Como os anglo-saxões espiam os alemães
Nada surpreendente. Ao longo de mais de 40 anos, desde o final da Segunda Guerra Mundial, a República Federal da Alemanha esteve sempre na linha da frente da guerra fria contra a União Soviética e seus aliados do bloco de leste. Mas o « Big Brother » tinha que « espiar » também os alemães. Sempre houve justificações para isso. Primeiro foi a desnazificação. Depois as relações comerciais com a União Soviética – tudo desculpas mais que duvidosas no plano ideológico.
A espionagem não ficava na altura muito cara. Havia na Alemanha Ocidental instalações secretas que serviam para planificar e dirigir a actividade de obtenção de dados de inteligência sobre o outro lado da « cortina de ferro ». As mesmas instalações serviam, ao mesmo tempo, para controlar o território da Alemanha Federal.
Por exemplo, no final dos anos 1980, os serviços especiais americanos provocaram um escândalo que levou à liquidação da empresa química Imhausen-Chemie, fundada em 1912. Alguns jornalistas alemães atreveram-se a fazer uma pergunta delicada : Como tinha chegado essa informação comercial, confidencial, aos ouvidos da inteligência norte-americana ? Houve várias investigações sobre a exatidão das acusações apresentadas contra aquela firma, que tinha assinado com a Líbia um acordo para a construção de uma fábrica química nesse país africano. Pouco antes tinha acontecido a operação El-Dorado Canyon [1]. As sanções económicas contra a Líbia já tinham sido antecipadas. A descoberta da « informação secreta » sobre a construção da mencionada fábrica, de produtos químicos, chegou no momento preciso para agregar a dita instalação à lista de acusações apresentadas contra Muammar el-Kadhafi.
Claro que, a Alemanha foi e continua a ser um membro europeu fundamental da OTAN. O governo da República Federal da Alemanha sempre manteve a solidariedade transatlântica como um pilar da sua política exterior, um princípio que sempre tem respeitado. Antes da reunificação a Alemanha tinha a reputação de ser, ao mesmo tempo, um gigante económico e um anão no plano político. Assim funcionavam as coisas. Com o passar dos anos, os alemães aprenderam a trabalhar e a construir. Mas fizeram-no seguindo os passos de outros e evitando tomar iniciativas próprias em matéria de política externa. Willy Brandt nunca teria recebido o Prémio Nobel da Paz se não tivesse coordenado cada etapa da sua política com Washington.
O tempo passou e a Alemanha reunificada busca hoje em dia um certo grau de independência política, o que exaspera os seus sócios do outro lado do Atlântico. A política exterior contemporânea dos Estados Unidos parte da hipótese que todas as grandes batalhas internacionais futuras vão travar-se na região Ásia-Pacífico. Mas isso não quer dizer que os Estados Unidos pense largar a Europa. É exactamente o contrário. Washington estima que tem que garantir a estabilidade no que considera ser a sua retaguarda.
Os programas PRISM e TEMPORA puseram a nu a correlação de forças existente no seio da OTAN. Os meios de difusão ocidentais evitam mencionar os Estados que assinaram uma aliança, em matéria de operações de inteligência, com os Estados Unidos. Esta aliança é conhecida como os « Cinco Olhos », já que junta o Reino Unido, Canadá, Austrália e a Nova Zelândia. Esses cinco países formam o bloco anglófono, também chamado « anglo-saxão ». Uma desagradável surpresa para os alemães, que descobrem agora que estão sendo vigiados… pelos seus próprios aliados !
E vigiados, além disso, muito, muito detalhadamente… mais que qualquer outro país europeu ! Lógicamente poderiam esperar esse tipo de tratamento da parte dos chineses, e dos malvados dos russos. Ano após ano, o Gabinete federal alemão de Protecção da Constituição chama a atenção sobre a ameaça de espionagem industrial e assinala casos, aqui e acolá, de modo a que a população se mantenha em guarda. Mas, agora, que fazer quando são os americanos que espiam os seus amigos alemães ? E os ingleses ? Caramba ! O « círculo restrito » dos anglo-saxões aprecia a amizade, mas não vacila em espiar os seus amigos.
