Desde que o mundo é mundo, prever o futuro tem sido um desafio constante. Da cigana que lê a mão aos videntes e futurólogos de todos os matizes, ainda não se conheceu ninguém que fosse capaz de predizê-lo regularmente e com precisão. Seria demasia, portanto, esperar que os “analistas” políticos que proliferam na mídia formassem um gênero diferenciado e mais eficaz de pitonisas. Eles sempre erram, e isso qualquer observador do mundo político que se preze sabe.

Mas, convenhamos, suas bolas de cristal talvez poucas vezes estiveram tão turvas quanto agora. Em sua esmagadora maioria, as previsões feitas para o comportamento das pesquisas eleitorais mostraram-se disparatadas e são desmentidas dia-a-dia pela realidade — como foi o caso da mais recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatísticas (Ibope) mostrando a presidenta Dilma Rousseff muito bem avaliada.

A verdade é que a direita ainda testa as possibilidades de motes para entrar na campanha eleitoral de 2014, uma prática que ainda está viva na memória daqueles que presenciaram as diversas manobras torpes para tentar impedir que Luis Inácio Lula da Silva galgasse a rampa do Palácio do Planalto pela segunda vez, em 2006, ostentando a faixa de presidente da República. A tática inicial de “sangrar” o presidente naufragou, mas mantiveram o impeachment sempre à vista — como uma bomba atômica para assolar e não para matar, segundo o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) — e regularam o fogo do denuncismo de acordo com suas conveniências.

No entanto, praticamente nada mudou. “Há impeachment quando há uma comoção popular que faça o cidadão pressionar o seu parlamentar para votar. Isso não se configurou”, afirmou o senador José Agripino (RN), então líder do PFL (atual DEM)  no Senado. A senadora Heloísa Helena (AL), que seria a candidata presidencial do PSOL à Presidência da República, disse que existiam “motivos legais” para abrir processo por crime de responsabilidade contra Lula mas, segundo ela, faltavam as “condições políticas”.

Fato decisivo

O então presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini, resumiu bem o motivo pelo qual a oposição não arriscava suas fichas no impeachment: “Medo das urnas; esse é o principal motivo.” A direita sabia que a contenda refletia, no fundo, a luta entre a ética e a picaretagem, o debate político e a falácia. O script estava elaborado há muito tempo e quem acompanhava o mundo político, mesmo que à distância, via diuturnamente que naquele espetáculo circense os atores tinham papéis bem definidos.

Os líderes da oposição nem precisavam aparecer na peça — os ataques eram feitos por prelados da mídia, economistas de direita e adivinhos profissionais que vendem seus serviços como “analistas”. O objetivo — ou o mais adequado seria dizer desejo? — era ver o governo imobilizado. As votações parlamentares, por exemplo, ficaram praticamente paralisadas. Mas a luta política — reflexo da luta de classes — é incessante e a campanha eleitoral mostrou um saldo amplamente positivo do debate político.

Há, no entanto, um fato decisivo a se considerar: em uma campanha eleitoral, as torpezas são moeda corrente. As primeiras manchetes do que viria a ser a sórdida onda de ataques ao governo Lula, por exemplo, representou uma espécie de ordem unida para o avanço da direita. Ou seja: soou a voz do dono. Desde então, o que se viu foi a repetição da sordidez outrora usada contra Getúlio Vargas — que o levou ao suicídio. Como naqueles idos, nunca se vira tanta ignomínia, tamanha crueldade no aviltamento, tão grande sanha para ferir um homem a quem seus acusadores, sem autoridade para sê-lo, só podiam imputar o “crime” de pretender encurtar as distâncias sociais existentes em nosso país. Desde a sanha contra Vargas, nunca se viu tanto ódio, tanta torpeza, tantos insultos contra um presidente da República.

Argumento central

A mídia cometeu todos os desmandos, ultrapassou todos os limites, rompeu todas as convenções. Nada ficou de pé. E a cada um dos desatinos parecia que a única preocupação era superar os anteriores. Seus “analistas” tinham o único objetivo de criar um coro alucinado na toada fria e implacável das invectivas. O objetivo confesso era fazer Lula parecer uma criança órfã, desamparada de pai e mãe. Para tanto, se aproveitaram de suas próprias criações, a corrupção eleitoral, para vender a ideia de que o país precisava de um salvador da pátria.

O objetivo confesso era desmontar o argumento central do governo: a articulação política que possibilitava levar adiante o projeto de reconstrução do tecido social brasileiro, esgarçado por anos e anos de mandos e desmandos de uma elite que, por sua formação histórica, nada tem a ver com o povo. Simplesmente não interessava, para ela, que os processos no Brasil funcionassem melhor. Se o sistema de transporte público fosse eficiente, o significado de ter um carro de luxo mudaria no país. Se os serviços de saúde funcionassem, o fato de haver hospitais cinco estrelas seria irrelevante.

Essa gente passou a vida, de geração em geração, trocando favores, construindo atalhos, traficando influência. Se todos os cidadãos tivessem assegurados os mesmos direitos, por meio de sistemas sólidos e funcionais, toda essa rede de relações obscuras, essa indústria da maracutaia, perderia o sentido. Por que essa gente toparia, na boa, a mudança de paradigma? Essa lógica apareceu de forma cristalina nas Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs), o berçário do que viria a ser a farsa do “mensalão”, que representaram o encontro entre o estardalhaço e a inutilidade.

