Aconteceu em Cravinhos: O TREM E A ROUPA

 

(ou A Segunda Vez Que Eu Ia Fazer a Primeira Comunhão)

 

 

 

 

Era um sábado incomum. Há um bom tempo eu estava às voltas com os preparativos para a minha primeira comunhão. Durante muitos dias se discutiu se eu deveria usar uma roupa branca ou azul marinho. Finalmente chegaram à conclusão que só deveriam resolver no momento da compra. Para se fazer a compra tinha que se ir para a cidade de Cravinhos, e para se ir até a cidade, desde a fazenda em que vivia era necessário passar por uma verdadeira via sacra. Tínhamos que tomar o caminhão dos boias frias que zarpavam da fazenda muito cedo, por volta de três e meia da manhã. O caminhão nos deixava próximo da cidade, mas não ia dentro da cidade. Dali, tínhamos que esperar o ônibus que vinha da cidade vizinha (Santa Rosa de Viterbo), que nos levava até o “comércio” da cidade, onde minha roupa da primeira comunhão me esperava. Só de pensar ficava excitado. E de tão excitado, não dormi. Muito antes do galo do terreiro cantar, sim porque na minha terra o galo é tido como um relógio, pois canta em horas determinadas; eu já estava de pé. Lavar o rosto, botar uma roupa de passeio pentear os cabelos e escovar os dentes nunca tinham sido atividades tão prazerosas. Embarcamos no caminhão no local e momento determinado; e eu me sentia orgulhoso de ser o centro das atenções. Quando, finalmente, o caminhão nos deixou no local previamente conhecido, eu ainda estava bem disposto. Foi então que aconteceu algo, que marcou minha vida. Eu estava de pé, ao lado de minha mãe, aguardando o ônibus (jardineira), que nos conduziria até a sonhada roupa nova. Por trás do morro, próximo ao local onde estávamos, vi surgir um enorme monstro de ferro, expelindo fumaça pelo nariz e pela boca, ao mesmo tempo em que urrava feito uma fera. Tomado de pavor, saí correndo ao longo da estrada onde me encontrava, enquanto a minha mãe corria atrás, e gritava:

– Pára menino!

E o monstro urrava:

-PEEERUUU, PEEERUUU, PEEERUUU, …

E o monstro mais e mais se aproximava; feio e aterrador, envolto em grossa cortina de fumaça negra. O meu coração parecia querer sair pela boca, minhas pernas tremiam e pareciam que não estavam suportando meu próprio peso. Devo ter corrido uns quinhentos metros, quando tropecei numa pedra e me estatelei no meio da estrada. Com a cara colada ao chão, esperei chegar o momento de ser devorado por aquele monstro terrível.

-PEEERUUU, PEEERUUU, PEEERUUU, …, apitou o monstro, ou falou, não sei ao certo, mas o fato é que ele parece ter desistido de me devorar, pois passou direto e, quando levantei a cabeça, só vi os grossos rolos de fumaça negra que iam muito além. Quando criei coragem e me levantei, vi minha mãe sorrindo, embora preocupada. Ela me disse: – menino isso foi só um “trem de ferro”. Levantei-me, todo sujo de poeira, e com a cara mais sem graça percebi que todas as pessoas me olhavam com curiosidade, afinal eu propiciei um momento pândego. Só então pudemos tomar o ônibus até a cidade, para comprar a minha esperada roupa de primeira comunhão. Em tempo, a roupa escolhida foi a roupa branca de marinheiro, mais bonita, que jamais foi confeccionada no Brasil.


  Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.