Tradicionalmente, a independência do Banco Central foi concebida para proteger a política monetária das pressões políticas indevidas. Agora, no entanto, devemos conceber essa autonomia em termos mais amplos. O primeiro conjunto de forças nasce dos mercados financeiros e dos segmentos altamente endividados do setor privado. É possível pensar numa ameaça da “dominância financeira”, amplamente definida. (Jaime Caruana, Diretor Geral do BIS, 14 de outubro de 2013).

A divergência de opinião em torno da independência dos Bancos Centrais e das regras adequadas de gestão monetária refletem a dupla e contraditória natureza do dinheiro nas economias capitalistas. O dinheiro é simultaneamente um bem público e objeto de enriquecimento privado. Enquanto “bem público”, referência para os atos de produção e intercâmbio de mercadorias, bem como para a avaliação da riqueza e das dívidas, o dinheiro deve estar sujeito a normas de emissão e circulação que garantam a reafirmação de sua universalidade como padrão de preços, meio de pagamento e reserva de valor.

Numa economia monetária, o enriquecimento privado só pode ser buscado mediante a produção de mercadorias ou a posse de ativos que dão direito a rendimentos futuros. Trata-se uma aposta, em condições de incerteza, na possibilidade dessas formas “particulares” de riqueza preservarem o valor no momento de sua conversão para a forma “geral”, o dinheiro.

A ordem monetária capitalista não é um espaço homogêneo, mas um organismo em perpétuo conflito

Há, por isso, o temor de que, chegando à transfiguração de sua riqueza particular em riqueza geral, o proprietário de ativos ou de mercadorias receba um dinheiro cujo “prêmio de liquidez” está, ele mesmo, “desvalorizado” por práticas “permissivas” de monetização das dívidas. A política monetária e os bancos centrais estão, portanto, submetidos a tensões permanentes. Os credores, proprietários-administradores da riqueza líquida costumam exigir mais “austeridade” e os devedores e investidores que se lançam às aventuras da iliquidez e da criação de riqueza nova postulam mais generosidade por parte das políticas monetárias.

A ordem monetária capitalista não é um espaço homogêneo onde os desejos dos indivíduos utilitaristas se harmonizam, senão um organismo em perpétuo conflito e transformação. O ambiente institucional em que se desenvolve a gestão monetária é constituído pelo Banco Central e pelo sistema privado de crédito. Em sua interação, esses “atores” estão obrigados a evitar a deflagração de situações de pânico, desconfiança e desalento da atividade criadora, sempre reafirmando a vigência das normas que garantem a estabilidade monetária, ou seja, a confiança no ativo que encarna a riqueza universal.

A divisão do trabalho, a diferenciação de funções, a individuação de comportamentos e valores são a marca registrada da sociabilidade moderna. Seu desenvolvimento impõe, portanto, a intensificação da dependência recíproca e a ampliação das relações monetárias e salariais.

O social se desenvolve de forma ambígua e contraditória: aparece, diante dos indivíduos, como um espaço infinito da escolha, da produção incessante de desejos e das possibilidades de sua satisfação, mas também opera nos bastidores da alma como uma força autônoma e constrangedora, um sistema de necessidades que só pode ser satisfeito pelo sucesso das múltiplas conexões monetárias. O sucesso do turbilhão de apostas privadas depende do processamento pelo mercado das ações intencionais dos possuidores de riqueza, cujo resultado, no entanto, escapa às intenções e ao controle dos centros privados de decisão.

Nas últimas duas décadas, a liberalização, desregulamentação e internacionalização dos mercados financeiros provocaram importantes transformações na estrutura da riqueza capitalista e – mais importante – nas relações de poder entre os proprietários da riqueza mobiliária e os Bancos Centrais.

Os administradores privados da massa de riqueza mobiliária não só ganharam poderes quase incontrastados na definição das formas de utilização da riqueza coletiva e do crédito, como tambem assumiram o papel de juízes de um tribunal de derradeira instância, com pretensões a julgar a qualidade das políticas econômicas nacionais.

Na era de sua supremacia global, os mercados cuidaram de difundir as “ilusões necessárias” do jogo estratégico entre os atores privados e o Banco Central na busca incessante da “construção da confiança”. Sob a aparência da ciência e da técnica, o “jogo da confiança” supõe a definição de regras de gestão da “riqueza coletivizada” e da moeda de crédito. Na era da Grande Moderação que antecedeu o desastre de 2008, inebriados pelo excesso de confiança, os mercados de riqueza mergulharam nos abismos da incerteza. Foram resgatados pelos Bancos Centrais.

À revelia dos critérios da política democrática, o salvamento cumpriu exclusivamente a agenda dos protagonistas que cuidam da circulação e da avaliação da riqueza mobiliária global. O discurso econômico em voga pretende mascarar sua natureza política. Tenta explicar ao cidadão que é inteiramente fora de propósito entender os segredos que envolvem a administração da moeda e das finanças. O consenso dominante garante que se não for assim sua vida pode piorar ainda mais. A formação deste consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o imaginário social.

Não é, portanto, pacífica a convivência entre o mundo da finança – constituído pelas instituições, regras e procedimentos relacionados com a avaliação da riqueza – e a política democrática, entendida como o âmbito por excelência da escolha humana, da busca da autonomia.

Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists.

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