O STF como agente de instabilidade jurídica
Os Estados modernos observam a clássica divisão dos poderes, segundo o esquema tripartite de Montesquieu, distribuindo entre eles, de forma específica, o monopólio da função legislativa, o monopólio da função jurisdicional e o monopólio da função executiva. Monopólio de função, ressalto.
Fiel a esse princípio, a Constituição brasileira de 1988, repetindo todos os textos republicanos, reza em seu art. 2º: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Assim sempre foi mas agora não é mais, embora não tenha havido alteração do texto, cláusula pétrea. Não é mais porque o Supremo Tribunal Federal (com a inefável companhia do Tribunal Superior Eleitoral) age como se fôra titular de poder legiferante, e o Poder Legislativo, já negligente em sua missão, também é omisso na defesa de suas atribuições privativas, sua própria finalidade, não obstante o inciso XI do art. 48 da Carta Magna estabelecer como sua obrigação “zelar pela preservação da sua competência legislativa em face da atribuição normativa dos outros poderes”.
Esperneia, ameaça céus e terra e por fim se acomoda em seu inquietante esvaziamento.
O que é mais pernicioso, pergunta-se: a inércia legiferante do Congresso ou a permanente incursão do Supremo em competência própria do Poder Legislativo? Ou essas duas patologias são apenas sintomas da crise constituinte, que vem de longe e se desdobra na crise do Estado?
Enquanto o Congresso segue em insana letargia, a via judicial, a menos adequada, promove as mudanças que lhe vêm à telha, pervadindo as mais diversas áreas, da legislação eleitoral ao casamento homoafetivo. Não discuto o mérito intrinseco de cada tema; condeno o fato de o STF atuar para além de suas atribuições, ao comportar-se como legislador positivo, logo ele, de todos os poderes o que não se apóia diretamente na soberania popular, o voto, a única fonte de legitimidade no Estado de direito democrático. Esse ativismo, recente mas progressivo, caminha na contramão do direito constitucional brasileiro quando o Supremo se autooutorga poder que a Constituição de 1988 não lhe concedeu. Esse ativismo, como um vírus, contaminou todas as instancias, onde impera o autoritarismo, o arbítrio e, mesmo, a corrupção, como tem comprovado, para nossa miséria, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). A ilegitimidade, irreparável, eiva de vício substantivo a melhor das decisões.
Essas reiteradas incursões do STF em terreno alheio, ademais, contribuem para a insegurança jurídica e, daí, para a instabilidade das instituições democráticas, quando o cidadão não sabe mais que lei está regendo sua relação com o Estado, a sociedade e os demais cidadãos. Mesmo as alterações de entendimento decorrentes de eventuais mudanças na composição do pleno precisam ser dosadas com cuidado, para que não se faça tabua rasa da jurisprudência dominante na qual se fiam os advogados. A anarquia se instala no momento em que a regra pode ser alterada ao alvedrio dos eventuais ocupantes do STF.
O STF erra de forma consciente, pois a Constituição de 1988, sábia neste aspecto, previu a possibilidade de inação do Legislativo e aplicou-lhe o remédio do mandado de injunção (inciso LXXI do art. 5º) mediante o qual o Poder Judiciário pode mandar o Poder Legislativo agir (legislar) na ausência de norma regulamentadora de direito por ela amparado. Pode o STF mandar o Legislativo trabalhar, não pode, porém, substituí-lo.
Cumpre ao STF, em nosso ordenamento, vigiar a constitucionalidade das leis, como guardião que é, deve ser, da Constituição. Em nosso sistema, porém, e desde sempre, a jurisprudência emanada dos tribunais, derivada de seus julgamentos, não cria direito, não pode criar direito novo, mas apenas declara o direito vigente. Assim, quando uma decisão jurisprudencial modifica uma lei, ou cria norma nova, o STF está abalando, a um só tempo, dois pilares da nossa democracia, a saber, o primado constitucional da separação dos poderes e a segurança da ordem jurídica.
O caso presente, que salta aos olhos mesmo dos leigos, é a alteração do direito eleitoral, de novo pela via jurisprudencial, a poucos meses do início da campanha eleitoral (junho) e a nove meses das eleições (5/10). É o caso recente, mas não é a primeira nem, desgraçadamente, será a última infração. Legislando, o STF aboliu a chamada cláusula de barreira, condicionante do acesso dos partidos ao rádio, à TV e ao fundo partidário ao desempenho na eleição anterior para a Câmara dos Deputados; adicionou conteúdo normativo ao Estatuto da Advocacia; disciplinou a qualificação de entidades como organizações sociais; legislou sobre fidelidade partidária; interveio na legislação do direito de greve dos servidores públicos; disciplinou a pesquisa com células-tronco embrionárias, legalizou a interrupção da gravidez de feto anencéfalo e criou o casamento homoafetivo. Na área eleitoral, seu intervencionismo só perde para o do TSE. Este, em 2002 determinou que as coligações estaduais deveriam seguir a coligação nacional, em 2007 decidiu que os mandatos pertenciam aos partidos, para depois dizer que os mandatários infiéis levavam consigo para a sigla hospedeira o tempo de televisão e a parcela do Fundo Partidário pertencente ao partido pelo qual se elegera. Em 2010 antecipou para as eleições daquele ano a vigência da chamada ‘Lei da ficha limpa’.
Repitamos uma vez mais: não se discute o conteúdo das decisões.
O que se critica, à exaustão, é a atividade legiferante do STF e do STF, sem amparo constitucional, e rompendo com a ordem jurídica, que requer estabilidade. Registre-se que todo e qualquer combate à presença do poder econômico no processo eleitoral será sempre bem recebido. Há, entretanto, de estar em harmonia com uma nova ordem legislativa, tarefa indelegável do Congresso Nacional. Trata-se de medida indispensável no bojo da Reforma do Estado, da qual a reforma política (ou simplesmente da legislação eleitoral) é capítulo relevante.
Precisamos unir todo as forças da sociedade visando a impor ao Partidos a necessidade, imediata, da reforma eleitoral. Perdida para as eleições de 2014, que pelo menos venhamos dispor de uma nova regulação nas eleições já próximas de 2018. Essa nova legislação deverá ser severa na repressão tanto à intervenção do poder político quanto do poder econômico, e cogitar de outras medidas, como a proibição de reeleição ilimitada de parlamentares, o fim da reeleição para mandatos executivos, a exigência de renúncia do mandato legislativo para o exercício de funções no Poder Executivo, a adoção das listas partidárias pré-ordenadas, o fim do festival mercadológico e manipulador dos prgramas de televisão substituídos por audições ao vivo, o fim das coligações proporcionais e, fundamentalmente, o financiamento público exclusivo das campanhas e das pré-campanhas, cada vez mais longas, que precisam ser regulamentadas.
Executadas essas reformas, eleito um novo Congresso mais próximo da vontade de seus eleitores, mais legítimo portanto, estaremos em condições de realizar a grande Reforma do Estado, adequando-o para o momento da emergência das massas, quando o projeto nacional-popular concluirá sua transição para o Estado social-desenvolvimentista. Nesta reforma caberá, e necessariamente, a reforma do Poder Judiciário, com vistas a administração da justiça eficiente, rápida, equânime, distante das pressões do poder econômico e do poder político, e imune ou menos dócil às pressões da classe dominante e ao tráfico de influência. Essa nova justiça, que não pode gozar três meses de férias anuais, precisará de um STF revigorado, e a primeira medida é o fim da vitaliciedade monárquica de seus ministros.
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