A Constituinte e os donos do Brasil
Às vésperas do 25º aniversário da Constituição-Cidadã, não posso negar ao improvável leitor de minha coluna as palavras de Ulysses Guimarães na sessão de promulgação da Carta Magna:
“A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas-já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito:
– Mudar para vencer!
Muda, Brasil!”
Há quem diga que o Brasil, ao promulgar a Constituição de 1988, entrou tardia e timidamente no clube dos países que apostaram na ampliação dos direitos e deveres da cidadania moderna. Submetidos, ao longo de mais de quatro séculos, à dialética do obscurecimento que regia as relações de poder numa sociedade marcada pelo vezo colonial-escravocrata e, depois da Independência, pelo coronelato primário-exportador, os brasileiros subalternos deram na Constituinte passos importantes para alcançar os direitos do indivíduo moderno.
Diante das palavras otimistas de Ulysses, no entanto, ocorreu-me relembrar que a vitória na Constituinte não conseguiu eliminar as consequências da derrota na campanha pelas diretas. A busca açodada pelo voto indireto no Colégio Eleitoral não prescindiu da cumplicidade de muitos que estavam na oposição, mas temiam a “radicalidade” de um governo eleito pelo povo. Constrangidos a participar dos comícios, tais “oposicionistas” acenavam com a mão esquerda para os cidadãos aglomerados nas praças, mas cuidavam de livrar a direita para montar os arranjos da eleição indireta. Por isso, os náufragos do regime militar conseguiram chegar à praia, acolhidos pelo bote salva-vidas capitaneado pela turma do deixa-disso.
A campanha pelas diretas promoveu uma forte mobilização popular, mas não teve forças para derrubar as casamatas do poder real que, desde sempre, comandam nos bastidores a política brasileira. Essa turma não tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Em suas fileiras abrigam-se os liberais que apoiam golpes de Estado, as camadas endinheiradas e remediadas que mal toleram a soberania popular e as gentes midiáticas que abominam a opinião divergente.
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O arranjo social do atraso preconiza uma sociedade refém da estagnação, prisioneira da defesa da riqueza estéril
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A democracia dos modernos, seus direitos e contradições, são conquistas muito recentes. Digo contradições porque o sufrágio universal foi conseguido com sacrifício entre final do século XIX e o começo do século XX. Mas já em 1910, Robert Michels cuidava de denunciar a deformação da representação popular promovida pelo surgimento de oligarquias partidárias, fenômeno que nasce e se desenvolve no “interior” dos sistemas democráticos.
Os direitos econômicos e sociais nasceram da luta política das classes subalternas. Entre o final dos anos 30 do século passado e o desfecho da Segunda Guerra Mundial a presença das massas assalariadas e urbanas no cenário político impôs importantes transformações no papel do Estado. A função de garantir o cumprimento dos contratos, de assegurar as liberdades civis e os direitos políticos, apanágio do Estado Liberal, é enriquecida pelo surgimento de novos encargos e obrigações: tratava-se de proteger o cidadão não-proprietário dos mecanismos cegos do livre – mercado, sobretudo dos azares do ciclo econômico.
Em 1992 os cara-pintadas acorreram às ruas para pedir o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello. Antes de morrer, Ulysses compreendeu que a campanha popular pelas eleições diretas e a Constituição ainda sofriam o assédio insidioso, persistente e renovado do velho arranjo oligárquico que pretende controlar a vida dos brasileiros.
Os brasileiros – alguns hoje se manifestam nas ruas – foram submetidos a um processo de “esquecimento coletivo” promovido por uma conspiração de silêncio. A conspirata envolve não só os governantes esbirros do conservadorismo, os senhores da mídia, mas também o sistema educacional – do ensino básico ao superior – empenhado em formar analfabetos funcionais ou, na melhor das hipóteses, especialistas incapazes de compreender o mundo em que vivem.
A estrutura de classes no Brasil é muito original: na cúspide, os predadores que disputam os despojos da riqueza velha; no meio, os trouxas e os espertalhões ideológicos das camadas falantes semi-ilustradas; lá embaixo, os “ferrados” que tentam desesperadamente emergir da miséria.
Se não restringisse suas fontes aos idiotas funcionais do cosmopolitismo caboclo, os editores da revista “The Economist” nas duas matérias de capa que trataram do Brasil teriam a oportunidade de escapar dos extremos ridículos: na primeira capa, a exaltação precipitada; na segunda o besteirol fecundado nas ideologias que levaram a economia mundial ao desastre financeiro. Perceberiam que as lideranças das classes dominantes brasileiras e seus porta-vozes na mídia estão sempre alinhados com o que há de mais expressivo no caquético capitalismo brasileiro.
O arranjo social do atraso preconiza uma sociedade submissa ao rentismo, refém da estagnação, prisioneira da defesa da riqueza estéril alimentada pelo fluxos de “hot dollars”. Imobilizados nos pântanos do parasitismo, os bacanas e sabichões acovardam-se diante dos azares da incerteza, avesso aos riscos de construção da nova riqueza. Aí está desvelado, em sua perversidade essencial, o “segredo” das reivindicações anti-sociais dos vassalos do enriquecimento sem esforço cevado por taxas de juros absurdas. Clamam pelo aumento do desemprego. Este é o alto preço que o presente agrilhoado ao passado cobra do futuro.
Fonte: Valor