Perante esta revelação, é natural o aumento do sentimento anti-americano na Alemanha. Como se assinala no fórum do jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung : « A América [Estados Unidos] é muito suja, empesta tanto que podemos cheirá-la desde a Europa. Os escândalos, as guerras injustas, os crimes de guerra, a arrogância que mostra nas discussões sobre o comércio, são sintomas de uma ditadura mundial… e estamos sendo arrastados no torvelinho do mal. » « Os norte-americanos comportam-se sempre como cowboys. »
E levantam-se vozes que exigem o congelamento das negociações, já iniciadas, sobre a instauração de uma « OTAN económica », ou seja uma zona de livre comércio entre a União Europeia e os Estados Unidos.
O mais chocante é que os alemães – povo de respeito –, que tem mostrado a sua lealdade, sejam vigiados mais apertadamente que os seus vizinhos. Michael Hartmann, porta-voz da oposição social-democrata (SPD) encarregue dos temas internos, declarou que nada justifica a vigilância maciça contra os alemães.
Mas, do ponto de vista dos defensores da hegemonia americana, há razões suficientes para espiar os alemães. Onde estavam em Janeiro de 2003, quando 8 chefes de Estado publicaram uma declaração comum de apoio aos Estados Unidos ? Essa declaração apoiava a intervenção norte-americana no Iraque. Os subscritores foram os líderes da Grã-Bretanha, Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, Polónia, da República Checa e da Hungria. E, quem ousou abster-se no Conselho de Segurança da ONU quando houve que votar a imposição de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia ? A Alemanha foi o único país ocidental que se absteve. E depois disso Guido Westerwelle, o ministro alemão das Relações Exteriores que assumiu a responsabilidade dessa arriscada decisão – uma « desonra nacional », segundo o exchefe da diplomacia alemã Joschka Fischer – conservou o seu cargo no governo, tendo deixado apenas o título de chanceler-adjunto. Contrariamente à tradição, foi o ministro da Economia que assumiu essa nomeação.
É importante assinalar aqui como está enraizada nas mentes dos europeus a duplicidade de padrões . Se a espionagem é contra a China (como no caso da universidade de Tsinghua, em Pequim, ou da universidade chinesa de Hong Kong), é um facto normal. Mas se é contra a Europa, aí já se trata, então, de uma grave violação dos direitos humanos.
No caso da Alemanha, o mais chocante é a quantidade de intercepções : 600 milhões de conexões telefónicas por dia, mensagens electrónicas, o conteúdo das páginas pessoais do Facebook, tudo isto guardado durante 30 dias, às escondidas dos utilizadores. « Mesmo que vocês não estejam fazendo nada de mal, são espiados e gravados na mesma », declarou Edward Snowden ao Guardian. Passaram 20 anos, mas os alemães ainda se recordam do ministério da Segurança do Estado, a Stasi, a polícia política da República Democrática Alemã. E isto é o que escrevem:
« A Stasi dá-lhes as boas-vindas. » « Contratem os ex-agentes da Stasi. » « Os Estados Unidos acusam Snowden. Deveriam acusar-se a si próprios por violação dos direitos fundamentais que protegem a vida privada e a liberdade. A Stasi abria as cartas privadas violando as normas sobre a vida privada. A NSA faz o mesmo com as mensagens electrónicas privadas. Não há diferença. Se a República Democrática Alemã era uma ditadura, o que se pode dizer então dos Estados Unidos ? »
As opiniões refletidas nas redes sociais vão muito além da simples comparação com a Stasi. Nelas os serviços especiais dos Estados Unidos e Grã Bretanha são comparados com a Gestapo : « Se continuarem assim, vão fazer com que a Gestapo tenha parecido uma brincadeira de crianças. Onde estão os “verdadeiros alemães”, os arianos verdadeiros que acreditaram durante anos que nada podia acontecer-lhes. Aonde os conduziram as suas inocentes esperanças ? O que é feito dos verdadeiros arianos ? »
Com efeito, ao contrário do que acontecia no passado, as novas tecnologias permitem exercer um controlo total sobre a população, incluindo os burgueses dignos de confiança. A cadeia alemã de televisão NDR TV e o diário Süddeutsche Zeitung explicam que o TAT-14 é um cabo submarino, de fibra óptica destinado às comunicações transatlânticas, que conecta a Alemanha com os Estados Unidos. Este cabo passa pelas ilhas britânicas. Instalado há ano e meio pelo Reino Unido, o sistema TEMPORA garante a leitura dos dados que se transmitem através desse cabo. Ideia magnífica… se esquecermos a ética.
