Valorização do sujeito e da subjetividade

O programa de superação do dualismo kantiano e sua “coisa em si” – referidos na parte anterior desta série – tinha como objetivo ideológico precípuo possibilitar maior abertura ao pensamento e à atividade consciente. Para tanto era necessário golpear a cisão absoluta entre sujeito e objeto, matéria e ideia, homem e natureza. A insistência em tais divisões, por um lado, tornava o ser humano um mero autômato de determinações subjetivas transcendentais a priori; por outro, fazia da natureza um rígido sistema mecanicista, composto de movimentos determinados desde sempre.

Na contramão dessa tendência, o programa romântico destaca a liberdade, a criatividade, a imaginação; põe em relevo a existência de caminhos contraditórios e, portanto, a necessidade de opções, escolhas, alternativas. As propriedades “preditivas” encarnadas na ciência positiva deixam de ser concebidas, nessa perspectiva, como algo mais nobre que a natureza plástica da imaginação humana. Por isso, como assegura BOSI, “o fulcro da visão romântica do mundo é o sujeito” (1992, p. 102).

Ocorre que, com o passar do tempo, a Revolução Francesa mudara de rumos e já revelava a traição de suas promessas originais. A República que tantas esperanças havia dado à Europa tornara-se um Império voltado apenas à conquista em proveito dos interesses franceses. No plano cultural, essa realidade traía-se pela progressiva esterilização do Iluminismo. Uma estranha modalidade daquilo que hoje denominamos “pensamento único” instalava-se com a elevação do Esclarecimento francês à categoria de “razão oficial”. A rica Filosofia das Luzes dava lugar ao despotismo iluminista do Império Napoleônico.

É nesse contexto que um pensador como FICHTE (1973) irá conceber a existência de duas visões de mundo possíveis: o “idealismo” e o “dogmatismo”. A primeira, ao contrário da segunda, via o mundo como subordinado à vontade moral e adaptável a seus fins, acentuando, dessa maneira, a realidade da liberdade humana. A segunda visão concebia o ser como mero apêndice da natureza, para sempre governado por forças além de seu controle — uma visão sedutora para aqueles que veem a si próprios como desamparados, como objetos passivos em vez de como sujeitos autodeterminados.

Para Fichte há perversidade, covardia ou simples preguiça no ato de defender tal visão “dogmática”: ela leva a abdicar da responsabilidade sobre os assuntos próprios do ser humano e conduz à visão de que o status quo é inalterável. Já a convicção na liberdade transcendental humana conduz a indivíduos autônomos, aptos a lutar também por sua liberdade política. “Para Fichte”, afirma MOORE, “apenas uma filosofia que começasse do Eu espontaneamente autocolocado como a base de toda experiência possível poderia intitular-se a si própria o ‘primeiro sistema da liberdade’” (in FICHTE, 2008, p. xvii).

O “idealismo absoluto” proposto pelos filósofos alemães afirma o caráter ativo do sujeito e sua ligação inextricável com a natureza. Traduzidas para o plano literário, essas ideias vincariam o movimento romântico com de seus mais inconfundíveis atributos:

“A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade, decorativa. Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, a imaginação […] O mundo natural encarna as pressões anímicas.” (BOSI, 1992, p. 102)

A afirmação romântica do sujeito pode ser conferida não apenas nos motivos e na inspiração, mas também na própria técnica de construção poética. Como ocorre na maioria dos românticos, e ao contrário da poesia de inspiração parnasiana, as regras de estilística e metrificação funcionam como um apoio, possuem papel orientador. Mas jamais se sobrepõem ou ditam regras à imaginação. É esta, sempre, quem assume as rédeas e dá a tônica. É o que assevera Gonçalves Dias no prólogo da primeira edição de seus Segundos Cantos: “É ainda o mesmo estilo [dos Primeiros Cantos] — o pensamento dominando em todo o verso, mas que seja menosprezada a metrificação” (apud BANDEIRA in DIAS, 1998, p. 30).

