O julgamento da AP 470, todo ele ancorado em uma catarse midiática, ironicamente atingiu seu clímax no último dia 18, cercado de uma pedagógica ressaca.

Feita de ressentimentos mútuos, ela envolveria dois de seus principais protagonistas: um juiz, até então incensado pela mídia como símbolo da virulência antipetista, e um jornalismo desde o início decidido fazer justiça com as próprias manchetes.

O acidente de final de percurso poderá conferir um maior recato e autonomia ao futuro das relações entre togas e redações? Trará ganhos significativos para o estado de Direito e a qualidade da informação? Ou findará como mero ponto fora da curva, em uma convergência fadada a judicializar a política até que as elites consigam equipar-se para a volta ao poder?

A endogamia entre a mídia e o STF aprofundou-se desde abril de 2006 quando o Supremo aceitou a denúncia da AP 470.

Superando as expectativas mais pessimistas, o acasalamento evoluiria para uma quase subordinação da maioria dos integrantes da corte às pautas, holofotes e urgências marteladas pela emissão conservadora.

Uma injeção deletéria e diuturna de preconceito contra a atividade política, a ação partidária e a negociação democrática, indissociável da construção das maiorias em regime presidencialista, ocupou então o espaço do tribunal e o das manchetes.

Ao longo de meses, togas e rábulas de redações entregaram-se com inexcedível empenho ao labor de disseminar o vírus do analfabetismo político na sociedade.

Uma opinião pública cuidadosamente subtraída do direito à pluralidade informativa, sem a qual não há discernimento crítico, foi entregue à lógica dos linchadores.

O Estado de Direito foi a sua primeira vítima.

A adubação venenosa nunca hesitou no método, nem duvidou do alvo.

O antipetismo biliar, antes de elucidar e advertir para os desvios estruturais da política brasileira, esponjou-se na indignação seletiva, contentando-se em picar e salgar o secundário, ao mesmo tempo em que mantinha intactas as instituições e circunstancias que o reproduzem.
Na construção desse imaginário tosco e maniqueísta, indiferente aos reais desafios da democracia no país, operava um esmerado encadeamento narrativo em que as manchetes de véspera formavam o fraseado das togas do dia seguinte – e vice versa.

O conjunto amparava-se na firme condução de um calendário definido com o propósito de tornar eleitoralmente desfrutável uma condenação preconcebida.

Foi no auge dessa espiral que, no último dia 18, o juiz Celso de Mello – um dos centuriões mais agressivos do jogral justiceiro — cedeu ao apelo da biografia jurídica. E proferiu o voto de desempate, que acolheria os embargos infringentes, reabrindo desse modo o julgamento para novos recursos.

A trinca abriu uma convulsão intestina na engrenagem até então desprovida de referências e propósitos que não os de condenar e execrar.

O que avulta de mais interessante da troca de acusações que se seguiu, envolvendo o juiz e certas redações, é a força intrusiva de uma pressão midiática exacerbada e descabida, só agora reconhecida na nitidez do seu abuso.

Longe de ser nova ela sempre esteve presente, ao longo de todo o julgamento. Influenciando-o, bem como à opinião pública em relação a ele. Indo muito além da faixa de segurança aconselhável a preservação do estado de Direito em um tribunal.

O excesso só poderia ser desnudado por outro que o desmascarasse nos seus próprios termos.

Foi o que cuidou de fazer a sofreguidão midiática a cercar, tutelar e chantagear o decano do STF nos dias, horas e minutos que antecederam o seu voto.

A ponto, repita-se, de que um dos principais centuriões do antipetismo togado, declarar-se incomodado com os decibéis de um jornalismo abusivo, capaz de sugerir que seria crucificado se errasse a mão.

Em entrevista concedida esta semana a um jornal de Itu, reafirmada em seguida à Folha de SP, Celso de Mello resolveu desabafar a estupefação diante das pressões de que foi alvo nas vésperas do dia 18.

“Nunca a mídia foi tão ostensiva para subjugar um juiz”, disse à jornalista Mônica Bergamo, da Folha, classificando como ‘inaceitável’ uma intrusão capaz de colocar em risco as “liberdades individuais” garantidas pela Constituição.