Mas há um problema, a quantidade de dados é 192 vezes superior ao volume de informação que se conserva na Biblioteca Nacional britânica. Assim, o programa utiliza um sistema de palavras-chave para filtrar os dados. A experiência dos serviços especiais alemães demonstra a ineficácia do método. Em 2011, cerca de 3 milhões de SMS interceptados estavam, supostamente, ligados ao tráfico de armas, ou ao tráfico de pessoas. Ao cabo de um árduo trabalho de verificação percebeu-se que somente 290 SMS apresentavam algum tipo de interesse para os serviços de inteligência.
Segundo os funcionários da República Federal da Alemanha, a luta contra o terrorismo não justifica uma vigilância total. Opinião corroborada pelos comentários vertidos através das redes sociais. Mas há gente que pensa que as vantagens do controlo total prevalecem sobre o respeito pela vida privada. Os serviços especiais alemães parecem dirigir-se para a aplicação desse princípio no futuro. Segundo fugas de informação chegadas aos meios de imprensa alemães, os serviços federais de inteligência criaram um novo departamento para a vigilância da internet. Para prevenir as ameaças terroristas, a agência alemã de inteligência exterior, o BND, prevê investir 100 milhões de euros no reforço da sua capacidade de vigilância da internet. O semanário Der Spiegel assinala que o BND planeia estender o seu programa de vigilância para cobrir 20% das comunicações entre a Alemanha e demais países.
O BND propõe-se contratar 100 novos agentes de « reconhecimento técnico ». Alguns políticos imaginaram vários projectos de lei a favor da ampliação da vigilância. O ministro do Interior e Desporto do Saxe-Anhalt, Holger Stahlknecht, já redigiu uma lei que introduz novas medidas a favor da vigilância sobre as telecomunicações, obrigando as empresas a entregar ao Gabinete de Protecção da Constituição os dados dos internautas, dados que incluem as direções IP, códigos PIN e passwords.
« Sabendo que os Estados Unidos a Grã-Bretanha foram apanhados, agora temos que legalizar a vigilância, que na realidade já há muito tinha começado », escreve um leitor do Mitteldeutsche Zeitung. « Bem-vindos a 1984 ! », conclui ironicamente outro leitor de um diário do Leste da Alemanha.
Natalia Meden
Tradução: Alva
Fonte: Strategic Culture Foundation (Russie)
[1] El-Dorado Canyon foi o código usado para designar o bombardeamento americano de 15 de Abril de 1986 contra a Líbia. Washington justificou o bombardeio, em que participaram a US Air Force (Força Aérea dos E.U., NdT), a US Navy (Marinha dos E.U., NdT) e a infantaria da marinha, afirmando que se tratava da resposta ao atentado bombista contra uma discoteca de Berlim, que contava entre os seus clientes habituais numerosos militares norte-americanos. Ao fim de alguns anos provou-se que o atentado contra a discoteca tinha sido uma manipulação israelita.