Em suas versões extremadas, facilmente identificáveis nas vertentes aristocráticas do Romantismo, a valorização do sujeito dá lugar ao retorno de um subjetivismo destrutivo, que insiste na cisão sujeito-objeto. Nessas situações, “o Eu romântico, objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, lança-se à evasão” (BOSI, 1992, p. 102). É o fenômeno conhecido como mal du siècle, que define muito do Romantismo inglês e francês. Essa tendência, encarnada em posições regressivas, de entrega aos desvarios do narcisismo, dá conta de formas vazias da existência, desencaminhadas de qualquer projeto de intervenção ativa na história. Encontra-se bem representada nas obras de poetas como Lord Byron e Alfred de Musset.

O primitivismo

Em seus primórdios, o Romantismo vive a descoberta daquilo que ficaria conhecido como o “espírito do povo” (Volksgeist). Trata-se de um momento de resgate das tradições populares. As classes intelectuais reencontram a literatura artesanal, as religiões e festas do povo, as demais manifestações culturais da gente simples. Essa tendência ganha corpo concomitantemente ao fenômeno classificado por Burke como “revolta contra as artes”: “O ‘artificial’ (como ‘polido’) tornou-se um termo pejorativo, e ‘natural’ (artless), como ‘selvagem’, virou elogio” (BURKE, 1999, p. 37).

O fenômeno, uma reação aos impactos causados pela ascensão do mundo urbano-industrial, teve lugar em muitas partes da Europa. Na França, Rousseau destacou-se com seu elogio do “bom selvagem” e seu culto ao caráter simples e ingênuo da literatura tradicional e das canções populares. Tornou-se dessa forma, como lembra BURKE (1999, pp. 38-39), “o grande porta-voz do primitivismo cultural de sua geração”.

Também na Alemanha o “povo” converteu-se em tema de interesse para os intelectuais. “Herder, que nos anos 1760 morava em Riga, ficou impressionado com a festa de verão da noite de São João. Goethe ficou entusiasmado com o Carnaval romano, que presenciou em 1788 e interpretou como uma festa ‘que o povo dá a si mesmo’” (BURKE, 1999, pp. 34-35).

Papel destacado nesse movimento de retorno às tradições foi jogado por Herder, um dos primeiros pensadores a usar a expressão “cultura popular” (Kultur des Volkes) em contraste com “cultura erudita” (Kultur der Gelehrten). Suas contribuições seminais em filosofia da linguagem, educação e cultura — dentre outros campos — deitaram raízes profundas no pensamento alemão. Conforme explica BURKE,

“J. G. Herder deu o nome de Volkslieder aos conjuntos de canções que compilou em 1774 e 1778. Volksmärchen e Volkssage são termos do final do século XVIII para tipos diferentes de ‘conto popular’. […] Há Volkskunde (às vezes Volkstumskunde), outro termo do início do século XIX que se pode traduzir por ‘folclore’ (folklore, palavra cunhada em inglês em 1846). […] Palavras e expressões equivalentes passaram a ser usadas em outros países, geralmente um pouco mais tarde do que na Alemanha. […]

“O que estava acontecendo? Visto que tantos desses termos surgiram na Alemanha, talvez seja útil procurar aí uma resposta. As concepções por trás do termo ‘canção popular’ vêm expressas vigorosamente no ensaio premiado de Herder, de 1778, sobre a influência da poesia nos costumes dos povos nos tempos antigos e modernos. Seu principal argumento era que a poesia possuía outrora uma eficácia (lebendigen Wirkung) depois perdida. A poesia tivera essa ação viva entre os hebreus, os gregos e os povos do norte em tempos remotos. A poesia era tida como divina. Era um ‘tesouro da vida’ (Schatz des Lebens), isto é, tinha funções práticas. Herder chegou a sugerir que a verdadeira poesia faz parte de um modo de vida particular, que seria descrito posteriormente como ‘comunidade orgânica’, e escreveu com nostalgia sobre povos ‘que chamamos selvagens (Wilde), que muitas vezes são mais morais do que nós’. O que parecia estar implícito no seu ensaio é que, no mundo pós-renascentista, apenas a canção popular conserva a eficácia moral da antiga poesia.” (1999, pp. 31-32)

Não por acaso, Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), o maior dos poetas românticos, exprimia desta maneira sua admiração por Herder: “[Ele] nos ensinou a pensar na poesia como o patrimônio comum de toda a humanidade, não como propriedade particular de alguns indivíduos refinados e cultos” (apud BURKE, 1999, p. 32).

