O amálgama da alma de Jorge Mautner
Contar sua trajetória é atravessar momentos chave da história e da arte brasileira do século XX. Conhecer a biografia de Mautner é entender um pouco da alma brasileira.
Uma história que tem suas origens no holocausto nazista durante a Segunda Guerra Mundial. A família que precisou fugir de seu país com uma mãe, Anna Illich, grávida de oito messes correndo os perigos de uma longa viagem a um país desconhecido. Deixaram a filha Susana, que não conseguiu acompanhar os pais ao Brasil, fato que deixou sua mãe fisicamente paralisada. Por isso, Jorge foi cuidado e educado durante seus primeiros sete nos de vida por uma babá. Lúcia que era filha de santo.
Durante seus sete primeiros anos, ia três vezes por semana lá para o terreiro, ao lado da igreja da Glória. Muitas vezes adormecia e acordava na camarinha. Um dia, Lúcia o carregava em seu colo e falou: meu filho, seus pais vieram de um lugar de gente muito má, cruel, mas aqui você vai encontrar seus amigos… E ele adormecia e acordava no colo dela, ouvindo o som dos atabaques…
Em 1948, seus pais se separam e Anna casa-se com o violinista Henri Müller e se muda para São Paulo, levando o menino consigo. Henri era o primeiro violinista da Orquestra sinfônica de São Paulo, e foi com ele que Jorge aprendeu a tocar violino clássico. Seu padrasto também fazia participações em programas da Rádio Nacional e diversas vezes o menino o acompanhou, sendo que nesta época começou a conviver com grandes artistas da música brasileira, como Aracy de Almeida, Nelson Gonçalves, Jorge Veiga, Tonico e Tinoco, Elizeth Cardoso, Inezita Barroso, Marlene, Emilinha Borba e muitos outros.
A partir de 1950 ele vai estudar no Colégio Dante Alighieri, que abandonou no terceiro colegial porque era muito conservador para ele, que foi educado desde muito cedo lendo Goethe. Hoje, esta escola de classe média de São Paulo tem uma sala dedicada a ele. Em 1956, Mautner começou a escrever seu primeiro livro Deus da Chuva e da Morte, que foi publicado pela Editora Martins Fontes em 1962, ano em que recebeu o Prêmio Jabuti por esta obra.
A partir daí foi descoberto por Vicente Ferreira da Silva “sobre o qual Oswald d Andrade dizia que era o maior pensador do Brasil”. Ela já havia se aproximado do físico brasileiro Mário Schenberg e começa a publicar na revista Diálogo, que unia intelectuais do tipo de Vicente e Dora Ferreira da Silva, Miguel Reale, Guilherme de Almeida, Paulo Bonfim, Câmara Cascudo e outros. Daí ele teve a ideia de criar um partido, que intitulou de Partido do Kaos. E explica:
“É toda uma mitologia que se entrelaça. O Kaos era uma exaltação total da fundação de Brasília, das ideias de Leonel Brizola, Juscelino Kubistchek, do Grupo dos Onze, assim como na Revolução Cubana. Chegaram a ter três mil adeptos. A gente se reunia numa garagem na Praça Buenos Aires, no bairro de Higienópolis eu, o Aguilar e o Mário Schenberg.
1962, foi dissolvido o Partido do Kaos. Nós já éramos militantes do Partido Comunista do Brasil. Mário Schenberg já era um grande cientista, havia trabalhado ao lado de Albert Einstein e poderia ter continuado sua pesquisa científica ao lado dele. Em vez disso, na década de 1940, preferiu ser deputado pelo partido comunista e ficar no Brasil lutando ao lado de seus companheiros. Foi Schenberg quem iniciou Jorge Mautner nos ideais marxistas e levou-o ao Partido.
Mautner relata da riqueza cultural e do debate político daquele período de 1962, quando ele lançou seu livro Deus da chuva e da morte, no João Sebastião Bar, um dos pontos de encontro dele com Schenberg, José Roberto Aguilar, Dulce Maia, irmã do Carlito Maia. O bar na vila Buarque juntava a intelectualidade paulistana, e muitos músicos, como Chico Buarque de Holanda, fizeram lá as suas primeiras apresentações. Até Luiz Carlos Prestes ia ao bar, segundo Mautner.
Nessa época, artista militante, Jorge Mautner já compunha suas músicas também para transmitir as mesmas ideias que ele defendia na literatura. Em 1958 já havia composta a música ‘A Bandeira do meu Partido’. Também em 1962 escrevia diariamente para uma coluna intitulada “bilhetes do Kaos” no suplemente cultural do jornal Última Hora (de Samuel Weiner), dirigido por Jorge Cunhas Lima. Essa coluna se manteve até o dia 1º. de abril de 1964.
Após o golpe militar, Jorge Mautner foi preso e enviado para Barretos, com a desculpa de que era para “protegê-lo” de grupos paramilitares, como o Comando de Caça aos Comunistas, o CCC. Foi solto sob a condição de se expressar mais “cuidadosamente” em suas futuras obras, orientação a que ele, é claro, não obedeceu.
