O “mensalão” e a disputa política: rendez-vous da mídia
O famoso orador Marco Túlio Cícero dizia que Roma era um assunto sobre o qual não se devia pedir nem receber informações, a fim de evitar aborrecimentos. Recordo a citação para dizer que a mídia no Brasil se comporta como Roma ao ignorar a sabedoria humana e conferir a si própria o título e as credenciais de senhora do bem e do mal, do que convém ou não ao país. Os adjetivos peremptórios — quadrilha, crimes, corruptos e outros do gênero — usados como indisfarçável despeito pela decisão do Superior Tribunal Federal (STF) sobre o julgamento da farsa do “mensalão” são provas mais do que suficientes de que os senhores dos latifúndios midiáticos não se ajustam às medidas do Estado de Direito.
Ao se comportar assim, a mídia age como uma espécie de Ku-Kux-Klan da falsa moralidade. Às vezes fazem isso até em nome das religiões, que do alto dos seus milênios de existência não lhes deram procuração para tanto. Peguemos o exemplo do elogio do jornal Folha de S. Paulo a uma afirmação do ministro Gilmar Mendes. “Eu sempre digo o seguinte: a gente tem que rezar para não perder o senso de Justiça. Mas se Deus não nos ajuda, pelo menos que rezemos para que não percamos o senso do ridículo”, disse Mendes.
Fator humano
A marca da mídia à brasileira é exatamente a ojeriza ao pensamento avançado, humanista. A cada dia ela nos apresenta exemplos dos mais edificantes. E sempre há uma teoria. Mas são teorias do que seria-se-fosse, baseadas em características e fenômenos de um país que eles imaginam, muito diverso do país real. Equacionar, operar, extirpar e outros vocábulos os embalam em seus cálculos frios.
Os números aparecem em esquemas e equações que não partem de realidades. São fantasias e fantasmagorias que não se destinam a descobrir, orientar, provar, mas… Se destinam a que precisamente? A sofismar, a mistificar e mitificar, a ludibriar. Qualquer que seja o problema, por mais complexo e multiforme, não lhes faltam engenho e arte para transformá-lo em gráficos e diagramas para dar-lhe denominação própria e original. Mas não lhe dão especificidade, ou não querem lembrar que informar e analisar requer arte e ciência, essencialmente ligadas ao homem. Nenhum resultado se pode esperar de informações e análises que eliminam o fator humano.
Delírio teorizante
Nessa pregação pela moralidade, o delírio teorizante atinge o auge. Como a presunção é o traço mais evidente dos responsáveis por essas informações e análises, eles insistem no diagramar, no cronogramar, no organogramar, no topogramar para ver se com o inusitado da linguagem obtêm crédito. Pensam que podem vencer pelo choque, pelo cansaço do prolixo. Pode-se dizer que é uma mídia nominalista. Se a realidade — onde coisas e fenômenos estão há muito nominados — não corresponde às análises, muda-se o nome das coisas e fenômenos.
Pois saibam os que não sabiam que esse gosto pelo nome dos que se presumem detentores da verdade chega até à limitação da liberdade de opinião. São eles que mandam e acabou a história. De propósito, esses senhores de sua semântica esvaziam o conteúdo das informações para pôr no lugar frases retorcidas. E como eles inventam nomes com facilidade, suas explicações se encaixam naquele tipo de resposta que se dá às crianças de certa idade que não perguntam para saber, mas pelo perguntar.
Mal de nascença
Essa dissemântica é velha, mal de nascença. Entre seus princípios está a pregação contra a corrupção. Hoje, sabe-se muito bem, a corrupção tem um limite semântico — o tal “mensalão” — só compreendido por aqueles que o inventaram. Mas para a propaganda contra o governo e a esquerda o nome não poderia ser melhor. É só isso. Porque se fosse mesmo corrupção nas dimensões anunciadas, no conceito da língua portuguesa, já teríamos tido exposições monumentais em praça pública de ladrões cercados de cartazes especificando os crimes de cada um.
