O avesso do “padrão Fifa”
A partir do final dos anos de 1970 a ideologia neoliberal ganha expressão no cenário internacional. No plano econômico, a estratégia imposta aos países subdesenvolvidos para ajustarem-se à nova ordem capitalista mundial foi sintetizada no chamado Consenso de Washington. No campo político, foram estreitadas bases da democracia liberal representativa. No campo social, destacam-se duas frentes da ofensiva dos mercados. Primeiro, o “ataque” aos direitos trabalhistas, pela decisão de “quebrar a espinha dorsal” dos sindicatos e dos movimentos organizados da sociedade e ampliar os espaços para desregulamentar as relações de trabalho.
A segunda frente voltava-se contra os regimes de Estado do Bem-Estar Social em favor dos ideários do Estado mínimo, que representa sua negação: focalização versus universalização; assistencialismo versus direitos; seguro social versus seguridade social; mercantilização versus serviços públicos; contratos flexíveis versus direitos trabalhistas e sindicais.
Nesse cenário, esses regimes consolidados nos países desenvolvidos estiveram tensionados por uma onda de reformas visando ao retrocesso. Mais graves foram suas consequências para os países periféricos que destruíram sem piedade seus embrionários aparatos de proteção. Procurou-se impor a focalização como a “única” política social possível. A tática ideológica enaltecia programas dessa natureza para pavimentar o caminho rumo à reforma do Estado que desconstruísse as políticas universais e privatizasse serviços públicos.
No Brasil, no início da década de 1990, os valores do Estado de Bem-Estar, inscritos na Carta de 1988, eram incompatíveis com a agenda do Estado mínimo. Aos olhos do mercado, a “Constituição cidadã” se transformou na “Constituição vilã”. A conservação do status quo social passava a exigir a eliminação do capítulo sobre a “Ordem Social”.
O ideário liberal passou a ser defendido por especialistas que detinham vínculos estreitos com as agências internacionais. A “estratégia” para o enfrentamento da questão social no Brasil se encerrava numa única ação: políticas de transferência de renda para as pessoas que estão “abaixo da linha de pobreza”. Essa linha é arbitrada pelo Banco Mundial em escala global: “pobre” é quem recebe menos de US$ 2 por dia.
Nessa lógica, qualquer programa social cujos benefícios equivalem ao salário mínimo (o seguro-desemprego ou a previdência social, por exemplo) não está focalizado nos pobres e, portanto, perpetua a “armadilha da desigualdade”.
Para essa corrente o Brasil seria um “país rico”; os recursos existiriam, mas estariam sendo “mal distribuídos”. O gasto da previdência e da assistência social, por exemplo, seria apropriado por “velhos” e “vagabundos”. A renda dos aposentados induziria ao ócio os jovens dessas famílias.
A “solução” para acabar com tamanha “desigualdade” seria, simplesmente, transferir o gasto social: em vez de aplicá-lo em programas universais (como o seguro-desemprego, o SUS e a previdência social, por exemplo), que seriam acessíveis apenas para a “elite” da classe trabalhadora (aqueles que possuem carteira de trabalho) e para os “endinheirados” em geral (aqueles que recebem salário mínimo), bastaria deslocar aquele gasto social para os pobres eleitos pelas agências internacionais.
Poucos percebem que essa suposta opção pelos pobres é, na verdade, elemento coadjuvante dos programas liberais de ajuste macroeconômico e de reforma do Estado. O real objetivo é promover o ajuste fiscal e capturar esses fundos públicos. Políticas focalizadas são mais baratas (0,5% do PIB) que políticas universais como, por exemplo, a previdência social (8% do PIB). Essa é verdadeira razão que move a ortodoxia brasileira e internacional.
Além do ajuste fiscal, a estratégia tem um claro viés privatizante. Na década de 1990 o Banco Mundial elaborou o conhecido “modelo dos três pilares”. Ao Estado cabe somente atuar no “pilar inferior”, onde se situa a pobreza (menos de US$ 2 por dia). Para o pilar intermediário e o superior, as “soluções” seriam ditadas pelo mercado. A privatização foi imposta para setores essenciais, como previdência, saúde, saneamento, transporte público e educação. Na década de 1990 mais de uma dezena de países da América Latina privatizaram a previdência social, por exemplo.
