Logo Grabois Logo Grabois

Leia a última edição Logo Grabois

Inscreva-se para receber nossa Newsletter

    Comunicação

    Pelas águas clementes e inclementes navegar

      Pelas águas clementes e inclementes navegar e navegar o chão, a fêmea, a cajazeira com vento leste sair fora da barra debaixo da capitânia de Martim Afonso com Pero Lopes de Souza e de seus bagos venho antes da era de Úrsula, Alexandre, José e outras matriarcas e outros patriarcas e aí começa o […]

    POR: Redação

    8 min de leitura

     

    Pelas águas clementes e inclementes navegar

    e navegar o chão, a fêmea, a cajazeira

    com vento leste sair fora da barra

    debaixo da capitânia de Martim Afonso

    com Pero Lopes de Souza e de seus bagos venho

    antes da era de Úrsula, Alexandre, José e outras

    matriarcas e outros patriarcas e aí

    começa o labirinto de Gerardo — na era

    de Dom Manuel, o Venturoso, pois

    por ventura aventura e desventura

    ia de capitão de hua armada o governador

    da terra do Brasil.

     

     

    E de que me terei esquecido?  Não, por certo,

    daquele medo, não daquela dor notuma e as

    vacas mugindo

    no terror à solidão

    de teus pastos e teus céus.

     

     

    Ficaram num cinzeiro os olhos azuis de Catarina

    no cinzeiro de um bar — e de tantas

    tantas outras coisas me lembro dia e noite

    aquela noite o canto das prostitutas encarceradas

    — e o coração,

    Demóstenes Gonzalez, o teu, hecho pedazos

     

     

    e o pedaço de lua aquela noite

    no chão do calabouço — e às vezes

    Pedro Mota — a morte de Pedro Mota

    fulminado quando

    cantava sob o chuveiro uma ópera italiana

    e a corneta comprada no Ipu e a cartola de meu

    pai, a garrucha de bronze de meu avô

    e o céu

    aberto, mas de súbito

    e entra Pedro Mota e sorri

    com a cartola de meu pai na delicada mão

    e entra Edgar com uma bala no fígado

    os santos inocentes acolhidos acenam

    e saúdam a gentileza da morte

    ao hino de Araci naquela tarde:

    não, não me diga adeus.

     

     

    E de que me terei esquecido?  Não, por certo

    do tempo em que reinou a calmaria podre

    e sem ventar bafo de vento

    era mais grosso o mar e ao mar

    lancei o prumo e perguntei o fundo

    e tomei o fundo com cinqüenta e cinco braças

    Tenerife!  Tenerife!

    tomamos as monetas e mais que o dia

    já podia a noite

    e pairamos a noite toda até o quarto d’alva

    demorava-me o Cabo das Tormentas a leste e

    depois

    barlaventeamos outra noite sem poder cobrar nada

    por não poder fazer caminho

    e não me esqueço, por certo,

    do quintal do Encantado, ribeira e casa

    de Araci de Almeida onde o canto dos galos

    alongou tua morte

    no alanceado coração — e como esqueceria

    teus seios olorosos — e da cova deles

    bem que rescendiam

    e do cravo e da morte os suspeitos aromas:

    e ainda cantarei de ti (agora tenho apenas o grande

    mar por ló dessa lembrança)

    nem mais vela que traquete e mezena

    e muito trabalho na capitânia

    porque não governava e não governa.

    E amainamos a vela e fomos

    correndo ao som do mar — até que foi de dia.

     

     

    E de que me terei esquecido?  Não, por certo,

    de um cavalo soluçando às estrelas do céu e às

    éguas do terreiro

    a dor aguda do grande pênis negro

    e os cascos do alazão na ladeira da serra

    de São Gonçalo dos Mourões

    e o bandoneon de Gesu Melo — ou de Josa? —

    e a camisa escocesa e a cartucheira e o punhal

    e os luminosos olhos

    de José Mourão retinindo esporas de prata

    na estação de Cratéus — ali a casa de Solon Faria

    e a arte de calcular por meio de algarismos

    e em sua mão de sábio da comarca ardia um giz

    e tantos anos depois, Solon Faria Fllho doutrinava

    sobre

    a arte de f azer mel por meio das palavras e as

    abelhas

    rodeavam seus olhos.  E de que me terei esquecido?