Lula foi à forra

Quando a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Compra de Votos, conhecida como CPI do Mensalão, terminou seus trabalhos sem mostrar o suposto esquema de pagamento de mesada a deputados em troca de apoio ao governo, a sensação que ficou foi a de um balde de água fria sendo despejado no foguetório da crise política. O resultado foi mais um estrondoso fracasso, que a mídia faz questão de ignorar. A razão foi que aquela CPI, assim como a 171 — a dos Correios, que obteve o sugestivo número 171 de assinaturas para a sua prorrogação —, não era para valer.

Foram deixados convenientemente de fora os vários casos que eclodiram no governo FHC, que chegou ao ponto de usar dinheiro público para salvar o banco da família de sua nora. Em muitas faixas da sociedade, as pessoas perceberam que as acusações eram uma forma cotidiana de desrespeito. “A crise, sobretudo como ela é apresentada, não existe! Ela foi criada num momento que alguns julgaram interessante inventá-la. Um produto midiático”, disse a filósofa Marilena Chauí, em entrevista à revista Caros Amigos. “Por trás da crise está a luta de classes”, constatou ela. Segundo a filósofa, para entender o que estava se passando era preciso desmanchar o emaranhado.

Em entrevista à TV Cultura, de São Paulo, Lula foi à forra e desmontou o emaranhando, mostrando detalhe por detalhe como a farsa fora tramada. Desnorteada, a direita partiu para a ignorância, abusando das má-criações. FHC disse que Lula deveria ter mais “modéstia”. (Era para rir, senhor ex-presidente?) O então prefeito paulistano, o tucano José Serra, com sua habitual finesse, engrossou o coro: “Daqui a pouco ele vai dizer que descobriu o Brasil”. Os colunistas boca-sujas da mídia agiram como moleques de recados, disparando torpezas para todos os lados. 

Prucradores de “escândalos”

Todo esse enredo repete-se agora. O que vai ficando evidente é que os ataques inescrupulosos são o tipo da coisa que tem tudo para dar em nada nessa pescaria em que procuradores de “escândalos” vêm jogando muito anzol e pegando pouco peixe. É possível até que alguém monte mais algum processo para atingir Lula e Dilma. E que em nome da “liberdade de imprensa” os violadores da liberdade de imprensa se juntem a fim de ”vazar” para o público ”mais detalhes” sobre as falsidades e mentiras. Em se tratando dessa gente, tudo é possível — menos a verdade.

A direita certamente mobilizará mundos e fundos — principalmente fundos — para impedir que a presidenta Dilma seja reeleita. Oportunistas de diferentes matizes e chacais enraivecidos serão acionados para este fim. A experiência mostra que nessa selva nunca se sabe onde está o inocente útil e o vilão oportunista. Será um jogo pesado, que exigirá muita estabilidade emocional. Dá para imaginar como o campo conservador reagirá diante da realidade hostil ao seu projeto de governo daqui para frente. Vamos enfrentar um incêndio por dia. Eles ignorarão o povo, com o qual não consegue dialogar, e o próprio bom senso para impor o seu coquetel reacionário. A tática é deixar o eleitor sem entender patavina — como tem sido a prática desde que o “homem bomba” Roberto Jefferson cunhou para a mídia o neologismo “mensalão”.

O certo é que as cortinas começaram a descer. A peça ainda não definiu o gênero teatral ao qual pertence. Tem tudo para ser o realismo. Mas pode ser uma comédia, uma farsa ou uma tragédia. Nas comédias, como se sabe, o protagonista atua como o néscio de quem todos riem. Nas farsas, o protagonista é enganado. E nas tragédias o protagonista caminha consciente e célere em direção à própria ruína. A questão é que o protagonista não estará no palco; ele estará na plateia — é o público eleitor. Esse é o elemento que a direita tentará manipular.

Diz-que-diz jurídico

Isso explica porque o “mensalão” é uma espécie de X-tudo. São enfiados ali, à medida que vão sendo encontrados, os ingredientes mais diversos e disparatados entre si — qualquer coisa serve, desde que faça volume. Entram “denúncias” requentadas, “denúncias” que estão paradas há tempos e “denúncias” que talvez um parlamentar oportunista faça algum dia. O problema é que nada disso abala a credibilidade do governo entre o povo.

Na verdade, o diz-que-diz jurídico oculta uma questão política. A maior parte dos que avalizam essa ação transformou o episódio em mais uma batalha da guerra movida contra o governo. Mais que qualquer opinião jurídica ou falácias, é o resultado das pesquisas eleitorais que está em jogo. A direita não está envolvida em uma batalha contra a corrupção, contra os desmandos de um governo autoritário ou em favor das liberdades públicas. Apenas luta contra um programa de governo. Visto de outro ângulo, pode-se dizer que uma pequena parcela da sociedade mostra-se incapaz de respeitar regras estabelecidas democraticamente.

Sentido das mudanças

O comportamento típico da Idade Média da mídia não é, absolutamente, irrelevante, porque inclui a mentira e não deve ser subestimado. Trata-se de um noticiário — melhor seria dizer bagunçário — que cumpre papel bem definido no jogo político que se estabeleceu no país. Ele serve aos velhos coronéis, muitos deles modernos, que usam os meios de comunicação como arma principal na luta política. Foram esses coronéis eletrônicos que transformaram a farsa do “mensalão” em uma batalha da guerra que movem contra o governo.

O leitor já deve ter sentido a quantas ramificações seríamos levados se pudéssemos conversar mais extensamente sobre esse assunto. O essencial é compreender o sentido das mudanças operadas no Brasil — o que desagrada aos conservadores, legatários do país predominantemente rural que estava fadado a conviver com os grotões políticos, sob o domo de coronéis sucessores dos poderosos senhores de engenho ou do café, que controlavam tudo, do crédito na venda aos votos colocados na urna.