Contra pressão da mídia, Celso de Mello reabre julgamento da AP 470 no STF
Após os votos longos, de horas de duração, de Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes, que dominaram os debates na semana passada, o voto de minerva do ministro Celso de Mello não precisou de mais que duas horas na histórica sessão de hoje (18 de setembro) do Supremo Tribunal Federal (STF). Mesmo sob forte pressão da imprensa corporativa, que o ameaça por ter impedido o encerramento do processo, ele deixou claro que decidiria a favor de um novo julgamento para 12 réus da Ação Penal 470, taxada pela mídia de “mensalão”.
A decisão é histórica por se tratar da primeira vitória importante dos réus, desde o início do processo, no final de 2007. Com o voto de Mello, 6 dos 11 ministros entenderam cabíveis os embargos infringentes, impondo a primeira derrota ao relator do processo, o agora presidente Joaquim Barbosa. Já haviam votado pela aceitação dos embargos os ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski.
A voto de minerva também foi histórico por resgatar o papel jurídico do STF contra as pressões da política que desqualificam suas decisões. A cassação dos mandatos comunistas no final da década de 1940 nunca foi julgada pelo STF, sendo mantida como decisão exclusiva do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), uma omissão que diminui a corte suprema. Do mesmo modo, o STF esteve aliado à ditadura militar pós 1964, para legalizar procedimentos autoritários do regime contra perseguidos políticos. Mais uma vez, a série de erros apontados no julgamento da AP 470 revelam o caráter conservador e político do STF ao tentar punir de forma severa personalidades políticas de esquerda brasileira.
Celso de Mello criticou fortemente os ministros que, na sessão da semana passada, defenderam a subordinação das decisões judiciais ao “clamor das multidões”, sinalizando que não se submeteria à histeria da mídia pelo linchamento político dos réus. Os subordinados assumidos à “clamor das multidões” foram Joaquim Barbosa, Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Marco Aurélio. “Devem ser assegurados todos os meios e recursos da defesa, sob pena de nulidade de persecução penal”, disse Mello.
“Os julgamentos do STF, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se à pressão externa, sob pena de completa subversão do regime de direitos e garantias individuais, assegurados a qualquer réu”, disse o ministro. E prosseguiu: “O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus é encargo constitucional deste tribunal, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente”.
Estes embargos, previstos no regimento interno do STF, é que garantem a possibilidade de novo julgamento nos casos em que houve pelo menos quatro votos pela absolvição dos réus. Celso de Mello entendeu que os embargos infringentes são válidos, porque estão previstos no Regimento Interno do Supremo. De acordo com o ministro, a Lei 8.038/1990, que trata dos recursos em tribunais superiores, não excluiu a utilização desse tipo de embargo. Para o ministro, nas ações penais que começam no STF, réus têm direito a novo julgamento, pois não há instância superior ao Supremo para que os réus possam recorrer das condenações. “Não há possibilidade de outro controle jurisdicional das decisões condenatórias emanadas do STF”, lembrou o ministro.
Entre os 12 que podem ter as penas reduzidas, com a análise de mérito dos recursos, estão os petistas José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e João Paulo Cunha. Eles e outros cinco réus tiveram quatro votos pela absolvição na acusação de formação de quadrilha. Para os outros réus, isso ocorreu nos crimes de lavagem de dinheiro.
A legalidade ou não dos embargos dominou os debates no STF durante as últimas semanas. O presidente do tribunal e relator da AP 470, ministro Joaquim Barbosa, defendeu a tese de que os embargos infringentes estavam extintos por uma lei de 1990 – que trata da tramitação de processos em tribunais superiores e não diz nada sobre eles. Outros quatro juízes também entenderam assim.
Os demais, porém, argumentaram que a omissão dos embargos, no texto da lei, não significava sua extinção – já que o direito continua previsto no regimento interno da Corte.
Garantias constitucionais
Celso de Mello, que já havia se manifestado pela aceitação dos embargos em outras ocasiões, começou hoje lamentando que não tenha conseguido votar na semana passada, mas disse que os dias que se seguiram permitiram que ele aprofundasse “ainda mais” sua convicção.
Na sequência, ele fez uma explanação sobre a importância do amplo direito de defesa a pessoas acusadas de quaisquer crimes. Segundo o ministro, esse é um direito fundamental do estado democrático.
Mello lembrou que exatamente hoje, 18 de setembro, completam-se 67 anos da promulgação da Constituição Brasileira de 1946, “que restaurou a liberdade e dissolveu a ordem autocrática do Estado Novo”.
A Carta de 1946 substituiu a de 1937, elaborada no período autoritário do governo Getúlio Vargas. Conhecida como “Polaca”, a constituição de Vargas considerava que pessoas acusadas eram automaticamente culpadas e tinham de provar sua inocência, conforme lembrou o ministro em sua fala na Corte.