O que há em tudo isso é o estardalhaço natural de quem falsifica os fatos — principalmente quando lhe faltam glórias próprias. Muitas vezes essas falsificações são imposições a jornalistas, massacrados pela ditadura dos donos do poder, que sequer têm tempo de estudar as leis e meditar sobre os problemas nacionais, de auscultar o coração do povo, de ler e entender os processos sociais. Muitos nem foram formados neste espírito e, em terra de batráquio, precisam se agachar para não ser atingido pela língua do sapo.
Ruy Barbosa e Padre Vieira
Quem vive sob a égide do Estado de Direito tem a proteção da Constituição e de outras cartas. E Ruy Barbosa deixou escrito que a Constituição não é roupa que se recorte para ajustá-la às medidas deste ou daquele interesse. Poderíamos, nesse vazio de inteligência da mídia, nos consolar com as palavras do Padre Vieira, no “Sermão da Sexagésima”, onde se vê a causa dessa pregação recheada de ameaças ou promessas, uma discurseira que põe palavras onde faltam idéias. Lá se diz: “As razões não hão de ser enxertadas, hão de ser nascidas. O pregar não é recitar. As razões próprias nascem do entendimento, as alheias vão pegadas à memória, e os homens não se convencem pela memória, senão pelo entendimento. (…) O que sai da boca, para nos ouvidos, o que nasce do juízo, penetra e convence o entendimento.”
Mas é necessário que a bandeira da verdade nunca seja arriada. Apesar de a maioria das acusações, convenientemente, já estar sepultada em cova rasa — sem nenhuma investigação a mais, sem nenhuma satisfação ao público, sem nenhuma retratação —, a dissemântica continua ativa. Desde o princípio, as denúncias — sustentadas em fontes que se revelariam frágeis como a convicção de um cínico — esbarram em uma questão de lógica básica. Um mergulho nas páginas publicadas sobre o caso revela muito sobre a maneira como são produzidos — e depois manipulados — os escândalos.
Latifúndios de mídia
Em uma carta aos seus alunos — indevidamente publicada pelo jornal Folha de S. Paulo —, a filósofa Marilena Chaui disse que com esta imprensa estamos diante de um campo público de direitos regido por campos de interesses privados. “E estes sempre ganham a parada”, afirma ela. No caso da farsa do “mensalão”, a mídia apressou-se em publicar frases bombasticamente vazias, como uma do senador Álvaro Dias (PSDB-PR). Segundo ele, os papéis que seriam aprendidos pela CPI dos Correios seriam capazes de “abalar os pilares da nação”. Depois, quando a realidade se mostrou bem menos formidável, Álvaro Dias teve de baixar o tom: “Eu queria que a coisa fosse bem maior, mas não é”.
Esse fato deveria ser objeto de demorado estudo por parte dos editores de publicações de qualquer natureza. Mas não é assim. Cláudio Abramo, conceituado jornalista com ideias situadas à esquerda no espectro político e respeitável ícone do jornalismo brasileiro — ele conheceu as entranhas de jornais como Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo —, dizia que para ter democracia no Brasil é preciso começar fechando todas as TVs particulares. Esses latifúndios de mídia, dizia ele, são as primeiras trincheiras usadas pelas classes dominantes em casos de crises políticas. Ele não fez uma tirada inconsequente — apenas disse o que acontece. Não porque achava, mas porque sabia.
Propaganda ideológica
O tom da pregação moralista revela também que as relações entre o governo da presidenta Dilma Rousseff e a mídia estão em seu pior momento. Blogs, colunas, editoriais e peças pretensamente humoristas propagam uma onda conservadora que chama a atenção e faz pensar. Antes, havia a histeria da denunciamania que cavalgava o “mensalão”; agora, assume a pauta a propaganda ideológica fundada no rancor político, no ódio de classes e no reacionarismo.
Os mandantes da mídia sequer são capazes de admitir a ideia de que as pessoas que não seguem seu figurino ideológico não são necessariamente “petistas”. Basta ser democrata e progressista para ser enquadrado nesta categoria. O epíteto passou a ser sinônimo de xingamento. O ser “petista” é alguém que não pensa, que está na contramão dos fatos. A explicação mais plausível para isso é a aproximação das eleições de 2014.
