Saúde, a questão e um caminho
Em 2004, José Serra foi eleito prefeito de São Paulo graças à esperança, que semeou no eleitorado, de que iria resolver o problema da saúde pública. Serra tinha sido o candidato derrotado à Presidência da República, pelo PSDB, na eleição de 2002. Antes disso, ocupara por 4 anos e 1 mês o cargo de ministro da Saúde. Nessa pasta, levou a cabo várias ações de grande projeção nacional: implantação dos genéricos, que resultaram em redução dramática de preços, quebra de patentes para os remédios da aids e campanhas nacionais de vacinação. Quando disputou a Prefeitura de São Paulo, tinha, portanto, a marca de alguém capaz de resolver problemas de saúde pública.
O que ocorreu com Serra em 2004 – o candidato vencedor em uma eleição municipal ser considerado pelo eleitorado o que mais tem condições de resolver o problema da saúde -, é a regra das últimas quatro eleições municipais no Brasil. Em 2008, Eduardo Paes foi eleito prefeito do Rio de Janeiro pela primeira vez, porque foi capaz de fazer o mesmo. O governador Sérgio Cabral havia iniciado seu programa de Unidades de Pronto Atendimento (as UPAs) pouco tempo antes daquela eleição. Já havia algumas unidades em funcionamento quando foi iniciada a campanha. Nos primeiros programas de TV do horário eleitoral gratuito, Paes foi a uma UPA e afirmou que, com a ajuda do governador, iria construir e colocar em funcionamento dezenas delas no município do Rio de Janeiro. A promessa era extremamente crível: o candidato do mesmo partido e apoiado por um governador que iniciara um programa de saúde de grande impacto afirmava que iria fazer mais justamente por que contava com apoio desse governador.
No Brasil, centenas de prefeitos foram eleitos porque são médicos. A principal peça de propaganda deles na campanha é a profissão: trata-se da prova mais cabal possível de seu envolvimento e dedicação à questão da saúde. Um dos municípios mais populosos do Estado do Rio de Janeiro elegeu em 2000 um candidato médico cujo lema de campanha era tão simples quanto eloquente: “Chame o doutor”. A logomarca dessa mesma campanha era uma cruz vermelha. A saúde pública que elege prefeitos é a mesma que, com frequência, os impede de serem reeleitos. Para vencer uma campanha são geradas expectativas de solução de um problema grave na percepção dos eleitores. Para isso, a memória não é curta. Quatro anos mais tarde, o eleito é cobrado por suas promessas. É muito frequente que prefeitos eleitos para resolver o problema da saúde acabem por investir mais em obras de pavimentação do que na construção de hospitais ou na contratação de médicos. Quando isso acontece, a derrota na eleição seguinte é a regra e o vencedor será mais um político que gera a esperança de resolver o problema da saúde.
O problema que o eleitor médio quer ver resolvido é muito claro: trata-se do tempo de espera para realizar consultas e exames. Não é o mesmo tempo de espera de que os usuários da rede privada tanto se queixam. Aqui, trata-se do tempo dentro da sala de espera, já com a consulta e o exame marcados. Para a população que utiliza o sistema público de saúde, o tempo de espera a que as pessoas se referem é o que separa o dia no qual a consulta foi marcada e o momento em que serão recebidas pelo médico. Não há estatísticas confiáveis sobre isso no Brasil, mas sabe-se que é muito comum o eleitor médio esperar mais de três meses para conseguir uma consulta e mais um tempo equivalente a esse para chegar ao dia de fazer um exame. É isso mesmo. Parece mentira, mas não é. São pelo menos seis meses para que se tenha um diagnóstico de um problema de saúde que frequentemente precisa ser resolvido rapidamente.
O resultado desse quadro dramático é a superlotação das emergências dos hospitais. Na impossibilidade de realizar consultas e exames em um prazo aceitável, o cidadão vai para um hospital e entra na fila de espera da emergência. Ali, ele será atendido de qualquer maneira e, provavelmente, em menos de 24 horas. O atendimento-padrão é o seguinte: o paciente fica o tempo inteiro de pé e narra, rapidamente, o que está sentindo para o médico – que não realiza nenhum procedimento que tome muito tempo; trata-se de uma situação de emergência pressionada pela superlotação. Quanto mais rápida for a consulta, melhor para todos que estão à espera. O paciente sai do hospital com a receita de algum remédio e, muitas vezes, já o leva para casa. É comum que a cura ocorra em função do efeito placebo. O remédio receitado não era adequando para a doença, mas o efeito psicológico resultou na cura.