Segundo Mello, a Constituição de 1946 restaurou no Brasil “a supremacia do direito e do respeito às liberdades fundamentais (…), garantindo às partes, de modo pleno, o direito a um julgamento justo, imparcial e independente”.
Para Celso de Mello, o STF e nenhum outro tribunal pode reagir de maneira “instintiva, arbitrária, injusta ou irracional”. Na semana passada o ministro Luís Roberto Barroso já havia feito uma advertência de que a avaliação do caso deveria ser feita à luz da Constituição, e não do clamor de setores da imprensa, o que lhe valeu um chamamento de “novato” por Marco Aurélio Mello.
Hoje, o decano complementou: “A resposta do poder público (para acusações criminais) há de ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração de um processo que neutralize as paixões exacerbadas das multidões”.
Pacto internacional
Depois de fazer uma longa defesa técnica sobre a legalidade dos embargos infringentes, tentando neutralizar os argumentos dos que os supõem extintos, Celso de Mello voltou a se debruçar sobre os princípios dos estado de direito, destacando que estes não podem ser vistos como “meras tecnicalidades ou filigranas jurídicas” – segundo o que têm dito articulistas dos meios de comunicação sobre a possibilidade do segundo julgamento.
O ministro lembrou da polêmica sobre o Pacto de São José da Costa Rica, da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O pacto, que garante o direito ao “duplo grau de jurisdição” a qualquer reú (ou segundo julgamento), foi assinado pelo Brasil em 1992.
O Brasil, assinalou Mello, submeteu-se “voluntária e soberanamente” ao pacto e, por isso, é obrigado a cumpri-lo em todo caso em que o Estado é parte, sendo condenado no foro internacional caso não o faça. “O Brasil reconheceu formalmente a obrigatoriedade de sua submissão ao pacto”, reforçou ele.
A necessidade de respeitar o Pacto foi levantada na semana passada pelo ministro Teori Zavask e contestada pelo seu colega Gilmar Mendes – que chegou a dizer aos jornais, ontem, que o STF não poderia se transformar numa “corte bolivariana”.
Celso de Mello salientou hoje que, se não quiser cumprir o pacto, o Brasil tem de se retirar da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Ele lembrou que a “República Bolivariana da Venezuela” fez isso recentemente, justamente por não concordar com a decisão da corte internacional em favor de um cidadão venezuelano que pedia o direito a um segundo julgamento em seu país.
Ao citar o episódio, Mello olhou para Gilmar e repetiu, separando as sílabas: “veja bem, República Bo-li-va-ri-a-na da Venezuela”.
Mello invocou também o artigo 26 da Convenção de Viena, de 1969, segundo a qual “todo tratado obriga as partes a cumpri-lo de boa fé”, sendo que as legislações dos estados nacionais não podem se sobrepor às regras ali definidas.
“Essas não são meras tecnicalidades jurídicas ou filigranas interpostas num debate tão sério como este”, disse o ministro.
“Esse é um tribunal de princípios. (Ao aceitar o embargos) o STF está prestando reverência ao seu compromisso institucional de respeitar e fazer respeitar direitos, garantias e liberdades fundamentais (…) O interesse protegido aqui não é o individual, mas o interesse público”.
Exposição de erros
Com a aceitação dos embargos, o julgamento deve ser retomado em 2014. Nos recursos, os advogados de defesa deverão alegar falhas e eventuais erros na manipulação de informações envolvendo as condenações iniciais. Ficou notório o modo como os ministros ignoraram provas de inocência de réus e superestimaram penas para atingir lideranças mais proeminentes do Partido dos Trabalhadores.
A expectativa é que, nesse processo, também venha à tona um inquérito paralelo aberto pelo ex-procurador Geral da República Antonio Fernando de Souza, em 2006, para aprofundar as investigações a respeito das denúncias do suposto mensalão. Por obra de Souza e do ministro Joaquim Barbosa, o inquérito permanece sob sigilo até hoje. Nem os advogados dos acusados tiveram acesso a ele. Especula-se que as provas recolhidas nessa investigação paralela derrubariam parte das teses que levaram à condenação dos réus na ação principal.
Mesmo que os embargos infringentes sejam aceitos e depois os condenados tenham sucesso em seus recursos, nenhum deles tem chance de absolvição. No máximo, conseguiriam uma redução da pena já estipulada.
Além de postergar a conclusão do julgamento para os 12, um reexame de sentenças poderá resultar, para alguns deles, num abrandamento do regime de prisão.
É o caso de Dirceu, que recorreria da pena por formação de quadrilha –ele também foi condenado por corrupção ativa, mas nesse caso por ampla votação, sem hipótese de benefício por embargo infringente.
Se o STF aceitar fazer um novo julgamento e se, posteriormente, o recurso de Dirceu for bem sucedido, o ex-ministro petista trocaria o regime fechado pelo semiaberto, aquele em que o preso passa o dia fora e volta para a cadeia à noite.