“Eu honestamente, em 45 anos de atuação na área jurídica, como membro do Ministério Público e juiz do STF, nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação sociais buscando, na verdade, pressionar e, virtualmente, subjugar a consciência de um juiz”, reiterou Celso de Mello.

A resposta de seus pares não tardou. Os ministros Marco Aurélio e Gilmar Mendes, sempre à vontade no intercurso com a mídia conservadora, assumiram a tarefa de legitimar o ‘trabalho normal’ das redações.

“Não é pressão, o que há é manifestação, a manifestação da sociedade”, abalou-se em dizer Marco Aurélio, reforçado por Gilmar Mendes, que inverteu o sentido da equação: “Muitos dos ministros ficaram sob um ataque fortíssimo de blogs e de órgãos de mídia que são fortemente vinculados a determinados réus. E nem por isso ninguém tem reclamado”, disse o ex-advogado-geral de FHC.

“Há alguns que ainda insistem em dizer que não fui exposto a uma brutal pressão midiática. Basta ler, no entanto, os artigos e editoriais publicados em diversos meios de comunicação social (os ‘mass media’) para se concluir diversamente!”, rebateu Celso de Mello enfático.

Tem razão o decano.

Mas sua razão resulta inconclusa. E assim resultará sempre, a menos que supere a crítica pela própria autocrítica, e enxergue o todo sem se deter na parte que o leva a debitar na conta do episódio isolado, insólito, aquilo que na verdade guarda coerência com a norma de todo o processo do qual foi um beligerante protagonista.

O verdadeiro insólito, nesse sentido, foi o seu voto de desempate.

Um voto técnico ancorado no Direito e na jurisprudência. Como deveria ter sido todo o julgamento. Mas que justamente por configurar uma dissonância, valeu-lhe a acusação de, por apego à lei, retardar o desfecho de um julgamento escandalosamente político.

A mídia, ao contrário, manteve-se rigorosamente coerente.

O conjunto de manifestações externadas nos veículos conservadores, antes, durante e depois do voto de Celso de Mello, enfatiza a esférica convicção que era imperioso julgar politicamente, condenar politicamente e faze-lo dentro de prazos politicamente desfrutáveis aos seus propósitos. E aos do conservadorismo brasileiro.

Se o ministro Mello tem dúvida desse escopo, basta ler um acervo de colunas, artigos e reportagens publicados nesse período e coligidos por Caio Hornstein.

O Estado de S. Paulo, 13 de setembro de 2013
O jornal dá voz a políticas da oposição, que declaram que “rejeitar os embargos infringentes é vai aliviar o estresse da população”.

http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,rejeicao-de-recurso-aliviara-estresse-diz-opositor,1074143,0.htm

O Estado de S. Paulo, 14 de setembro de 2013
Editorial do jornal faz menção novamente à afronta à opinião pública que representaria o prolongamento do julgamento do mensalão.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,decisao-adiada-,1074559,0.htm

O Estado de S. Paulo, 17 de setembro de 2013
Às vésperas da decisão de Celso de Mello, Fernão Lara Mesquita Crava que, caso o ministro negue a procedência dos embargos declaratórios, “podemos ver revigorada a esperança de ingressar na modernidade e sonhar com a democracia” […]

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-ultima–chance-,1075537,0.htm

Oscar Vilhena, da Faculdade Getúlio Vargas, lança mão de argumentos sociológicos e psicológicos para explicar que as decisões de ministros não são puramente técnicas e amparadas na lei. Conclui questionando se Celso de Mello conseguirá embasar racionalmente a decisão que já parece ter tomado.

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-consciencia-as-ruas-ou-a-lei,1075520,0.htm

O Estado de S. Paulo, 18 de setembro de 2013
Creio que o editorial do Estadão, no dia em que os embargos iam ser julgados os embargos, seja por si só tão eloquente que dispensa qualquer comentário adicional.

http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/feira-livre/linha-divisoria-editorial-do-estadao/

Folha de S. Paulo, 13 de setembro
Joaquim Falcão, professor de direito constitucional da GV, faz a análise de que a aceitação dos embargos infringentes é sinal de falta de coragem na justiça brasileira.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/13/2//5893130

