Nesta terça-feira (16 de julho), o ministro da Defesa Celso Amorim teve recepção de “pop star” na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo, onde participou da Conferência Nacional, relatando os marcos que deram início a uma política externa “Altiva e Ativa”. Os fãs do ex-ministro das Relações Exteriores de Lula, em sua maioria estudantes de relações internacionais, só ficaram ainda mais efusivos após a exposição, dificultando a saída do ídolo. Embora tenha feito uma apresentação técnica, em primeira pessoa, com relatos minuciosos de momentos chave da formação da nova política externa, Amorim foi ovacionado em diversos momentos.

Sobre a frase que marcou o início de sua intervenção como chanceler, a de que faria uma política externa “altiva e ativa”, disse que apenas queria estabelecer uma posição que estivesse à altura da profunda mudança que a vontade popular expressava ao eleger o metalúrgico Lula, presidente que ele sempre coloca como disparador das melhores e mais ousadas ideias a que deu andamento. A expressão tornou-se a própria definição das mudanças profundas que estabeleceram o novo lugar do Brasil no mundo. “Queria refutar a concepção anterior de que o Brasil não devia ter um papel protagônico, assumindo posições com risco de reações contrárias”, disse ele sobre a postura “altiva” da nova política.

Ele ouvia que o Brasil não tinha “excedente de poder” para assumir posições que poderiam gerar retaliação dos países mais poderosos. “Havia uma visão excessivamente domesticada e autodomesticável”, aponta. O enfrentamento à “opinião bem informada” da mídia é uma constante de todo o processo descrito por Amorim, que sempre questionou o interesse do Brasil por temas e países longínquos que só poderiam atrapalhar. “Quando o Brasil propôs uma sistemática de reuniões com países árabes, fomos muito atacados, porque mexemos com as placas tectônicas da terra”, brincou ele, citando umas das agendas fundamentais para a mudança do papel do Brasil no mundo.

Novas agendas

Desta forma, ele define a altivez como essa atitude disposta a contrariar interesses de outras nações e assumir as consequências, e a postura ativa como sendo a criação de novas agendas, em vez de seguir a reboque da pauta dos países desenvolvidos. “Até então, esperava-se que países como o Brasil reagissem de maneira submissa à agenda dos países desenvolvidos, com alguns ajustes, e não a partir de nossos próprios interesses”.

O Brasil queria contribuir para a construção de uma nova ordem internacional, diz Amorim, à queima roupa. Ele não tem a falsa modéstia de apontar o quanto o país foi pretensioso ao agir com mais ousadia em relação a agenda dada pelos países centrais, além de contribuir para criar uma nova pauta internacional. Foi assim, por exemplo, que o Brasil assumiu papel altivo e arriscado em relação ao forte conflito civil que atingia a Venezuela, à imposição pelos EUA de um acordo desfavorável de Área de Livre Comércio das Américas (Alca) ou a possibilidade de invasão do Iraque pelos norte-americanos. “Foi uma ação deliberada diante dos fatos que estavam colocados, quando muitos países preferiram ficar quietos e deixaram que as situações seguissem seu rumo natural”.

A intervenção sobre cúpulas de países já definidas anteriormente e a criação de novos fóruns regionais não eram agendas necessariamente dadas. Naquele momento de conflitos civis agudos com uma tentativa de golpe de estado já ocorrida, o Brasil assumiu um papel de protagonismo ao criar o Grupo de Amigos da Venezuela, não apenas com governos com perfil de esquerda, mas dialogando muito para atrair governos de direita e países fora do eixo latino-americano, como EUA, Portugal e Espanha. “Ficou claro pra nós, que não bastava defender uma posição, pois o país poderia partir para grandes proporções de conflito”, afirmou Amorim.

Para além das soluções que representavam rupturas com o processo constitucional, aproveitou-se de um mecanismo da Constituição venezuelana, o referendo revocatório, para resolver o conflito a partir de uma eleição em que Hugo Chavez tendo menos votos do que na sua eleição, teria o mandato revogado, o que não se confirmou. “Pudemos acompanhar de muito perto o referendo e aquela grave crise foi superada graças a uma ação decidida do Brasil de tomar a iniciativa, fazendo com que os EUA se vissem levados a aceitar a liderança brasileira”, afirmou. Ele conta que o Brasil se viu convidado a opinar sobre um discurso que seria feito no Congresso estadunidense para não acirrar ânimos na Venezuela, ou ainda esteve entre os poucos países convidados à reunião de Anápolis (EUA) para discutir o conflito Israel e Palestina.

Amorim constata que, na região continental a que pertence, apesar das tantas disputas, o Brasil não tem nenhum inimigo ou ameaça. “A cooperação é a melhor dissuasão”, justificou ele.

Derrota da metrópole

Amorim mostrou como “ganhar tempo” pode ser importante na diplomacia para enterrar um projeto nocivo para o país, imposto por uma potência como os EUA.

Oito anos antes do estabelecimento da nova política externa, o Itamaraty foi insistente no cronograma de dez anos para a Alca. Embora pareça uma atitude defensiva, que poderia ter partido para o confronto aberto, essa medida foi fundamental para garantir a continuidade do Mercosul, à época, e para que numa mudança forte de contexto político (a eleição do presidente Lula), se pudesse enterrar de vez a proposta. “Se o Brasil tivesse se oposto frontalmente àquela época, o Mercosul teria acabado”, explicou, lembrando que Carlos Menem e seu ministro Domingo Cavallo só precisavam de um pretexto para acabar com o Mercosul e abraçar os interesses norte-americanos.