Oportunidade perdida
Na verdade, a direita, com essa farsa, atrapalhou uma excelente oportunidade para a apuração rigorosa das origens do escândalo. Durante a CPI dos Correios, a então ministra do STF Ellen Gracie proibiu o acesso dos parlamentares ao conteúdo da principal peça do computador do banqueiro Daniel Dantas sob a alegação de que o requerimento do então deputado Jamil Murad (PCdoB-SP) precisava ser melhor fundamentado. Suspeitava-se que ali estaria os detalhes de um fundo, sediado nas Ilhas Cayman, que aplicava dinheiro de doleiros acusados de operar no esquema de Dantas.
Vale rememorar o despacho da juíza: ”As transações das empresas de publicidade DNA e SMP&B não se deram com o Banco Opportunity, mas com algumas das controladas pelo chamado Grupo Opportunity (dirigido por Dantas). Todas essas empresas (Brasil Telecom, Telemig e Amazônia Celular) têm personalidade jurídica própria, inconfundível com a de sua entidade controladora, muito embora os nomes em suas diretorias se repitam com freqüência e sejam ligados por laços de parentesco ou afinidade ao primeiro impetrante (Dantas)”.
Prócer tucano
Em depoimento à CPI, tanto Marcos Valério quanto o ex-tesoureiro do Partido dos Trabalhadores (PT), Delúbio Soares, confessaram encontros com representantes do Opportunity. O objetivo seria ”aparar as arestas” do banqueiro com o governo. O motivo real era o esquema de irrigação subterrânea de campanhas eleitorais arquitetado pelos tucanos. Na Procuradoria-Geral da República, Delúbio Soares disse que foi apresentado ao publicitário por ”amigos de Minas” — incluindo o então deputado federal Virgílio Guimarães (PT). Eles teriam lhe orientado a procurar Marcos Valério por causa da sua ”experiência na captação de recursos para campanhas eleitorais, como fizera na de 1998, na eleição do então governador Eduardo Azeredo e do deputado Aécio Neves (ambos do PSDB)”.
Diante dos fatos, o PSDB mineiro lançou nota denunciando a existência de uma ”articulação nacional” (não deu detalhes sobre a conspiração) e criticou o “clima de denuncismo”. Ao tomar conhecimento da profundidade do buraco, o principal prócer tucano, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), se saiu com essa: ”Precisamos investigar tudo, mas sem perder o foco de que a crise é hoje. O que aconteceu no passado, no meu governo, é coisa da história.” Bem, uma das características mais marcantes do ex-presidente neoliberal é a sua capacidade de dizer bobagens. Mas os que pregam em nome da justiça não poderiam ignorar estes fatos se quisessem realmente provar a existência do “mensalão”.
Corvo de Allan Poe
Há informações de que o esquema do PSDB existe desde o início dos anos 1990 e tem outras ramificações. Entre janeiro e maio de 2004, por exemplo, a agência do Banco Rural em Brasília fez pagamentos em espécie no total de 7,9 milhões de reais ao Instituto de Desenvolvimento, Assistência Técnica e Qualidade em Transporte, órgão vinculado à Confederação Nacional dos Transportes (CNT), presidida por Clésio Andrade — que foi vice-governador de Aécio Neves em Minas Gerais. O dinheiro seria usado em campanhas para prefeitos e vereadores mineiros. Detalhe: Andrade foi sócio de Marcos Valério na SMPB e na DNA.
Seria o caso de ir mais fundo e analisar os escândalos que proliferaram na ”era FHC”, um se sobrepondo ao outro. Compra de votos da reeleição, “caixa dois” da campanha presidencial, fitas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES)… Era como se a realidade desejasse impor uma máxima inversa à do corvo de Allan Poe: ”Sempre mais”. Poderia ainda verificar as acusações contra Ricardo Sérgio de Oliveira, ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e apontado como um dos arrecadadores de recursos para campanhas eleitorais do PSDB — que foi flagrado dizendo que atuava no ”limite da irresponsabilidade” no processo de privatização do sistema Telebrás.
