescindível.

Se pesquisarmos o conjunto dos textos destes dois intelectuais revolucionários socialistas não encontraremos nenhum indício da existência de diferenças significativas de opinião sobre qualquer dos temas centrais tratados por eles; e sabemos, por exemplo, o quanto Marx era exigente – e mesmo intransigente – no campo da “luta de ideias”. Ele não era homem de fazer concessões políticas ou teóricas.

Marx e Engels, desde que se reencontraram em 1844, estabeleceram um trabalho em comum – procedimento raro entre pensadores de tal porte. Na juventude, produziram conjuntamente A sagrada família, A ideologia alemã e o Manifesto do Partido Comunista. Estabeleceram também certa divisão de trabalho intelectual e político. Por esse motivo, desde o início do século XX, suas obras foram publicadas conjuntamente. Fato muito criticado pelos intelectuais “marxistas” antiengelsianos.

Foi Engels, em 1887, que elucidou esta questão: “Em consequência da divisão de trabalho existente (…) tocou-me a tarefa de apresentar nossos pontos de vista na imprensa periódica, portanto especialmente na luta contra as opiniões adversas; de modo que sobrasse tempo a Marx para a elaboração de sua obra maior”. Dentro desse esquema, Engels produziu AntiDühring (1877), Do socialismo utópico ao científico (1880), As origens da família, da propriedade privada e do Estado (1884), Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã (1886) e os manuscritos que, depois de sua morte, dariam origem à Dialética da natureza. Mesmo estes textos, muito criticados pela maioria dos “marxistas ocidentais”, tiveram o dedo, ou melhor, a contribuição intelectual, do velho Marx.

No Prefácio à segunda edição de AntiDühring, o autor nos deu conta da parte que coube ao amigo nesta obra por muitos considerada problemática: “Tendo sido criada por Marx (…) a concepção exposta neste livro não conviria que eu publicasse à revelia do meu amigo. Li-lhe o manuscrito inteiro antes da impressão; e o décimo capítulo da parte segunda, consagrada à economia (…), foi escrito por Marx. Infelizmente, eu tive de resumir por motivos extrínsecos. Era, aliás, hábito nosso ajudarmo-nos mutuamente na especialização de cada um”. Eis uma prova testemunhal do crime cometido por Marx contra sua própria teoria.

Mas a bête noire dos marxistas antiengelsianos é, sem dúvida, A dialética da natureza. Os manuscritos que deram origem a ela se inseriam no combate teórico que travavam os socialistas na segunda metade do século XIX. Para cumprir esta missão, delegada pela social-democracia alemã, Engels passou oito anos estudando ciências naturais. No entanto, o trabalho não pôde ser concluído por ele, e somente em 1925 viria a público. Nascido como resposta ao materialismo vulgar – mecanicista – do século XIX, seria recebido como prova tardia de um suposto viés positivista e naturalista do autor.

Mesmo aqui, onde pensavam “pegar” apenas Engels, acabaram, indiretamente, atingindo o próprio Marx, pois este foi um leitor privilegiado dos manuscritos e, inclusive, fez comentários positivos às margens daquele trabalho. Os biógrafos afirmam que ocorreu uma intensa troca de opiniões entre os dois amigos e Marx dizia estar ansioso para ver a obra publicada. Caso haja erros positivistas neste trabalho, a responsabilidade caberia aos dois e não apenas a um deles.

Se Marx não se dedicou a escrever sobre a dialética da natureza foi porque, na divisão de trabalho já citada, esta tarefa coube a Engels. O silêncio sobre o tema não significava que Marx não o considerasse importante. Pelo contrário. Existe, inclusive, uma significativa correspondência entre ambos tratando do assunto e publicada sob o título Cartas sobre as ciências da natureza e as matemáticas.

Dentro do esquema teórico desenvolvido por eles, estavam certos ao pensar a dialética como uma lei geral do desenvolvimento tanto da natureza quanto da sociedade. Estavam corretos também ao reafirmarem que a história humana é um prolongamento da história natural. Os homens fazem parte da natureza e a ela não são estranhos. Toda ciência moderna comprova isso. É claro que – mesmo estando dentro de um mesmo esquema teórico geral – os métodos para analisar a natureza e as sociedades humanas eram diferentes, e Engels bem o sabia. Afinal, foi ele um dos fundadores do materialismo histórico. Veremos isso mais à frente.

Engels referiu-se à obra Origem da família, da propriedade privada e do Estado como a execução de um testamento: o testamento de Marx. Este “dispunha-se a expor, pessoalmente, os resultados das investigações de Morgan em relação com as conclusões da sua (até certo ponto posso dizer da nossa) análise materialista da história, para esclarecer assim, e somente assim, todo seu alcance. (…) Meu trabalho só debilmente pode substituir aquele que o meu falecido amigo não chegou a escrever. Disponho, entretanto, não só dos enxertos detalhados que Marx retirou à obra de Morgan, como também de suas anotações críticas, que reproduzo aqui sempre que cabíveis”, escreveu Engels.

