Atire, covarde!

O grito de Aristeu Magalhães fez Zélia Magalhães correr em direção ao marido, tomando-lhe a frente, de costas voltadas para os policiais. O tiro ecoou e a mulher caiu ao solo, banhada de sangue. Aristeu acabara de ver sua esposa, uma jovem de 23 anos grávida de dois ou três meses, ser baleada fria e covardemente. Era a tragédia dos pobres, dos esquecidos. Tomado pela fúria, avançou sobre os policias até que foi dominado e encaminhado à Polícia Central. O casal voltava da Esplanada do Castelo, na noite de 16 de novembro de 1949, onde ocorrera um comício convocado pela “Liga Brasileira de Defesa das Liberdades Democráticas”.

Usando de prerrogativa inscrita na Constituição Federal, conforme explicou a entidade em nota sobre o assassinato de Zélia Magalhães, o evento foi programado para homenagear o 60º aniversário da República e protestar contra um projeto do governo que pretendia instituir a Lei de Segurança Nacional. Segundo Pedro Pomar, a polícia cercou a Esplanada do Castelo, instalou estações de rádio em casas particulares — até a força — para gravar os discursos e outras manifestações. “Temos, senhores, testemunhas de que a polícia invadiu lares para instalar estações de rádio”, discursou.

No dia seguinte ao ocorrido, uma comissão de mulheres foi à Câmara dos Deputados pedir apoio para que o crime fosse exemplarmente punido. Aristeu Magalhães também estava presente. Pedro Pomar fez um discurso indignado. “Responsabilizo, neste instante, o senhor Eurico Dutra e o senhor ministro da Justiça por tais crimes”, disse. Não adiantava punir os beleguins que cumpriam ordens. Eram paus mandados, cães de guarda do governo que mordiam quando o dono mandava. A responsabilidade deveria ser atribuída às autoridades, que não respeitavam sequer a liberdade de viver prevista na Carta das Nações Unidas.

Pedro Pomar disse que a polícia tentou acertá-lo. “Se os sicários do senhor Eurico Dutra e do ministro da Justiça ontem quiseram atingir-me pelos seus beleguins, tenho a dizer à casa (a Câmara dos Deputados) a minha convicção de que a democracia, a liberdade para o nosso povo só pode ser conquistada com sacrifício”, afirmou. Mas o que mais o indignou foi o assassinato de Zélia Magalhães. Segundo ele, os policiais arrancaram Aristeu Magalhães do bonde na Praça 15 de Novembro, distante do local do comício. O policial que atirou conhecia Aristeu Magalhães. “A esposa, tentando salvá-lo, agarrou-se a ele, sendo assassinada brutalmente, com um tiro na nuca que saiu pela boca. Antes de morrer, foi pisoteada pelos policiais”, detalhou.

A indignação era tanta que Pedro Pomar cobrou responsabilidades até da Igreja Católica. “Teremos punição para este crime? É o que indago nesta casa, é o que a opinião pública deseja saber. Será este crime acobertado, quando foi praticado diante de tantas testemunhas, numa praça pública, dentro de um bonde cheio de passageiros? Esse banditismo poderá ser bendito pelo senhor cardeal da santa madre Igreja Católica Apostólica Romana, por sua eminência Jaime Câmara? Porque um cidadão é comunista todos os senhores da reação acham-se no direito de matá-lo?”, discursou.

No dia seguinte, ele voltou à tribuna para registrar a multiplicação dos protestos contra a “selvageria policial”. “O povo do Distrito Federal, como toda a nação brasileira, está ainda hoje sob a comoção dos crimes ocorridos na Esplanada do Castelo”, disse. Segundo Pedro Pomar, no dia anterior o povo acorreu em massa ao enterro e manifestou, profundamente sentido, solidariedade democrática, todo sentimento humano de condenação, de reprovação e de ódio ao crime, aos criminosos e ao “governo de traidores e de bárbaros”. Em seguida, leu o testemunho de Aristeu Magalhães na polícia, dito “em sua linguagem de operário e de homem honesto, linguagem bem diferente da de representantes de bandidos, e da dos porta-vozes do governo nesta casa”.