Julgamento parcial
O grampo do BNDES talvez seja o exemplo mais evidente para se estabelecer a conexão de todos esses escândalos tucanos com o ”mensalão”. O caso, que trouxe ao nível da superfície o palavrório utilizado nos subterrâneos da privatização das telefônicas, pode explicar muita coisa. Soube-se que ”o maior negócio da República”, tramado por Luiz Carlos Mendonça de Barros — então do Ministério das Comunicações — e André Lara Resende — então na presidência do BNDES —, fora trançado numa atmosfera de alto risco (”no limite da irresponsabilidade”), em meio a um linguajar raso (”se der m…, estamos juntos”) e com pitadas de truculência (”temos de fazer os italianos na marra”). Soube-se ainda que FHC, quando consultado sobre as “vantagens” da negociata destinada a favorecer o Opportunity, assentiu dizendo: ”Não tenha dúvida, não tenha dúvida.” Mas, como se diz, a Justiça é ágil em certos casos e cágada — a sílaba tônica fica a seu critério — em outros.
A cobertura do julgamento parcial — nos dois sentidos do termo — do “mensalão”, no entanto, oferece mais uma oportunidade para se entender o que isso tudo quer dizer na prática. Não há dúvida de que a mídia agora volta a tentar pôr a faca no pescoço da presidenta Dilma Rousseff e conduzi-la imobilizada ao matadouro. É uma tentativa de fazer uma ponte com outros casos e criar o chamado efeito dominó. Tradução simples e direita: para desgosto dos amantes da tranquilidade, a disputa pelo poder no Brasil volta a ter intensidade crescente. O responsável por esta situação é o leve balanço na estrutura social brasileira provocado pelas ações sociais dos governos Lula e Dilma.
Realidade complexa
Vivemos numa realidade tão complexa que a construção de uma simples rede de esgoto em alguma periferia ou de uma estrada asfaltada que rasga os sertões rompe ao mesmo tempo o véu das relações sociais obsoletas que temos no Brasil. E olha que são medidas meia-sola, que nem de longe ameaçam o satus quo. Com estes dados, fica fácil entender por que o vazio de propostas da direita é preenchido com adjetivos. No primeiro julgamento do “mensalão”, o que mais se ouviu ou leu é que o STF tomou uma decisão histórica — com ênfase no “tó” — e que a transformação dos denunciados em réus — com ênfase no “ré” — mostrou que as “instituições” funcionavam. Agora, a retórica midiática se inverteu.
Convenhamos, não se faz justiça assim. O problema não está aí. Se estivesse, deveríamos proclamar: deixem os poderes da República trabalhar e noticiemos o que eles fazem! Os procuradores de escândalos e os promotores de injustiças não teriam vez. E aí sim teríamos toda razão do mundo para clamar por justiça para todos — independente da cor ideológica de cada um.
Rosca sem fim
Quando o assunto é tratado sem as bravatas e foguetórios da mídia, e sem o histrionismo dos grupos “esquerdistas” — uma poderosa arma da direita —, o que se vê é um panorama bem diferente. A briga real, com fichas de verdade na mesa, está no confronto entre um Brasil arcaico, que faz tudo para sobreviver, e um Brasil moderno, que está tentando começar. As calamidades que a elite brasileira foi capaz de produzir ao longo da história e parece decidida a continuar produzindo, numa espécie de rosca sem fim, ilustram essa situação de modo exemplar. É uma situação que pode ser descrita como o retrato da morte moral de uma ideologia que vive na delinquência e se agarra a todas as formas de poder para continuar a delinquir em larga escala.
Todas essas coisas compõem o enredo da ópera, mas o seu melhor resumo não é o tamanho da vigarice, e sim a sua natureza: ela expressa, mais do que um espetáculo de má conduta, o funcionamento a todo o vapor do país do atraso. O Brasil que vive do passado vai muito além da mídia — inclui forças políticas e práticas elitistas que sempre estiveram presentes em toda a nossa história. Na verdade, essa opção preferencial pelo arcaísmo, pela imobilidade social e pelo que não funciona é simplesmente o que se poderia mesmo esperar de um setor da sociedade que carrega usos e costumes que chegaram com a turma que desembarcou por aqui junto com Pedro Álvares Cabral.