Amorim apresentou ainda alguns aspectos, já conhecidos, da forte negatividade que representava a negociação da Alca para os países subalternos, enquanto manter as regras da Organização dos Estados Americanos (OEA) era “mais palatável”. Foi o que revelou o processo em que os EUA tentaram entrar naquele organismo contra o Brasil sobre questões farmacêuticas e acabaram desistindo diante dos obstáculos da OEA.

Amorim não esqueceu de mencionar que todas as medidas ousadas tomadas pela diplomacia brasileira eram acompanhadas de intensa pressão contrária da mídia, que atacava o Governo por enfrentar interesses dos EUA e União Europeia, revelando uma postura bastante servil e colonizada. “Diziam que o Brasil e o Mercosul iam ficar isolados, enquanto obtínhamos concessões e os EUA percebiam isso”, afirmou.

Com isso, o projeto da Alca melhorou sensivelmente, embora Amorim ainda preferisse que não tivesse êxito, transformado em um acordo de acesso a mercados e retirando a parte normativa, deixada para a OEA. “Conseguimos desentortar o projeto e o acordo deixou de ser interessante para os EUA, e acabou sendo abandonado”. Quando os governos de esquerda que se elegeram nos principais países latino-americanos afirmaram o fim da Alca, Amorim lembra que aquele projeto já estava morto. “Estávamos apenas proclamando a morte, o que tem valor cartorial e político importante”, ironizou. Amorim foi ovacionado ao assumir que “mudar um projeto básico dos EUA não é uma coisa fácil”.

“Contrariamente ao que dizia a opinião bem informada, isso não causou nenhum atrito com os Estados Unidos”, ressaltou Amorim, citando outros posicionamentos como o repúdio à invasão do Iraque e o modo como vem cooperando militarmente em várias regiões do mundo. “Essa demonstração de independência teve reflexos em alguns países desenvolvidos”, disse ele, citando o crescimento da defesa de um assento para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU por países decisivos. Amorim não falou disso, mas a própria pretensão de um assento neste organismo que decide os rumos das guerras é de uma extrema ousadia do presidente Lula.

Momento dramático

Amorim relata uma quarta situação, considerada por ele o momento mais dramático de sua vida diplomática: a disputa desfavorável na área da agricultura em um acordo na OMC: a rodada Doha.

A concepção sempre foi de que os grandes fazem o acordo básico e depois “vocês vêm aqui e adendam seus interesses”. Foi assim que o acordo estabelecido entre EUA e União Europeia acomodava as suas dificuldades na área da agricultura e depois era levado a Cancun.

Foi ali que o Brasil liderou uma revolta dos países agrícolas que resultou no G20. “Conseguimos evitar que um acordo altamente prejudicial ao Brasil fosse assinado, e toda a mídia dizia que o Brasil bloqueou um acordo da OMC”, diz ele. Se assim não fosse, apenas em 20 anos os países prejudicados poderiam rediscutir os termos do acordo.

“Pusemos o pé na porta”. Amorim explica que o Brasil evitou o efeito do argumento sempre utilizado pela UE de que a Índia e o Brasil estão defendendo o interesse deles “e os pobrezinhos como ficam”.  “Aglutinar os interesses de todos os países foi muito vitorioso, por meio de um trabalho muito constante e intenso para manter os países no G20”, disse. “Não precisa fazer ataques agressivos, mas fazer defesas robustas”, revela.

Polêmicas

Amorim tem muito orgulho de ter criado a agenda que agregou Índia, Brasil e África do Sul no Ibas, que gerou o interesse na formação dos Brics. “Havia interesse da China e da Rússia de entrar no Ibas, mas queríamos manter a identidade multicultural daquele grupo”, disse ele, apelando para uma ação afirmativa sobre o Ibas, já que os Brics têm mais espaço na mídia.

O Ibas não pode ser engolido pelo Brics, justifica o ministro, pois tem personalidade própria assim como sua agenda. “É mais fácil encontrar valores comuns nos Ibas que nos Brics, como a pauta dos direitos humanos”, afirmou, citando programas comuns na área de proteção à mulher, combate ao racismo e intercâmbio cultural, que não chegam aos Brics com a mesma força. Além disso, são três países que demandam assento no Conselho de Segurança da ONU, já que os outros dois já o têm.

Ele ainda citou, principalmente a partir das intervenções da plateia, outras questões polêmicas. Disse, por exemplo, que o Brasil procurou uma solução negociada para a questão nuclear do Irã, inclusive a pedido dos EUA. A simplicidade com que coloca o assunto procura mostrar o modo como o Brasil encarava esses assuntos considerados tabu pela diplomacia anterior. Respondeu sob aplausos, que, se fosse esperar que os países tivessem em condições perfeitas de respeito aos direitos humanos, “o Brasil não teria relações com nenhuma nação”, sugerindo os próprios desrespeitos que ocorrem em países como os EUA.

Sobre a espionagem dos EUA sobre o Brasil, Amorim, como ministro da Defesa, informa que o Brasil despertou há quatro anos para a defesa cibernética. Um longo caminho que tem que ser percorrido, diz ele, principalmente porque, hoje, o Brasil tem enorme dependência de software estrangeiro. “O Brasil tem que estar preparado para defender seus recursos naturais altamente escassos e cobiçados.”