Logo que se dera o tiroteio — declarou Aristeu — eu e minha esposa, obedecendo às ordens do coronel Alencastro Guimarães (vereador e presidente da Liga Brasileira de Defesa das Liberdades Democráticas), que pedia a evacuação dos presentes, e que não fossem aceitas as provocações da polícia, nos dirigimos para a Rua da Misericórdia, onde tomamos um bonde linha “36”, seguindo o mesmo a direção da Praça 15 de Novembro. Já éramos seguidos por uma turma de investigadores, todos empunhando revólveres, entre os quais se encontrava o indivíduo conhecido pelo vulgo de “Procopinho”, que também estava armado, embora não pertencesse aos quadros da D.F.S.P. Ao atingir o elétrico a Rua Clapp, os mesmos policiais que vinham acompanhando o veículo, arrancaram-nos violentamente do bonde, iniciando os espaçamentos, indistintamente, contra mim e minha esposa.
A nota prosseguia, não mais na primeira pessoa do singular.

Aristeu, em face dos castigos a que submetiam sua esposa, travou luta com os policiais. A certa altura, “Procopinho” apontou a arma contra o declarante com o firme propósito de atirar à queima-roupa, tendo Aristeu gritado:— Atire, covarde!

Nessa ocasião, percebendo a gravidade das ameaças policiais, Zélia, notando que era desejo daqueles assassinarem seu marido, tomou-lhe a frente, de costas voltadas para os policiais. Nesse momento, justamente, um tiro ecoou, caindo ao solo banhada de sangue a pobre senhora. Aristeu, desesperado ante o quadro que acabava de assistir, sua esposa baleada fria e covardemente pelos policiais, com os mesmos se empenhou, novamente, em luta, acabando por ser por eles dominado, depois de cruéis espancamentos, e conduzido preso até a Polícia Central, onde ficou recolhido ao xadrez até ontem à tarde, quando foi posto em liberdade.

Zélia, cujo ferimento era gravíssimo, foi ainda espancada pelos policiais e depois conduzida para o Posto Central de Assistência, sendo aí submetida imediatamente à melindrosa operação. Mas seu estado era desesperador, razão por que veio a falecer pouco depois. Foi a polícia quem matou minha esposa, concluiu.

Pedro Pomar leu também uma nota do vereador Alencastro Guimarães, o presidente da “Liga Brasileira de Defesa das Liberdades Democráticas” dizendo que a responsabilidade pelos acontecimentos cabia exclusivamente à polícia, com irrefutável agravante de premeditação. Segundo o documento, os agentes policiais, ao contrário das notas oficiosas garantindo a proteção ao comício e publicadas nos jornais da tarde de 16, só compareceram à Esplanada do Castelo com o objetivo deliberado de dissolver a reunião e massacrar o povo.

Leu ainda uma nota do “Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional”, protestando contra “o inqualificável assalto ao povo que participava do comício em homenagem à República e em defesa das prerrogativas do cidadão que a Liga de Defesa das Liberdades Democráticas promoveu”. “O Brasil progredirá, e os brasileiros, reverenciando com orgulho a memória dos mártires como Deoclécio Augusto Santana (operário assassinado pela polícia em junho de 1948 durante um ato em defesa do petróleo organizado pelo Centro Nacional de Estudos e Defesa do Petróleo em Santos) e Zélia Marques Magalhães, viverão, pelos tempos dos tempos, numa pátria livre, próspera e feliz”, dizia o documento.

A União Nacional dos Estudantes (UNE) também se manifestou. A nota, igualmente lida por Pedro Pomar, dizia que “as ocorrências verificadas no dia 16 na capital da República, quando foi barbaramente assassinada uma senhora grávida e feridos vários populares, inclusive um estudante, em consonância com a agressão praticada contra o povo paulista no Vale do Anhangabaú, onde foi preso o estudante Carlos Alberto de Souza Barros, membro da UEE, a violenta invasão da sede da ABI, em sucessão às constantes violações à nossa Carta Magna com varejamento de lares, espancamentos e prisões, inclusive de estudantes, vem demonstrar que as garantias e liberdades constitucionais estão realmente eliminadas”.

A “Diretoria da Associação Brasileira de Escritores” reuniu-se extraordinariamente e emitiu uma nota, também encaminhada a Pedro Pomar. “O atentado de agora, mais um entre muitos, repete aquele que, há poucos dias, houve na Associação Brasileira de Imprensa, com a gravidade de chegar ao assassínio em praça pública”, dizia.