Mesmo no campo da economia política, Engels foi pioneiro em relação a Marx. O primeiro trabalho dele nessa área foi Esboço de uma crítica da economia política, publicado nos Anais franco-alemães em 1843. Muitos anos mais tarde, Marx diria que esse texto era “um genial esboço de crítica das categorias econômicas”. Constatou Lênin: “A relação com Engels contribuiu, sem dúvida, para que Marx se decidisse a ocupar-se do estudo de economia política, ciência em que suas obras produziram uma revolução”. Sob inspiração de Engels, Marx começou a dar os primeiros passos no sentido da elaboração de O Capital.

Entre 1842 e 1844, Engels viveu em Manchester – uma das principais cidades industriais da Inglaterra e do mundo. Por isso mesmo, foi também o primeiro da dupla a entrar em contato com o proletariado moderno e seus representantes mais avançados, a Liga dos Justos e os cartistas ingleses. Ao voltar à Alemanha publicou A situação da classe operária na Inglaterra. Na sua breve passagem por Paris reencontrou Marx e juntos verificaram o alto grau de concordância teórica e política existente entre eles, e deram início a uma colaboração que duraria toda a vida.

Os dois chegaram quase ao mesmo tempo – por vias diferentes – aos mesmos resultados teóricos. “Em Manchester, escreveu Engels em 1885, fui levado a atentar para o fato de que os fatores econômicos, até então ignorados ou ao menos subestimados pelos historiadores, representam papel decisivo no desenvolvimento do mundo moderno. Aprendi que os fatores econômicos eram a causa básica do choque entre diferentes classes na sociedade. E compreendi que, num país altamente industrializado, como a Inglaterra, o choque entre classes sociais está na própria raiz da rivalidade entre os partidos e é de fundamental significação para traçar o curso da história moderna”. Conteúdo muito semelhante ao trecho do Prefácio à contribuição à crítica da economia política, no qual Marx fala de suas descobertas, ocorridas na mesma época. Por isso, parece infundada a afirmação de que sem Marx, Engels não teria chegado por vias próprias ao materialismo histórico.

A principal testemunha disso é o próprio Marx que, na sua Contribuição à Crítica da Economia Política, afirmou: “Friedrich Engels, com quem (…) eu mantinha constante correspondência, por meio da qual trocávamos ideias, chegou por outro caminho – consulte-se a Situação das classes trabalhadoras na Inglaterra – ao mesmo resultado que eu”. Ou seja, a descoberta e desenvolvimento do materialismo-histórico é obra inseparável desses dois formidáveis pensadores, tendo por base o que o pensamento e a ação humana haviam produzido de melhor.

Num período de sua vida, precisando complementar suas receitas sempre curtas, Marx aceitou o convite do New York Daily Tribune para produzir artigos sobre a situação europeia. O problema é que ele estava atarefado redigindo sua obra magna e ainda não dominava suficientemente o inglês. Engels, então, aceitou substituí-lo na empreitada e escreveu periodicamente para o jornal estadunidense, assinando pelo amigo. Até recentemente a verdadeira autoria desses artigos não havia sido descoberta. Uma prova a mais da generosidade de Engels e da completa afinidade de opiniões entre esses dois personagens.

Podemos dizer que esta parceria profícua continuou bem depois da morte de Marx. Por exemplo, foi Engels que publicou os livros II e III de O Capital, decifrando os verdadeiros garranchos deixados por Marx e dando-lhes certa organização. Esse fato levou alguns estudiosos, corretamente, a questionarem a ausência do nome de Engels naquela monumental obra da economia política contemporânea. Escreveu Lênin: “editando os tomos II e III de O Capital, Engels ergueu ao genial amigo um grandioso monumento no qual, involuntariamente, tinha gravado também o seu próprio nome em letras indeléveis. Estes dois tomos de O Capital são, com efeito, obra de ambos, de Marx e Engels”.