Nenhum sistema de saúde universal tem condições de funcionar dessa maneira sem que sua avaliação pelo eleitorado seja a pior possível. Os protestos de junho foram motivados pelo aumento das tarifas de ônibus das grandes cidades. Quando, porém, se pergunta ao eleitor brasileiro qual o primeiro problema que o governo deveria resolver, para evitar que novos protestos venham a ocorrer no futuro, a resposta predominante é “saúde”. Repito aqui que a saúde, como principal problema do eleitor na esfera municipal e estadual, não vem de hoje. O que mudou foi a visibilidade que o problema assumiu em função dos protestos. Mais que isso, o eleitorado gostaria de ver o governo federal envolvido na ajuda a Estados e municípios para atacar esse problema.
Nesse contexto, a resposta do governo Dilma por meio da implantação do programa “Mais médicos” é absolutamente compreensível. Políticos estão submetidos à pressão do voto e da avaliação de seus governos. O tempo de espera para consultas e exames é inaceitável no Brasil. Assim, qualquer medida governamental que tenha como alvo resolver ou mitigar esse problema tende a contar com o apoio da população. Cabe aqui um parêntesis relevante. Problemas são mais consensuais do que soluções. Não há, para os eleitores que se utilizam do sistema público de saúde, a menor controvérsia quanto ao fato de que o primeiro problema a ser resolvido é o tempo de espera. Todavia, quando se entra no tema das soluções para esse problema, a controvérsia é estabelecida. Alguns dirão que é necessário contratar mais médicos, outros afirmarão que é preciso dar melhores condições de trabalho para os médicos, outros vão considerar mais importante aumentar os salários dos profissionais da saúde, e por aí vai. O governo decidiu fazer propaganda de uma solução, e não do problema a ser resolvido. Essa estratégia pode funcionar, mas trata-se de um caminho mais longo para o sucesso, justamente por dar ensejo à controvérsia.
A propósito, quando se trata de controvérsias acerca de alguma solução para os problemas da saúde pública, o mais surpreendente é a enorme resistência de parte dos formadores de opinião à contratação de médicos estrangeiros. Essa resistência tem como origem, sem dúvida, o corporativismo dos médicos brasileiros, mas floresce no terreno fértil do provincianismo: quanto menos informações se tem sobre o que acontece em outros países, mais podemos afirmar que o que ocorre no Brasil é errado e absurdo.
Há estatísticas confiáveis e de fácil acesso acerca da contratação de médicos estrangeiros nos Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Austrália. Médicos que fizeram a faculdade de medicina fora de um desses quatro países, mas que hoje lá exercem sua profissão, representam de 23 a 28% de toda a força de trabalho médica. Em suma, em torno de um quarto dos médicos de Estados Unidos, Reino Unido, Canadá e Austrália são estrangeiros por formação. Os Estados Unidos contam com mais de 40 mil médicos oriundos da Índia, mais de 17 mil médicos filipinos, quase 10 mil paquistaneses, 7 mil chineses e 5 mil russos. Os médicos iranianos nos Estados Unidos são pouco mais de 4 mil.
A reação negativa à contratação de médicos estrangeiros para atuarem no Brasil tem muito mais a ver com reação corporativa e provinciana, do que com a experiência de outros países que fornecem a suas respectivas populações um serviço de saúde bem superior ao nosso no que tange à abrangência e à qualidade. É o que revelam as estatísticas desses quatro países. São dados que também fornecem uma pista importante para a contratação de médicos estrangeiros: é melhor que haja proximidade linguística. Se não for possível que a maioria seja de portugueses, que venham de países onde se fala espanhol, como Argentina, Chile e Espanha. Será no mínimo curioso ver o atendimento de saúde de muitas localidades do interior do Brasil melhorar porque médicos argentinos cuidarão de brasileiros.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo, é diretor do Instituto Análise e autor de “A Cabeça do Brasileiro”.
Publicado em: 23/08/2013 12:52:12
Alberto Carlos Almeida | Valor Econômico – 23/08/2013