Pedro Pomar abria os papéis, lia o conteúdo e protestava. “Só estes corações já empedernidos pelo crime, só estes homens já sem sentimento é que, diante da opinião pública estarrecida por tais fatos, terão coragem de verter a voz para justificar o assassínio da jovem senhora porque era esposa de um comunista, ou ela mesma comunista”, disse. O ocorrido era decorrência da política do anticomunismo sistemático, do fascismo, da liquidação da democracia, da fome e da guerra. Além de Dutra, Pedro Pomar disse que o ministro da Justiça, “o mui católico e devoto senhor Adroaldo Mesquita da Costa”, deveria ser responsabilizado.

O sangue vertido por Zélia Magalhães marcaria um crime que a opinião pública jamais perdoaria. Em virtude daquele sangue, o movimento patriótico e democrático teria um novo impulso, cresceria. Lembrou o período do Estado Novo, para atestar que os brasileiros jamais se intimidaram, jamais evitaram lutar pela democracia e pela independência da pátria. Aos comunistas, um crime como aquele jamais intimidaria. Pelo contrário. “Os estimulará, como bons patriotas para a defesa da independência de sua pátria”, disse. “Aos comunistas, um crime como este só lhes multiplicará as energias para combater esta ditadura infame que infelicita a nossa gente.”

Como exemplo, citou o rápido crescimento do PCB. “Vedes bem, senhores: em 1935 e em 1937, e mesmo em 1945, os comunistas eram praticamente poucos milhares em nossa pátria. Mas já em 1947, eram mais de duzentos mil. Agora, estes homens que têm medo do futuro, que estão cegos pela sua impotência, que se mostram ferozes pela sua incapacidade, bem sabem que este estado de coisas não é eterno. Eles não ignoram isso e por tal agem com essa ferocidade, sabendo como sabem que não lhe está reservado o futuro”, afirmou.

Pedro Pomar encerrou o discurso dizendo que não queria terminar o protesto “sem a leitura de uma das mais comoventes crônicas já por mim lidas, da jornalista Sarah Marques, sob o título ‘Hipocrisia’”.

Bem dizíamos ontem que eram pura hipocrisia as homenagens oficiais a Rui Barbosa. Ah, o cinismo indecoroso, a mentira grosseira dessa genuflexão da estupidez consciente e do fascismo mascarado, diante daquele que fez da liberdade a sua bandeira e de toda sua vida uma pregação democrática!…

Hipocrisia! Dez dias depois do centenário de Rui, dez dias depois que os seus “sagrados despojos” (como eles dizem) atravessaram entre alas de tropas em continência, e sob a glória das bandeiras a artéria central da cidade; dez dias depois de tantos discursos literários e de tantas frases pomposas, a capital da República se transforma, de novo, em cenário da selvageria policial.

O povo desarmado, o povo que só tem a palavra de seus líderes para opor aos intentos criminosos do governo; o povo que Rui gostaria assim empolgando pela idéia da liberdade, assim voltado para os problemas de ordem pública, o povo desta hoje realmente “mui heróica cidade” foi caçado à bala pela polícia como se fosse um bando de feras, quando exercia um direito constitucional.

E Zélia foi assassinada; Zélia, a moça que vinha aqui à redação, durante meses e meses, contar as torturas do marido preso, pedir que fizéssemos alguma coisa, que protestássemos com voz mais forte do que a sua voz de mulher tão moça e tão simples.

Agora, o marido estava em liberdade, Zélia vivia feliz na sua pobreza, sonhando com o primeiro filho que ia chegar. Mataram Zélia à queima-roupa quando procurava defender — tão frágil, coitadinha! — o marido que a polícia espancava. É crime, senhor dos Céus, uma mulher defender o marido? Então, e por que nos falam com tanta insistência em “defesa da família”?

Cínicos, hipócritas, covardes! Principalmente covardes; assassinos que se escudam na autoridade para trucidar impunemente mulheres e crianças, e trabalhadores anônimos, e intelectuais pacíficos. E são eles mesmo que nos falam em “proteção à maternidade e à família”! E matam Zélia, estupidamente, com seu menino nas entranhas, esposa e mãe tão jovem, tão amorosa, tão brava!

Depois homenageiam Rui Barbosa! E vão almoçar em Brocoió (ilha localizada no interior da baía de Guanabara), com música, uísque e vinho de Borgonha! E nem sentem que há gosto de sangue nos copos levantados entre sorrisos falsos. Sangue do povo que clama para vingança e um dia — amanhã ou daqui a séculos — há de levantar as pedras da rua para vingar a morte de seus filhos.