Em 1965 publicou dois livros, um deles – o vigarista Jorge – com prefácio de Mário Schenberg, foi logo apreendido pelo Dops, que considerava aqueles textos uma provocação e um chamado á resistência contra os militares golpistas. O outro livro, Narciso em Tarde Cinza, encerra a trilogia do Kaos. Jorge Mautner também lançou neste mesmo ano um disco compacto com as músicas de protesto Radioatividade e Não, Não, Não. Esse disco foi incurso na famigerada Lei de Segurança Nacional, em 1966.
Jorge foi embora do Brasil para os Estados Unidos, onde trabalhou de lavador de pratos, ajudante de garçom e datilógrafo na Unesco. Também fazia bicos, traduzindo livros brasileiros para o inglês e dava palestras sobre estes livros para a Sociedade Interamericana de Literatura, num casarão que havia sido a sede da Embaixada Soviética, na Park Avenue. Em 1967, foi participar de um simpósio em Caracas, Venezuela, e conheceu o escritor norte-americano Robert Lower, com quem passei a trabalhar como secretário literário. Lower tinha sido secretário literário de Ezra Pound. Ele lia muito Euclides da Cunha, adorava Os Sertões, queria conhecer os mistérios do Brasil. Também em Caracas, conheceu o filósofo anarquista Paul Goodman, o grande filósofo dos primeiros movimentos pacifistas hippies, que também tinha grande admiração pelo Brasil e lhe deu as primeiras lições de ecologia. Nesse período nos EUA Jorge Mautner compôs duas músicas em parceria coma compositora e pianista de Jazz Carla Blay.
Conheceu sua companheira Ruth Mendes em 1968, numa vinda ao Brasil para reativar seu visto nos EUA. Com ela, ele tem uma filha, Amora Mautner. Mautner cotna que eles recebiam muitas visitas nos vários lugares em que moraram em Nova York. Visitas de brasileiros, como Roberto Schwartz, que estava exilado na França e trazia notícias do Partido Comunista. Depo0is Mautner se mudou para Londres, onde conheceu Gilberto Gil e Caetano Veloso, que já estavam exilados lá.
Voltou ao Brasil em 1972, a pedido de Violeta Arraes, também exilada em Londres e que achava que era hora de voltar e ajudar na resistência à Ditadura Militar e na luta pela redemocratização do Brasil. Após chegar, se juntou aos músicos brasileiros que faziam shows pelo Brasil adentro, juntando milhares de pessoas. Jorge Mautner afirma que essa participação ativa dos músicos ajudou o Brasil a se redemocratizar.
O assassinato de Vladimir Herzog é lembrado por Mautner como um momento fundamental da resistência à ditadura, gerando a comoção mesmo entre apoiadores do regime que eram contra a tortura. Gilberto Gil canta “No, woman, no cry”, sobre os amigos que desapareciam, mostrando, na opinião de Mautner, como a música e seus artistas foram importantes para catalisar um sentimento de resistência e traduzir em emoção aquele período. Uma visão da importância da arte e da cultura que Mautner não apenas considera em relação àquele período, mas desde sempre, com os poetas românticos brasileiros, ou a música dos escravos que vai se tornar a base do caldeirão cultural brasileiro.
O tropicalismo, que é tão bem encarnado nas figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve em Jorge Mautner uma de suas grandes inspirações. As ideias expostas por ele no Partido do Kaos foram reconhecidas pelo próprio Caetano como antecessoras do Tropicalismo.
Jorge Mautner gosta de referir-se a si mesmo como fruto de três culturas distintas: o pai Paul, judeu e ateu, a mãe eslava e católica e a babá negra e filha de santo do candomblé. Para ele, o Brasil tem essa originalidade sincrética cultural que o torna inspirador para o resto do mundo. A mestiçagem brasileira e sua consequente generosidade com o estrangeiro é sua maior riqueza. Com sua vasta experiência intelectual por várias partes do mundo, Mautner é capaz de fazer digressões sobre a originalidade do brasileiro por horas. Melhor que isso, é capaz de traduzir essa brasilidade tropicalista de forma brilhante em suas músicas, resgatando ritmos folclóricos ou o pop romântico da indústria cultural, sempre de uma forma própria e peculiar, sempre acompanhado do fundamental parceiro Nelson Jacobina.
No início dos anos 1990, Mautner e Nelson Jacobina foram convidados a participar de um show do PCdoB em homenagem aos torturados e mortos da Guerrilha do Araguaia, quando tocaram a Internacional e A Bandeira do Meu Partido, repetindo várias vezes sua composição a pedido do presidente do Partido, João Amazonas. Uma catarse emocional que marcou a todos pelo modo como Mautner enxerga sua arte: um modo de expressar a história de forma emocional e transformar a cultura.
Adaptado por Cezar Xavier de entrevista de Mazé Leite com Jorge Mautner, ocorrida no início de 2013, por ocasião do lançamento do documentário “Jorge Mautner – o filho do holocausto”. A entrevista foi publicada na edição 124 de abril e maio de 2013 da revista Princípios.