O pesquisador soviético David Riazanov, baseando-se em Lênin, disse ser Engels um “colaborador invisível” na elaboração dos artigos de Marx que comporiam o livro Dezoito de Brumário de Louis Bonaparte. Esta afirmação está assentada numa correspondência de Engels a Marx, datada de 3 de dezembro de 1851 – ou seja, um dia depois do golpe de Estado. Vamos à carta: “A história da França” – escreveu Engels – “alcançou um estágio completamente cômico. Não poderia haver nada mais ridículo que esta paródia de 18 Brumário realizada em tempos de paz, com a ajuda de soldados descontentes, pelo ser mais insignificante do mundo e que não encontrou até agora (…) nenhuma resistência (…). Nem torturando o espírito durante todo um ano se poderia criar comédia mais linda. Na verdade, parece que o velho Hegel dirige de sua tumba a história no papel de espírito mundial, cuidando com a maior atenção a que todos os acontecimentos apareçam duas vezes: a primeira sob a forma de tragédia e a segunda na forma miserável de farsa. Caussidiere por Danton, Louis Blanc por Robespierre, Barthelemy por Saint-Just, Flocon por Carnot, e o lunático Louis Napoleão, com meia dúzia de oficiais desconhecidos e cheios de dívidas em vez do pequeno cabo Napoleão I com sua turma de marechais”. Estes palavras seriam reproduzidas quase literalmente no início da magistral obra de Marx, considerada um primor na aplicação do método dialético ao estudo de uma conjuntura histórica.

Não deixa de ser irônico que um dos maiores críticos do positivismo e do economicismo no interior do movimento socialista tenha sido, posteriormente, acusado como seu principal introdutor e incentivador. Justo Engels, que tinha plena consciência dos perigos que representavam esses desvios teórico-metodológicos. Por isso mesmo, dedicou seus últimos anos de vida a combater aqueles que acreditavam ser a sociedade um simples reflexo mecânico da base econômica e valorizar a importância das outras esferas sociais, como a ideologia e a política.

Numa carta a Bloch, escrita em 1890, afirmou: “Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última instância determina a história é a produção e a reprodução da vida material. Nem Marx nem eu nunca afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isto. Se alguém tergiversa, e modifica afirmando dizendo que o fator econômico é o único fator determinante, converterá aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda”. Na sua obra mais polêmica, A dialética da natureza, Engels criticou duramente os que advogavam uma “concepção naturalista da história”, pois estes encaravam “o problema como se exclusivamente a natureza atuasse sobre os homens e como se as condições naturais determinassem, como um todo, o seu desenvolvimento histórico. Essa concepção unilateral esquece que o homem também reage sobre a natureza, transformando-a e criando para ele novas condições de existência”.

Em Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã escreveu: “a história do desenvolvimento da sociedade difere substancialmente, em um ponto, da história do desenvolvimento da natureza. Nesta (…), os fatores que atuam uns sobre os outros e em cujo jogo mútuo se impõe a lei geral, são todos agentes inconscientes e cegos (…). Ao contrário, na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam movidos pela reflexão ou a paixão, perseguindo determinados fins; aqui, nada acontece sem uma intenção consciente, sem um fim proposto”. Nada mais distante do determinismo e do fatalismo econômico.

Segundo David Mclellan, “Engels explorou seu imenso talento nas áreas mais variadas possíveis: foi linguista de primeira categoria, importante crítico militar, pelo menos se igualou a Marx como historiador, foi pioneiro da antropologia e reconhecido orientador de uma dúzia de partidos marxistas então emergentes”. Sobre a capacidade de Engels enquanto historiador, afirmou Perry Anderson: “Vem sendo moda depreciar a contribuição relativa de Engels na criação do materialismo histórico. Àqueles que se acham ainda inclinados a aceitar esta difundida noção, é necessário dizer calma e incisivamente: os juízos históricos de Engels são quase sempre superiores aos de Marx. Ele possuía o conhecimento mais profundo da história europeia e uma compreensão mais segura das suas estruturas sucessivas e relevantes”. Entre suas contribuições estaria a análise do fenômeno do bonapartismo na França e na Prússia.

Um detalhe importante: quando se retomou o projeto de edição das obras completas de Marx e Engels (a Mega II) novamente foi colocado o problema de publicar ou não os textos desses dois autores conjuntamente numa mesma coleção. A conclusão a que chegaram os estudiosos de várias universidades e instituições é de que seria impossível separá-las. Manteve-se, assim, a mesma linha editorial adotada pela social-democracia alemã e pelos pesquisadores soviéticos. O cientista político Michael Krätke afirmou: “a publicação de todos os manuscritos de Marx deveria colocar um fim na ‘exagerada e ilimitada repreensão feita a Engels’”. Continua ele: “Enquanto não se tinha acesso aos manuscritos, essa crítica era puramente especulativa, pois se apoiava em falsificações facilmente demonstráveis do texto marxiano. Hoje, porém, elas podem ser caracterizadas como sendo insustentáveis”.

Afirmar a grande afinidade intelectual e política entre Marx e Engels – uma afinidade muito superior à existente entre outros pensadores – não significa dizer que não houvesse diferenças entre eles. Elas existiram, mas foram secundárias comparadas com o muito que havia em comum entre eles.

* Este texto é uma versão ampliada da apresentação feita ao livro Friedrich Engels e a ciência contemporânea, publicado pela Editora da Universidade Federal da Bahia.

** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

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