    Não,

    por certo, de uma gravata azul

    de Aretusa dançando e os seios

    de Carmen começando ao olor dos jasmineiros

    Maria entre cajus vermelhos e amarelos

    D. José Tupinambá da Frota, bispo-conde de Sobral

    regendo o sólio e o maestro com sua clarinete

    regendo

    os tornozelos de Aretusa

    e um bonde

    varando a madrugada na Tijuca

    e tantas outras coisas — e contemplei tremendo

    a arte de fazer amor por meio de mágica – o polaco Tadeu

    chupando ajoelhado aos pés do marinheiro crioulo

    e um carneiro pastando a flor do bogari no quintal

    do vigário

    e o coldre viril do Colt no cinturão de meu tio e a

    elegância

    da taça de cristal na poderosa mão de meu avô

    e tantas outras coisas — já não sei

    se coisas ou lembranças:

    possuídas um dia possuíram

    o pulso do poeta

    inventado e inventor

    da memória inventora — e quem soubera

    ao andar de Piehin vir de seu corpo

    a graça a seu vestido — ou dele

    florescer a beleza ao quadril

    naquela adolescência?

     

     

    Não te enxugue em espádua e anca e coxa

    a água de beleza em que estes olhos

    lavaram tua pele:

    vem formosa mulher, camélia pálida,

    já do salgado mar a espuma viva

    prateia-me a pupila:

    é preciso partir e na mão grossa

    a enxárcia a vela a cordoalha pedem

    um jeito de monção — e à chibata

    dos ventos na garupa o barco pede

    uma estrela no céu para o caminho à noite:

    tu com teus olhos, Vega da Lyra, gema da Coroa

    Boreal, estrelas verdes

    e de Andrômeda e da Cassiopéia.

     

     

    Luís de Gonzaga não conhecia o rosto

    de Branca de Castela, sua mãe:

    nunca fitara um rosto de mulher — os olhos —

    ensinava ó Mestre asceta — são

    janela da alma e por ali

    entram as tentações — e pelos meus

    entraram todas:

     

     

    pungido por olhares fui crescendo:

    o melancólico olhar do bisavô em seu retrato

    pintado pelo pincel municipal de Raul

    Catunda

    e a morte na pupila do primo agonizante

    e os olhos tristes — o quem te memorem —

    desse conde alemão no Castelo de Kronberg, em

    Frankfurt

    e os teus boiando

    constelados de verde à sombra de ouro

    da Coroa Boreal de teus cabelos

    dorida Berenice

    hão de levar os meus por noite e mar.  E de que

    me terei esquecido?  Não,

    por certo, do arrepio

    na penugem de teu braço quando

    atrás de tua orelha era um perfume

    farejado; e é preciso desfrutar

    a luz, e aos olhos não negar nada na vida e

    não perder

    cova de seio, pedra de rua, axila e nuca tonsurada

    e andorinhas ao céu

    de agosto foragidas e dormir

    sobre o catálogo palpitante.  E de que

    me terei esquecido?  Não,

    por certo, do arrepio

    de Claude e Sylvianne e as outras cimitarras

    fulgurantes:

    aos fascinados olhos transpassavam

    de um golpe o coração e tudo

    era roteiro — os cegos tocando viola

    na feira de Várzea Formosa

    os soldados de mosquetão na estrada de Alagoas

    e Arlette

    ruiva e nua em seu bordel e nas noites de maio

    a grinalda da Virgem e os anjos de novena e longa

    túnica

    e tudo era roteiro e de que banda

    do mundo é o sítio do desejo, Capitão?

    Soubesse dele e o não cantara

    na sanfona saudosa o marinheiro Lorenz

    e em sua voz marulhada o dalmata do cargueiro

    grego

    naquele outubro.

     

     

    E à quarta do nordeste e à quarta daloeste

    pode haver outra vista de terra e por isso

    aprendi a pairar a noite toda até o quarto d’alva

    e também Dalva pairava

    as monetas ao léu e o seio em boia e então

    barlaventeávamos até o caroço da noite:

    no coração marsupial todas as horas

    eram nutridas

    e volta-se a ampulheta e voltam sempre

    os grãos de areia e os grãos

    desses nomes de coisas e lugares e pessoas

    plantados nas entranhas:

    a um tiro da abombarda estão sempre suas ilhas

    ao alimpar-se a névoa —

    oblivionem oblitus me esqueci de esquecer-me

    e aos meus mortos

    em vão imolo os bodes vigorosos

    e os cantos fúnebres:

    do ninho de seus túmulos levantam-se

    e ao redor do atônito poeta

    cantam a letra

    dos próprios epitáfios:

    nos alqueires do Inferno ninguém morre e

    ninguém morre

    na bem-mal-assombrada casa

    deste coração.  Pois, de que

    me terei esquecido?

     

     

     

    Gerardo Mello Mourão – Os Peãs 

    Notícias Relacionadas