Foto recolhida na internet autor : Alexandre Severo/Editora Globo

 

O Natal e o Mendigo das Ruas de São Paulo-Um Conto Feio e Patético

 

Era véspera de Natal, de um ano qualquer. A noite já ia alta. Debaixo do viaduto trêmulo de metal e fuligem, um mocó é refeito com o lixo do dia. Eu e o meu pensamento, vadios e libertos, invadimos o mocó daquele cidadão mendigo; ele, com sua habitual incredulidade solidária. Ali, gavetas sem fundo empilhadas e uma porta sem chave de um outrora guarda-roupa, fechavam imaginariamente a outra dimensão em que vivem os drogados e mendigos desta cidadesca. Ao lado do fogareiro, uma caixa de papelão ocultava um edredom surrado e encardido, uma ou duas toalhas de rosto. Numa caixa de madeira, resquícios de frutas, algumas batatas e seis pacotes de macarrão instantâneo, algumas latas tampadas; numa delas estava escrito: ”Açúcar”! Em cima da caixa um colchonete, que um dia teve estampas de flores vermelhas, agora amarronzadas. Num vão da coluna do viaduto, um rádio à pilha e um isqueiro, além de um quadro com a Santa Luzia. Ariel, o mendigo morador do mocó, originalmente registrado como João Batista, parece inseguro com minha presença. Ele não entende o quê eu poderia querer nessa visita. Na verdade eu quisera entender o porquê dele viver assim, qual o motivo que o levou a isso e, sobretudo, como ele consegue sobreviver, se alimentar e cuidar dos três cachorros vira-latas que o acompanham, dentre eles o JOW, com essa grafia mesmo; onde a intenção era a de homenagear o Jô Soares, da TV. Nesse dia uma fina chuva caía sobre a terra de Piratininga. O barulho das calhas do viaduto, que desaguavam logo além da entrada da casa improvisada, dava o tom do ambiente. Num fogareiro a álcool, o Ariel fervia meio litro d água, para passar um café para mim; já que eu havia levado um saco com dez pãezinhos franceses, uma caixa de margarina, uma caixa de chocolates Suflair e um pacote de biscoitos de polvilho azedo. O café, cujo pó –em pouca quantidade- estava acondicionado dentro de uma lata de leite Molico, dessas que tem tampa de plástico. Ele colheu duas colheradas, colocou-as no filtro de papel e a seguir, despejou a água fervente sobre o pó, o quê nos fez sentir um perfume maravilhoso. O café, recém- feito, foi servido em canecas esmaltadas. E ficou muito bom mesmo; até eu mesmo comi um dos pãezinhos que levara, com um pouco de margarina. Lembrei-me de que tinha em meu carro estacionado a certa distância, uma garrafa de vinho tinto de Garibaldi. Achei que aquela era a hora, dei uma desculpa de que voltava logo e fui buscar o vinho. Ariel ficou feliz em ver a garrafa de vinho. Ele me disse que, no passado, bebia cachaça, mas que depois de uma crise hepática, houvera desmaiado e que os outros moradores de rua o haviam levado ao Hospital das Clínicas, onde foi atendido no Pronto Socorro e que depois ficou internado por quase um mês. De repente, ocorreu-me: como iremos abrir a garrafa de vinho?                Tão logo falei a esse respeito ao Ariel, ele me disse que sabia uma forma infalível de abrir qualquer garrafa com rolha: saiu da barraca improvisada como casa e voltou com um tijolo de barro queimado. A seguir, pegou num armário improvisado uma toalha pequena, dessas chamadas “de rosto”. Fez uma rodilha com a toalha e a colocou sobre o tijolo. Em seguida pediu que eu lhe passasse a garrafa; coisa que fiz automaticamente, sem entender. Ariel então pegou firmemente a garrafa pelo meio e aplicou vários golpes com o fundo da mesma sobre a rodilha.

-Pluuuuuuuufffffttttt!!!!!!!!!!!!!!; a rolha voou longe, entre os cães famintos que lamberam a rolha, na vã esperança de que fosse algo comível. Ariel pegou duas canecas de alumínio e a colocou no chão coberto por uma toalha de mesa: ali estavam os pães, a margarina, o vinho e alguns chocolates.

Ariel rezou um Pai-Nosso; a seguir, abriu dois dos tabletes de chocolates que eu havia levado e os dividiu com os seus cães que, pelo abanar das caudas, pareceram felizes com o mimo.

                -E a ceia foi servida, com a presença invisível do Deus Menino; naturalmente!

           Antônio Carlos Affonso dos Santos – ACAS. É natural de Cravinhos-SP. É Físico, poeta e contista. Tem textos publicados em 7 livros, sendo 4 “solos e entre eles, o Pequeno Dicionário de Caipirês e o livro infantil “A Sementinha” além de três outros publicados em antologias junto a outros escritores.