Matéria de Andrei Kampff para o Esporte Espetacular.

Texto: Blog Chuteira Preta, por David Butter

Menos de uma semana depois de beijar um amigo de brincadeira, Emerson Sheik pediu desculpas pela repercussão. Diante da dupla impossibilidade de um desbeijo e de uma amnésia coletiva (inclusive em relação ao que defendeu de forma aberta), Emerson ficou com o viável: sob pressão, lamentou os efeitos, numa mensagem pública. O desdobramento é natural, humano. E Emerson segue na esquina do tema-chave da sexualidade, ainda que antes por brincadeira, ainda que agora meio de retirada (o Maior Brasileiro Vivo é fruto das circunstâncias, enfim).

O que me impressionou mesmo na reação ao episódio foi outra passagem: a santificação simbólica das torcidas organizadas como tribunais da identidade de um clube. Na imprensa e nas redes sociais, tomou-se como um dado que organizadas possam ser instâncias para se extrair “a verdade” de quem quer que seja. (Houve uma reunião de cobrança.) Essa decisão de comunicação, esse momento de rendição e irresponsabilidade, entra para o rol das “cenas lamentáveis” que a própria imprensa se apressa a lamentar.

(É sintomático. No caso de Emerson, a nota de uma organizada repercutiu mais do que a nota do jogador, a tal ponto em que a primeira passou a ser tomada pela segunda. Há uma doença circulando entre as nossas palavras.)

Mas há mais. Há sempre conveniência para não se coibir um abuso. Há sempre motivos de sobra para não se fazer nada. Há mais razões ainda para se dizer algo como “eu sei como é a real”, “vi de tudo e sei que nada muda” – o velho pragmatismo circular, destinado a perpetuar o mesmo. Clubes sabem bem disso. E daí novamente: quanto falta para um St Pauli lutar as lutas que ninguém, nem setores da imprensa, quer lutar no futebol brasileiro?

O St. Pauli é de Hamburgo. Joga a “2. Bundesliga”, a segunda divisão da Alemanha. É um clube ativista, com uma torcida que hoje se identifica como antirracista, antifascista, antissexista e anti-homofóbica.

A transformação do St. Pauli começou nos anos 1980, em resposta a dois movimentos: por um lado, em reação à investida neonazista nas arquibancadas europeias; noutra frente, em sintonia com mudanças no perfil do bairro que dá nome ao clube. E o processo de “abertura” não acabou. Em 2009, na edição de uma reunião anual para discutir os rumos do clube, o próprio St. Pauli, a instituição, acolheu uma série de diretrizes básicas, entre elas:

    1. Em sua totalidade, incluindo sócios, funcionários, torcedores e beneméritos, o St. Pauli é parte da sociedade e, dessa forma, é afetado direta e indiretamente pelas mudanças nas esferas política, cultural e social.

    2. O St. Pauli FC está consciente da responsabilidade social que isso implica, e representa os interesses de seus sócios, funcionários, torcedores e beneméritos em assuntos que não se restringem apenas à esfera do esporte.

    (…)

    5. Tolerância e respeito nas relações humanas são pilares importantes da filosofia do St. Pauli.

    (…)
    8. Todo indivíduo e todo grupo devem constantemente examinar as suas ações presentes e futuras de uma forma crítica, e devem também estar consciente da sua responsabilidade pelos outros. Adultos não devem se esquecer que são modelos, para crianças e jovens acima de tudo.

    9. Não existem ‘melhores’ ou ‘piores’ torcedores. Qualquer um pode expressar o seu jeito ou a sua maneira de torcer, desde que seu comportamento não entre em conflito com as determinações acima.

Em 2013, a diretoria do St. Pauli anunciou a decisão de deixar a bandeira do arco-íris, símbolo do movimento gay, tremulando sempre no estádio. Não é um clube gay: é um clube que não nega os gays. Não é um clube “tolerante” no sentido flácido do adjetivo: é um clube que promove a tolerância com energia.

Cruzando o exemplo do St. Pauli com alguns raios de luz no oceano de obscurantismo da última semana no Brasil, passei à certeza que, mais cedo ou mais tarde, surgirá um St. Pauli no Brasil, com outro nome, outras cores. Não por evolução (conceito meio duvidoso em temas assim), mas por pressão dos números, de parte do público. Em algum momento, a partir de alguma arquibancada do Brasil, uma mensagem semelhante à dos Piratas de Hamburgo dará o tom, para além dos guetos: “examinar as suas ações presentes e futuras de uma forma crítica”. Junte a isso a algum apelo estético ou artístico (no caso do St. Pauli, uma roupagem rock n’ roll), e pronto: há um produto.

(Até a segunda década do século XX, a presença negra no futebol brasileiro era descartada por quem dizia “mandar a real”, em nome do “amadorismo”. Até surgir um certo Vasco da Gama para bagunçar tudo. Há um caminho – até para fazer dinheiro.)