O DNA brasileiro
Entre prognósticos de retumbante sucesso e augúrios de fracasso catastrófico, o leilão do suculento Campo de Libra decepcionou as duas facções. Da disputa entre pessimistas e otimistas saíram vencedores os desinteressados e desinteressantes realistas, aqueles que cuidam das condições reais dos mercados de óleo na segunda década do Terceiro Milênio. Não vou reproduzir aqui os argumentos exarados em artigo publicado em CartaCapital em parceria privada-privada com o professor José Augusto Ruas.
Não creio que a derrota contribua para apaziguar os exaltados de um lado e de outro, incapazes de compreender a sábia recomendação de Nietzsche: “Em meio a uma discussão acalorada, congele seus argumentos”. (Esse aconselhamento deveria servir de guia para outras acendradas contendas no campo político, cultural e até mesmo esportivo.)
Qual o quê! Cantaria, com açúcar e com afeto, o bardo talvez ameaçado por biografias argentárias. Dos prognósticos sobre o sucesso ou fracasso do leilão, os querelantes passaram a debater apaixonadamente o caráter privatizante ou estatizante do modelo de exploração das reservas descobertas pela ineficiente Petrobras.
Leio um colunista de respeito e prestígio que acusa o modelo de exploração escolhido pelo governo brasileiro de hostil aos negócios privados. Sugere o reverenciado articulista que o vício estatizante contamina irremediavelmente o DNA brasileiro. Diante de tão peremptória afirmação, sinto-me obrigado a recorrer ao exercício da dúvida metódica, amparado em autores brasileiros que cuidaram da formação social, econômica e política do Brasil varonil.
Vou me valer de Sérgio Buarque de Holanda e Maria Silvia de Carvalho Franco. Sob diferentes ângulos, tratam de escapar dos raciocínios binários que avassalam o debate brasileiro na atualidade. Malgrado as diferenças de tratamento, os dois autores mencionados, inspirados em Max Weber, desvelam a gênese da preeminência da dominação privada e particularista na formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, desde a Colônia, passando pelo Império e invadindo a República.
Em seu magnífico livro Homens Livres na Ordem Escravocrata, Maria Silvia investiga as atas da Câmara de Guaratinguetá entre 1935 e 1939: “A base dos grupos privilegiados, no Brasil, foi a apropriação de terras. Como no resto do País, na região aqui estudada elas foram obtidas, em grande parte, por meio da violência, da fraude, dos favores. Pierre Denis tem razão ao observar que a ‘fazenda é algo de intermediário entre uma família e um reino. O fazendeiro é nela senhor, como deixaria de gozar seu poderio?’ Os interesses nasceram e tomaram vulto numa sociedade onde as instituições que representassem a coletividade de maneira impessoal e abstrata, definindo direitos e deveres genéricos, apenas começavam a se delinear. No setor da Justiça, impor o poder de uma entidade impessoal e de suas disposições abstratas fixadas nos Códigos do Direito foi mais difícil porque sua falta não era sentida”. Nesse campo prevalecia a ação pessoal. Ao grupo dominante pertencia “a franquia comum para agredir ou revidar (utilizando-se) da imunidade de sua situação privilegiada”.
Sérgio Buarque, no clássico As Raízes do Brasil, avalia as condições sociais e econômicas produtoras do “homem cordial”. A lhaneza do trato, a hospitalidade, a generosidade escondem a aversão aos princípios impessoais que devem guiar a ação do Estado moderno. É o predomínio do “funcionário patrimonial”, aquele que toma como sua e de sua família a coisa pública. Armado da máscara da cordialidade o indivíduo, engendrado pelos laços primitivos da família rural e patriarcal, exige a manutenção de sua supremacia ante o social.
As revoltas tenentistas e a Revolução de 30 deram um passo importante para o enfraquecimento do mandonismo localista, particularista e rentista. Mas os rastros do passado não são apagados facilmente. O esforço republicano, modernizador e autoritário do governo Vargas não conseguiu eliminar da vida nacional a herança oligárquica e patrimonialista nas relações sociais e na política brasileira. Não por acaso, a banda civil do golpe de 64 marchou sob a consigna dos valores que na vida contemporânea pertencem à esfera privada: Deus, a Família e a Liberdade (para os marchadores). Foram eles as vivandeiras dos quartéis que produziram uma ditadura. A tudo isso viriam agregar-se as formas “modernas” das relações entre o público e o privado: o contubérnio entre a grande empresa e o Estado, típico do capitalismo nascido da Segunda Revolução Industrial, impulsionado pela “globalização concentradora”.