A tentativa de associar a poesia ao povo foi ainda mais eloquente na obra dos irmãos Jacob (1785-1863) e Wilhelm Grimm (1786-1859).

“Num ensaio sobre o Nibelungenlied, Jakob Grimm observou que o autor do poema era desconhecido, ‘como é usual em todos os poemas nacionais e assim deve ser, porque eles pertencem a todo o povo’. A autoria era coletiva: ‘o povo cria’ (das Volk dichtet). Num epigrama famoso, ele escreveu que ‘toda epopeia deve escrever a si mesma ‘ (jedes Epos muss sich selbst dichten). Esses poemas não eram feitos: como árvores, eles simplesmente cresciam. Por isso, Grimm considerou a poesia popular uma ‘poesia da natureza’ (Natur-poesie).” (Id. Ibid. p. 32)

Essas ideias de Herder, Goethe e dos Grimm sobre a natureza da poesia popular e a conexão homem-terra ganharam influência e se tornaram ortodoxas rapidamente, contribuindo para a configuração do núcleo duro da mentalidade romântica. Uma mentalidade de tipo primitivista, que misturava tradicionalismo, nostalgia, bucolismo e apreço à simplicidade e à ingenuidade do povo. Esses valores encontrarão na obra de Gonçalves Dias uma forma de expressão inconfundivelmente brasileira. É o que vemos, por exemplo, em “Rosa no Mar!”:

Por uma praia arenosa,
Vagarosa
Divagava uma Donzela;
Dá largas ao pensamento,
Brinca o vento
Nos soltos cabelos dela.

[…]

Agora, qual sempre usava,
Divagava
Em seu pensar embebida;
Tinha no seio uma rosa
Melindrosa,
De verde musgo vestida.

Ia a virgem descuidosa,
Quando a rosa
Do seio no chão lhe cai:
Vem um’onda bonançosa,
Qu’impiedosa
A flor consigo retrai.

A meiga flor sobrenada;
De agastada,
A virge’ a não quer deixar!
Bóia a flor; a virgem bela,
Vai trás ela,
Rente, rente — à beira-mar.

Vem a onda bonançosa,
Vem a rosa;
Foge a onda, a flor também.
Se a onda foge, a donzela
Vai sobre ela!
Mas foge, se a onda vem.

Muitas vezes enganada,
De enfadada
Não quer deixar de insistir;
Das vagas menos se espanta,
Nem com tanta
Presteza lhes quer fugir.

Nisto o mar que se encapela
A virgem bela
Recolhe e leva consigo;
Tão falaz em calmaria,
Como a fria
Polidez de um falso amigo.

Nas águas alguns instantes,
Flutuantes
Nadaram brancos vestidos:
Logo o mar todo bonança,
A praia cansa
Com monótonos latidos.

Um doce nome querido
Foi ouvido,
Ia a noite em mais de meia.
Toda a praia perlustraram,
Nem acharam
Mais que a flor na branca areia.

A situação, descrita com acuidade, retrata a simplicidade da vivência popular. No quadro em tela, funde-se a jovem donzela, mil e uma vezes, à natureza, à rosa, ao mar. Funde-se nos gestos, nos motivos e nas cores. Funde-se em movimentos dialéticos, nos mil fulgores sugeridos pelas trocas de lugar: onde a rosa vai e vem, a moça vem e volta, das vagas rutilantes ciosa — e ao mesmo tempo medrosa. Em meio ao bucolismo, há ainda um toque de melancolia, pois que a moça airosa, em sua porfia com o mar, confiante de si, deixa-se enfim levar. E se perde entre as ondas em um delicado, vagaroso afogar. Tudo isso permeado por grande sensualidade, que só a beleza das paisagens e da gente brasileira poderia evocar!