Essa “estratégia única” passou a serimposta como o núcleo da “agenda” voltada para o “desenvolvimento social” nos anos de 1990. Crescimento da economia, geração de empregos, valorização da renda do trabalho e políticas públicas universais que asseguram a cidadania social eram dispensáveis.
Paradoxalmente, no plano internacional essa visão foi reforçada após a crise internacional de 2008. O Estado teve de salvar o capitalismo desregulado dos capitalistas. O fracasso do neoliberalismo foi enfrentado pelo reforço do neoliberalismo. A resposta das lideranças globais foi a implantação da chamada Iniciativa do Piso de Proteção Social (I-PPS), novo consenso global, apoiado pelo FMI, Banco Mundial e por cerca de vinte agências da ONU.
Trata-se de nova embalagem para um velho produto: políticas focalizadas como “estratégia única”. A ideia implícita é conceder recursos financeiros aos pobres para que eles comprem no mercado os bens e serviços sociais de que necessitam. Consiste em assegurar renda para que os pobres tenham “liberdade de escolha” e capacidade para “gerenciar seus próprios riscos”.
A agenda liberalizante também foi reforçada em função da alegada ascensão da chamada “nova classe média” latino-americana. Documento do Banco Mundial de 2012 traz mensagem subliminar de que a população que saiu da pobreza extrema e “entrou na classe média” quer serviços privados (saúde, escolas, previdência, saneamento). Abre-se, assim, uma nova oportunidade para os negócios do capital financeiro na América Latina.
A estratégia de desenvolvimento para o Brasil não pode prescindir de programas emergenciais focados naqueles que estão submetidos à fome e miséria extrema, bem como à margem do trabalho ou precariamente inseridos (mais de 70% dos adultos do programa Bolsa Família trabalham). O equívoco é pretender fazer desse eixo a própria “estratégia” de enfrentamento do problema social.
Felizmente, a partir de meados dos anos 2000 o Brasil passou a considerar programas focalizados e universais como ações convergentes – e não excludentes. Além disso, a estratégia de enfrentamento da questão social foi impulsionada pela melhor articulação entre as políticas econômica e social, a ampliação dos empregos formais e a valorização da renda do trabalho. Negando os dogmas do projeto liberal, é essa articulação de políticas públicas que explica os recentes avanços sociais. A tarefa que se impõe é preservar essas conquistas e, mais importante, avançar na construção de uma agenda que enfrente os problemas estruturais do nosso subdesenvolvimento (econômico, político e social) que ainda persistem.
Em suma, foi somente em 1988 que o Brasil incorporou os valores do Estado de Bem-Estar Social adotado em muitos países a partir de 1945. Quando o fez, esse paradigma já estava na contramão do movimento global. Assim, o ambiente que se formou nos anos 1990 era hostil à cidadania recém-conquistada.
O que isso tudo tem a ver com o “padrão Fifa” reivindicado pelas marchas populares de 2013?
Em última instância, as vozes difusas “queremos escolas, hospitais, postos de saúde e serviços públicos com padrão Fifa” contestam os dogmas do Estado mínimo que vendem a ilusão de que bastam políticas focalizadas para alcançar o “bem-estar”. Também questionam os valores do individualismo e da meritocracia; reivindicam a inclusão pela cidadania, e não apenas pelo consumo; exigem serviços públicos, e não privados; querem direitos universais, e não “políticas pobres para pobres”. Ao mesmo tempo, reforçam a visão de que o desenvolvimento requer os mesmos valores do Estado de Bem–Estar Social (direitos, igualdade, universalidade e seguridade) que estão inscritos na Carta de 1988.
Referências
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DRAIBE, S.M. “As políticas sociais e o neoliberalismo – Reflexões suscitadas pelas experiências latino-americanas”. Revista USP nº 17. São Paulo: USP, 1993.
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OIT. Piso de Proteção Social para uma Globalização Equitativa e Inclusiva – Relatório do Grupo Consultivo presidido por Michelle Bachelet, constituído pela OIT com a colaboração da OMS. Genebra, 2011.
Eduardo Fagnani é doutor em Ciências Econômicas pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (Cesit) da Unicamp. É ainda coordenador da rede Plataforma Política Social – Agenda para o Desenvolvimento e membro do Grupo de Conjuntura da Fundação Perseu Abramo.
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