Sentimento patriótico
Conferir credibilidade ao seu projeto equivale a fundar, hoje, um partido a favor do colonialismo. Não é com o governo que a direita realmente está em guerra. O seu problema é com o Brasil que não quer mais ser o mesmo. Ela guerreia com este Brasil em transformação pelo menos desde o início da década de 1940 do século XX. O problema é que de 1950 para cá a direita tem obtido poucas vitórias. De meados dos anos 1950 em diante, as forças populares deixaram de ser marginais para tornarem-se capazes de influir no grande jogo político do país.
Um exemplo disso foi a atitude de Juscelino Kubitschek que, em sua campanha eleitoral para a Presidência da República, conforme ele mesmo disse, foi forçado a reformular a sua proposta de governo sobre o petróleo por conta do sentimento patriótico entre o povo desenvolvido pelas forças progressistas. Fatos como este se repetiram nos governos Jânio Quadros e João Goulart, e refletiam o crescimento das correntes políticas populares. A eleição de Miguel Arraes para governador do Estado de Pernambuco marcou a entrada em cena, naquela conjuntura, de uma tendência política desvinculada dos esquemas tradicionais.
Ações golpistas
Foi o suficiente para alarmar as forças conservadoras, atiçando o seu instinto de sobrevivência. A vida política do país foi se conturbando com o aprofundamento do choque entre os dois campos. E a UDN — o PSDB da época —, com suas faces gráfica, fardada e política, que havia sido batida com a renúncia de Jânio Quadros, partiu para a pregação golpista sem meias palavras. A situação se complicou quando surgiu a questão da sucessão presidencial, que deveria se dar em 1965.
O campo progressista discutia os nomes do próprio Juscelino Kubitschek, de Miguel Arraes, do ex-governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e até a saída extraconstitucional da reeleição de Goulart para enfrentar Carlos Lacerda, do campo conservador. Quando o campo progressista tentou articular uma “frente ampla” sem Juscelino Kubitschek para sustentar o governo e fazer a sucessão presidencial, a direita já havia estruturado um engenhoso sistema de obtenção de fundos (sacados principalmente das grandes empresas estrangeiras) para financiar as ações golpistas.
Cegueira política
Nas vésperas do golpe militar de 1º de abril de 1964, as bases políticas do campo progressista estavam bastante enfraquecidas. Era o resultado das eleições de outubro de 1962, quando a direita ganhou o controle dos principais Estados (com a exceção de Pernambuco). Contribuíram também para o enfraquecimento do campo popular os equívocos das forças progressistas que, aberta ou veladamente, compreendiam ser sua principal tarefa a criação de dificuldades ao governo — na vã ilusão de que com isso era possível avançar muito mais.
A cegueira política impediu que todos os esforços se voltassem para o combate ao inimigo, que preparava febrilmente o golpe de Estado. Quando os militares que expressavam a ideologia da UDN marcharam rumo ao Palácio do Planalto, o povo estava desarmado politicamente para enfrentar os golpistas. As forças populares se viram diante de um fato que não estava previsto em seus cálculos, ficando hemiplégicas diante dos acontecimentos. A tática das correntes progressistas estava apoiada numa base falsa: a de que não havia uma correlação de forças favorável ao golpe.
Ares de dramaticidade
Era uma visão decorrente da vitória do povo quando João Goulart tomou posse, enfrentando os militares da UDN, após a renúncia de Jânio Quadros. Aquela derrota dos golpistas foi tomada como algo definitivo, como demonstrativo de uma mudança de qualidade na vida política brasileira. As forças progressistas não viram que aquela vitória ocorreu por razões e fatores de ordem conjunturais, que poucos meses depois desapareceriam. Desorientadas pelo êxito obtido, não traçaram uma tática com bases nos fatos e na realidade nacional.
Seria interessante que certas figuras do campo de apoio ao governo revisitassem este cenário para, quem sabe, compreender melhor o que se passa com o país atualmente. As forças progressistas derrotadas em 1964 foram vitoriosas em 2002, em 2006 e em 2010 porque enfrentaram a ditadura militar, travaram uma dura disputa com a direita na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 e nas eleições presidenciais de 1989, e resistiram ao projeto neoliberal. Os elementos desta trajetória estão presentes na atual disputa política que ganha cada vez mais ares de dramaticidade. Não enxergar isso é miopia política de oito graus.