Hegemonia financeira é maior ameaça à democracia mundial
“A tendência dos movimentos sociais é empurrar os sistemas de governo para avançar na direção de um mundo mais justo e democrático, mas se não houver resposta, será criada uma situação muito séria de confrontação com os conservadores, que têm um poder de destruição é terrível”, alerta, acrescentando que a Arábia Saudita já teria concordado em financiar um eventual ataque à Síria, que inclui a contratação de mercenários para driblar a rejeição à guerra que Santos identifica entre o oficialato norte-americano.
As afirmações foram feitas a propósito do quinto aniversário, neste domingo, da crise deflagrada pela quebra do banco Lehman Brothers. Iniciada no setor imobiliário, a crise desbordou para o setor produtivo, sendo comparável apenas à Grande Depressão de 1930.
Os analistas ouvidos pelo Monitor Mercantil são unânimes em afirmar que, entre as medidas propostas pelo G20 (grupo formado pelas maiores economias do mundo) em 2009, ou as decididas no acordo Basiléia III, somente a menor alavancagem dos bancos “grandes demais para quebrar” foi levada adiante, mesmo assim com recursos do contribuinte.
Outra conseqüência foi a aceleração do processo de concentração no setor financeiro mundial, já que muitos bancos de menor porte foram absorvidos ou simplesmente desapareceram. Esse cenário hoje é mais grave na Europa do que nos Estados Unidos. Somente em 2001, 332 bancos fecharam no Velho Continente.
Para o consultor Luis Miguel Santacreu, da Austin Rating, o ritmo lento na adoção de medidas regulatórias foi ditado pela necessidade de minimizar a estagnação econômica e pelo poder dos bancos: “O lobby do setor financeiro argumenta que os bancos não conseguiriam se adaptar às novas regras com a economia estagnada.”
Mundo ainda vulnerável
Por sua vez, o economista Carlos Thadeu de Freitas, consultor econômico da Confederação Nacional do Comércio (CNC), vê um mundo “ainda bastante vulnerável”, já que nada foi efetivamente decidido para impor limites aos grandes bancos: “A alavancagem foi relativamente contida a partir de Basiléia III, mas nada foi feito para limitar o tamanho dos bancos, sempre salvos com recursos públicos”.
De acordo com Freitas, a exigência de maior capitalização está na direção correta e os bancos norte-americanos já estão caminhando nessa direção: “Mas na Europa ainda não. Os bancos centrais devem agir com medidas regulatórias antes que o crédito fuja do controle outra vez.”
No Brasil, Freitas critica o financiamento de veículos em até 60 vezes, sem entrada: “Qualquer financiamento longo precisa ter alguma entrada. Regulação é o remédio para evitar bolhas de consumo e crédito, e não aumentar juros para furá-las”, adverte Freitas, que já foi diretor do Banco Central (BC).
Santacreu, por sua vez, vê o sistema brasileiro saudável. “Nosso sistema é sólido e respeitado, inclusive quanto à fiscalização. Não sofremos com o subprime (títulos sem lastro emitidos no setor imobiliário norte-americano) e outras engenharias financeiras. Já existe um cronograma para a adoção de algumas medidas de Basiléia III, a começar por uma política mais firme de liquidez”, avalia, acrescentando que muitos bancos de porte médio obtiveram apoio do BC, enquanto nos Estados Unidos muitos quebraram.
Glass-Steagall
No caso dos EUA, Freitas lembra que o Congresso não conseguiu aprovar a volta da lei denominada Glass-Steagall e que determina a separação entre bancos de investimento e bancos comerciais.
“Os bancos não devem especular com recursos de tesouraria (recursos próprios), só recursos de terceiros, e a pedido de terceiros. Usar recursos de tesouraria pode puxar para cima ou para baixo o valor dos papéis negociados”, observa Freitas.
Para o consultor da CNC, faltam regras para operações com recursos próprios. “Há muita pressão para que os grandes bancos voltem a financiar a atividade produtiva, que é sua função básica. Este deveria ser o ponto mais importante”, frisa.
Ele reconhece que se a economia voltar a crescer a Glass-Steagall “será esquecida”, mas alerta que, na Europa, a situação está bem pior:
“Os bancos ainda não se capitalizaram e não há um Tesouro único nem um banco central único na União Européia”, avalia, argumentando que crises financeiras ainda acontecerão e, para evitá-las, é fundamental reduzir o grau de alavancagem dos bancos (relação entre capital e o volume de empréstimos).
‘Balanços estranhos’
Já Santacreu avalia que os bancos estão evitando dar crédito porque já estão carregados de papéis com alto risco – no caso da Europa, títulos da dívida pública de alguns países:
“Se as perdas totais dos bancos for reconhecida, o setor precisará de mais aumento de capital”, prevê o analista.
Ele argumenta ainda que, neste momento, exagerar na rigidez pode criar mais instabilidade no sistema financeiro mundial.
“Nos EUA, os ativos tóxicos estão sendo registrados a valor de custo. Isso foge aos princípios contábeis. Espera-se que, com a melhora da economia, os bancos transfiram isso para o prejuízo. Na Europa, há muita desconfiança”, comenta, acrescentando que, para ele, a melhor medida estrutural seria a implantação das medidas decididas em acordos do G20, a começar pela restrição à remuneração dos principais executivos dos bancos. “Mas não se sabe se isto vai acontecer”.
Fascismo ou multipolaridade
No campo da geopolítica, Theotonio dos Santos avalia que o pior da crise ainda não chegou. E que a insistência em manter as regras antigas e o predomínio do setor financeiro na economia mundial terá graves conseqüências daqui a dez ou 15 anos. O cientista social, que integra o Conselho Editorial do MM, adverte que o mundo poderá caminhar tanto na direção de um aperfeiçoamento democrático quanto do fascismo.
“Apesar do alto desemprego nos países centrais e outros graves problemas, a verdade é que a economia mundial ainda apresenta algum crescimento. Ainda vivemos o final de um ciclo de expansão”, salienta.
Santos vê o grupo formado pelos maiores países emergentes, Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), sob a liderança da China, como fundamental para ajudar a sistematizar uma nova fase da economia mundial, com mais equidade e democracia em moldes diferentes do padrão a que hoje assistimos.
“As rebeliões populares por toda parte do mundo respondem à insatisfação com esta realidade. Os Brics estão questionando a falta de resposta às exigências feitas no âmbito do G20, sobretudo em relação aos bancos centrais.”
Para Santos, a tendência é que os movimentos sociais empurrem os sistemas de governo para avançar: “Mas se não houver resposta, será criada uma situação muito séria de confrontação e o poder de destruição hoje é terrível”, adverte o cientista político.
Publicado no Monitor Mercantil