O articulista Marcelo Coelho escreve texto – que ocupa uma página inteira do jornal – em que retrata a atuação de Gilmar Mendes no voto sobre os embargos infringentes no dia anterior. As opiniões dos ministros favoráveis ao acato dos embargos são ridicularizadas no texto.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/13/2//5893119

Folha de S. Paulo, 15 de setembro
A diagramação da página da Folha de S. Paulo, em que se resumem em pequenos tópicos o significado e as consequências dos embargos infringentes, passa a impressão de querer causar pânico sobre o que representa esse artifício jurídico. Percebam como as palavras recursos, tempo, prisão são destacados em negrito.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/15/2//5893534

No caderno suplementar de domingo, cujo propósito é resumir os fatos mais importantes da semana, novamente se reproduz o texto que se dá voz aos argumentos de Gilmar Mendes e ridiculariza os votos dos ministros favoráveis à aceitação dos embargos infringentes. O texto é tão enviesado que passa a impressão de ter sido escrito por um assessor de imprensa de Gilmar Mendes.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/15/661//5893622

Folha de S. Paulo, 16 de setembro
O editorial do jornal exerce clara pressão ao ministro Celso de Mello. Lembra do clamor popular pela condenação e a sensação de impunidade que o voto do ministro poderia causar na opinião pública. O jornal também faz menção a um suposto impacto político que a decisão favorável aos embargos infringentes poderia causar. O editorial rememora que ele absolveu Collor em 1994.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/16/2//5893642

Em matéria sobre o ministro Celso de Mello, Folha destaca no olho a declaração do ministro de que “a pressão popular é absolutamente irrelevante”. Na matéria, cita o fato de que o Celso de Mello foi interpelado em um café em Brasília por duas senhoras que pediram a ele para não decepcioná-las. O jornal está empenhado em criar a ilusão de que há uma grande pressão e apreensão popular na expectativa do voto do Ministro. No meio da matéria, dá destaque à possibilidade de haver protestos em Brasília reunindo milhares de pessoas – o jornal faz essa inferência com base no compartilhamento de uma imagem por 6 mil pessoas no Facebook (números desprezíveis pelo volume de acessos da rede social).

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/16/2//5893643

Folha de S. Paulo, 17 de setembro
Em editorial, Hélio Schwartsman alega que o STF deve satisfação, sim, à opinião pública, pois o senso de justiça que o tribunal representa é importante para a estabilidade social.
Eliane Cantanhêde é mais enfática. Diz que as razões técnicas e jurídicas para a aceitação dos embargos não merecem ser discutidos os questionados. O que interessam são “as consequências imediatas na alma da população e cicatrizes na história do Supremo”. Por fim, conclui “o supremo decida amanhã o destino de 12 réus e o seu próprio destino.”

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/17/2//5893697

Jânio de Freitas alerta para os riscos institucionais que o Suprema pode sofrer a depender da decisão de Celso de Mello no dia seguinte.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/17/2//5893690

Folha de S. Paulo, 18 de setembro
Já na sua primeira página, Folha publica com grande destaque uma pesquisa que demonstra que a maior parte da população de São Paulo rejeita a reabertura do julgamento do mensalão.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/18/2//5893760

O jornal convoca analistas do Datafolha para concluírem que a opinião pública “condena” o Superior Tribunal Federal. Falam de um arranhão institucional que a atuação do STF está sofrendo com o seu posicionamento nos últimos dias.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/18/2//5893773

Folha relata um protesto no Rio de Janeiro que reuniu 23 pessoas (!!!!) contrárias à aceitação dos embargos infringentes no STF.

http://acervo.folha.com.br/fsp/2013/09/18/2//5893759

O Globo, 15 de setembro
Joaquim Falcão – Errar por Último

http://oglobo.globo.com/pais/errar-por-ultimo-9966631

Merval Pereira – O Juiz e a sociedade
http://oglobo.globo.com/blogs/blogdomerval/posts/2013/09/15/o-juiz-a-sociedade-509991.asp


O Globo, 17 de setembro

Editorial: Em Jogo a Credibilidade da Justiça
http://oglobo.globo.com/opiniao/em-jogo-credibilidade-da-justica-9991318

Rodrigo Constantino: o STF não pode perder o juízo
http://oglobo.globo.com/opiniao/o-stf-nao-pode-perder-juizo-9991422

Publicado em Carta Maior