A nova nova economia
Vários movimentos estudantis, apoiados por académicos e economistas de renome exigem que os conteúdos programáticos da disciplina sejam mais pluralistas, menos dogmáticos, menos centrados nos modelos matemáticos, mais humanistas e mais “reais”. E, finalmente, os seus protestos estão a ser ouvidos.
Até aqui, poderia ser chamada como uma “revolução silenciosa”. Um pouco por todo o mundo, grupos de estudantes de Economia estão a organizar-se e a erguer a sua voz exigindo uma reforma nos programas curriculares da disciplina. Questionando a hegemonia da teoria neoclássica, a excessiva utilização dos modelos matemáticos e a desconexão entre “economia” e questões econômicas reais, os estudantes em causa, apoiados por um número crescente de acadêmicos e economistas de referência, divisaram estratégias variadas de ação e estão a começar a atingir sucessos reais. Depois de manifestos, movimentos e conferências, as mídias começaram a cobrir este grito de reforma e já há muita gente que o escuta, registra as suas frustrações e se prepara para agir. A história de uma “Nova Economia”, finalmente, parece estar a dar os primeiros passos em muitas instituições de ensino de referência.
“Se desejam enforcar alguém por causa da crise, enforquem-me a mim, e aos meus colegas economistas”. A frase, indubitavelmente surpreendente, foi proferida por uma economista e acadêmica de Cambridge, Victoria Bateman, e deixou profundamente incomodados os demais acadêmicos e economistas reunidos, no final do mês de Outubro, numa conferência que teve lugar em Downing College, Cambridge, a propósito da crise econômica.
No seu novo livro, Never Let a Serious Crisis Go to Waste, o economista norte-americano Philip Mirowsky conta a história de um colega seu, professor na Universidade de Notre Dame, ao qual foi pedido, pelos seus alunos, que fizesse um debate sobre a crise financeira. Dado que corria o ano de 2009 e o mundo financeiro estava a colapsar aos olhos de todos, os alunos pensaram que este seria um excelente tema para ser debatido na aula de macroeconomia. A resposta do professor: “Os estudantes foram laconicamente informados que o tema não constava do conteúdo programático da disciplina, nem era mencionado na bibliografia afixada e que, por isso, o professor não pretendia divergir da lição que estava planejada. E foi o que fez”.
Em artigo publicado no The New York Times, e também em 2009, o laureado com o Nobel da Economia e também professor em Princeton, Paul Krugman, escrevia: “tal como eu a vejo, a profissão de economista sofreu um profundo desaire porque os economistas, enquanto grupo, confundiram a beleza e a sofisticação da matemática com a verdade”.
O que têm estas três histórias em comum? À primeira vista, uma recusa em acreditar que o mundo mudou, que as lições decorrentes da crise financeira não foram debatidas, ou estudadas, e que a economia continua a ser uma disciplina que ignora as evidências empíricas que contradizem as teorias mainstream que, até agora, fazem parte dos seus conteúdos pragmáticos.
E é contra esta recusa cega e teimosamente persistente que muitos estudantes de economia, de diversas universidades e de vários cantos do mundo, se estão a organizar em movimentos estudantis, a angariar apoio acadêmico no geral, e de muitos economistas de renome em particular, e a publicar manifestos nos quais exigem que o estudo da economia reflita o mundo pós-Grande Recessão e que os modelos que sustentam a disciplina sejam mais pluralistas e menos dogmáticos.
Contra o autismo econômico
A 6 de Abril último, um grupo de estudantes da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), uma das mais reconhecidas instituição de ensino de ciências sociais em França, realizou uma assembleia geral para discutir alternativas à ortodoxia corrente que caracteriza o ensino da economia no século XXI. Em Setembro do ano passado, mais de 400 estudantes alemães participaram num “evento de alternativa pluralista” organizado pela Associação Econômica Alemã, com o objetivo de debaterem, num fórum organizado para o efeito, ideias econômicas fora do âmbito mainstream. Em finais de Junho do corrente ano, estudantes, acadêmicos, profissionais e cidadãos juntaram-se em Londres para repensar a economia e o seu ensino enquanto disciplina na denominada Rethinking Economics Conference.
Estes são apenas alguns dos exemplos de ações que, através de iniciativas aparentemente separadas, estão se transformando em um movimento global de estudantes – e também de professores – cujo objetivo principal é alterar a forma como se olha para a economia enquanto disciplina e enquanto ciência, não exata, mas antes plural e “humana”.
O início deste movimento teve lugar em França, no já longínquo ano 2000, quando ainda não se sonhava com o escândalo da Enron e, muito menos, com o pesadelo de Wall Street e as sequelas que se lhe seguiram e que afetaram o mundo financeiro e econômico global como o conhecíamos. Na altura, um grupo de estudantes franceses publicou um manifesto no qual exigiam o fim “do autismo no ensino da economia” enquanto disciplina. Em particular, os estudantes criticavam a utilização “descontrolada” da matemática no ensino da economia, como se a primeira fosse “um fim em si mesma”, o fracasso do seu envolvimento com a economia real, o dogmatismo reinante e a inexistência de um pluralismo intelectual no ensino da disciplina em causa, o qual não deixava espaço algum para o pensamento crítico em geral e para abordagens alternativas à economia em particular. Na altura, o manifesto estudantil deu rapidamente origem a uma petição por parte dos professores de economia franceses, que apoiavam o conteúdo do mesmo, o que acabou por ter um eco substancial não só na imprensa como também ao nível político, tendo sido instituído, pelo então ministro da Cultura francês, um comité para investigar as “queixas” levadas a cabo por estudantes e professores.
