Em ato realizado ontem na Câmara dos Deputados, integrantes do Movimento Nacional em Defesa da Saúde Pública, o Saúde + 10, entregaram projeto de iniciativa popular que visa garantir 10% da receita da União para Saúde. O projeto de lei complementar recebeu quase 1,9 milhão de assinaturas de apoio em todo o país e destina 10% da receita corrente bruta da União para a Saúde, o que daria um adicional de R$ 40 bilhões sobre o que é investido hoje pelo governo federal no setor.

O projeto delimita como receitas brutas a serem contabilizadas para o cálculo as tributárias, as de contribuições, as patrimoniais, as agropecuárias, as industriais, e as de serviços e de transferências correntes. Atualmente, a União é obrigada a aplicar na saúde a soma entre o valor gasto no ano anterior mais a variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB). Em 2013, foram destinados à saúde cerca de R$ 90 bilhões do Orçamento. Se esse montante for mantido no próximo ano, e o projeto for aprovado, o setor receberia pelo menos R$ 130 bilhões, em 2014.

Representantes do movimento, que reúne mais de cem entidades, pediram tramitação em regime de urgência, mas o presidente da Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), não se comprometeu com isso. Os organizadores querem que a proposta seja aprovada no Congresso antes do fim do ano, para que possa entrar no Orçamento de 2014.
“Vai ser difícil achar quem é contra essa proposta. Hoje, os recursos aplicados pela União são insuficientes. O programa (Mais Médicos) é parte da solução de emergência, mas temos que estruturar a carreira de Estado dos profissionais de Saúde”, afirmou Ronald Ferreira dos Santos, presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos (Fenafar) e um dos integrantes do Saúde +10.

O presidente da Câmara posou para fotos ao lado das pilhas de papéis com as assinaturas populares, mas, cauteloso, defendeu um diálogo franco e responsável com o Executivo sobre a questão: “Seria fácil fazer um discurso inflamado, prometer isso e aquilo, todos sairiam felizes, mas, depois, poderiam ficar frustrados. Se há uma luta mais importante e que não vai parar é essa da Saúde pública”, disse Alves, frisando estar pronto para negociar com o governo federal.
No primeiro semestre, em encontro com o mesmo grupo, Alves vestiu a camisa do Saúde + 10 e se comprometeu em votar o projeto. Ontem, pressionado a vestir novamente a camisa, apenas a colocou sobre os ombros e chegou a ser vaiado. Disse que o projeto começará a tramitar pela Comissão de Legislação Participativa da Casa e prometeu que ele não será engavetado.

Na Câmara, o texto seguirá para a Comissão de Legislação Participativa, que deve assumir simbolicamente a autoria para facilitar a tramitação. De lá, a proposta ainda deve passar por até quatro comissões relacionadas ao tema, e mais a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), antes de ir para o plenário. Se for apresentado um requerimento para que tramite com urgência, com o apoio de 257 deputados, o projeto não precisará passar pelas comissões. “Tenho certeza de que ele não ficará engavetado, e ninguém vai ficar sentado em cima dele. Até porque a saúde pública já esperou muito, já morreu gente demais”, destaca o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN).

A discussão do financiamento da Saúde se arrasta desde setembro de 2000, quando foi promulgada a Emenda 29, que fixou patamar de investimento mínimo da União, dos estados e dos municípios em Saúde. Os estados devem investir 12% da receita corrente bruta, e os municípios, 15%. Ficou em aberto o percentual da União, até uma regulamentação. Enquanto isso, o piso para a União é calculado com base na variação do PIB nominal, mecanismo utilizado até hoje e mantido pelo projeto de regulamentação.

O senador Humberto Costa (PT-PE), relator da Comissão Especial de Financiamento da Saúde no Senado Federal, argumentou que os cálculos ainda não têm apoio total do governo. “Há um consenso nas duas Casas de que são necessários mais recursos, mas ainda precisamos definir qual será a base orçamentária para esse novo aporte, e em quanto tempo esse patamar será atingido”, ressalta.

O lobby a favor da proposta alertou o Planalto, que agiu para propor alternativas para reduzir o prejuízo da União: trocar a receita bruta por líquida, o que reduziria à metade o rombo nos cofres públicos. A bancada da Saúde na Câmara rejeita a ideia e pretende, com o apoio do movimento popular, cobrar a aprovação dos 10% da receita corrente bruta.

De acordo com representantes do Saúde+10, eles devem encontrar-se hoje com a presidente Dilma Rousseff para falar sobre a importância do projeto, mas o compromisso não foi confirmado pela assessoria do Palácio do Planalto. “Vamos mostrar que a saúde não é um problema, mas uma saída para a maioria dos problemas do país”, afirmou a presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Maria do Socorro de Souza. “Já está comprovado que a qualidade na saúde pública é a principal demanda do povo brasileiro, e um dos principais gargalos é o subfinanciamento do setor”, comentou André Luiz de Oliveira, um dos coordenadores do movimento.

Segundo o presidente da Fenafar, em nove estados, o número de assinaturas ultrapassa 1% do eleitorado. O estado com o maior número de apoios foi Minas Gerais (786 mil). No Rio, foram coletadas 32,2 mil assinaturas.

Cerca de 600 pessoas participaram do ato em Brasília, inclusive representantes de entidades como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

“Pedimos ao presidente (da Câmara) que ouça o nosso povo, para que tenhamos um Estado mais solidário, fraterno e para que todos tenham direito à Saúde”, disse dom Leonardo Steiner, secretário-geral da CNBB.

Sociedade e mudanças

Desde 1992, seis propostas de iniciativa popular chegaram ao Congresso — cinco delas viraram leis e uma ainda tramita na Câmara. A principal delas é a Lei da Ficha Limpa, que barra a candidatura de políticos condenados pela Justiça ou que renunciaram para escapar de cassação. Enviada ao parlamento em 2009, com assinaturas coletadas pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, ela foi aprovada e surtiu efeitos nas eleições de 2012.

Como a regra para coleta de assinaturas é rigorosa, há uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que facilita a apresentação de projetos de iniciativa popular, pode ser votada no Senado ainda neste semestre. O texto sugere que seja reduzido o número mínimo de assinaturas, de 1% dos eleitores para 0,5% dos votos válidos na última eleição para deputado federal — cerca de 500 mil assinaturas; que a população possa apresentar PECs (hoje só são possíveis os projetos de lei); e que as propostas tramitem automaticamente em regime de urgência no Congresso.