Treze anos passados e as questões colocadas por este grupo de estudantes continuam por resolver. Mas e apesar do rótulo da necessidade de uma “economia pós-autismo” ter desaparecido, os movimentos de estudantes estão em crescendo, multiplicando-se as iniciativas, bem como as vozes concordantes que clamam por uma nova abordagem da economia. Como se pode ler na página do movimento Rethinking Economics, os estudantes alemães que participaram no evento acima referido vêem agora a sua “alternativa” a ser replicada em várias universidades alemãs, numa rede intitulada Rede Alemã para uma Economia Plural, o mesmo acontecendo com estudantes no Canadá ou no Chile.
O reputado Institute for New Economic Thinking, sediado em Nova Iorque, lançou a Young Scholars Initiative que “apoia a nova geração de pensadores da nova economia” e, na mesma linha, a World Economics Association – que reúne mais de 12 mil economistas de todo o mundo – fundou também a Young Economists Network.
Mais recentemente, a Universidade de Manchester lançou a Post-Crash Economics, colocando online uma petição para alterar os conteúdos programáticos com base num manifesto que, entre outras coisas, sublinha a ideia que a economia é muito mais que crescimento e PIB e que a expansão do pensamento econômico é vital para os líderes do futuro. Numa carta aberta publicada pelo jornal britânico The Guardian, os membros desta “sociedade” têm vindo a ganhar uma visibilidade crescente ao longo deste mês de Novembro – com uma excelente ajuda por parte do próprio jornal – depois de um conjunto de acadêmicos ter enviado também uma carta ao mesmo na qual “afirmam compreender a frustração dos jovens com a forma como a economia é ensinada na maioria das instituições no Reino Unido”. Para este conjunto de professores, que fazem parte do Post Keynesian Economics Study Group, a economia contemporânea continua a ser moldada pela abordagem neoclássica [em que a ciência econômica é vista como “pura”, identificando-se com o mercado, ou concorrência, em particular sobre a forma de concorrência perfeita, em que os sujeitos econômicos agem racionalmente em termos de maximizadores ou minimizadores de qualquer coisa, sejam utilidades, lucros, custos, etc. e são dotados de idêntico poder]. Para estes acadêmicos, esta abordagem tem apenas em consideração os “microfundamentos” que se baseiam nos indivíduos racionais e egoístas em detrimento de uma qualquer plausibilidade empírica. “Este compromisso dogmático contrasta significativamente com a abertura do ensino em outras ciências sociais as quais, de forma rotineira, apresentam paradigmas concorrentes”, escrevem, acrescentando que “os estudantes podem hoje terminar a sua licenciatura em Economia sem nunca terem sido expostos às teorias de Keynes, Marx ou Minsky e sem nunca terem ouvido falar da Grande Depressão”.
Ou, em suma, e regressando às questões pioneiras levantadas pelos estudantes franceses em 2000, o cenário parece não ter mudado: o ensino da economia continua a ser dogmático e “estreito”, os modelos matemáticos continuam a estar no seu centro, os humanos são tratados como se de máquinas calculadoras se tratassem e a maioria dos acadêmicos continua a ter muito pouco a dizer sobre os acontecimentos que vão caracterizando a economia real. Mais importante ainda é o facto de a crise financeira e econômica de 2008 ter demonstrado, de forma dolorosa, que os modelos macroeconômicos ortodoxos são manifestamente inadequados e que a economia mainstream não ajudou os economistas a prever a crise nem permite, tal como está, que se evitem recessões intermináveis.
Mas e afinal, o que pretendem os estudantes e os professores e demais economistas que os apoiam? Debates, enfoque na história do pensamento econômico e sustentabilidade.
Os estudantes da Universidade de Manchester que formaram a já mencionada Post-Crash Economics Society encontraram inspiração para a criação da sua “sociedade” depois de terem assistido, em Fevereiro de 2012, a uma conferência organizada pelo Banco de Inglaterra e pela Royal Economic Society. Intitulada “Are Economics Graduates Fit For Purpose?”, o evento contou com a presença de um conjunto de diversos especialistas que analisavam, exactamente, uma das consequências da crise financeira e econômica de 2008: a reavaliação da própria economia por parte daqueles que a praticavam, o que implicaria, naturalmente, a forma como esta era ensinada nas universidades. Como afirmou então Diane Cole, directora da consultora Enlightenment Economics, uma das oradoras, “a crise foi um enorme fracasso intelectual, pois todos a percebemos de forma errada”. E, na verdade, a questão da necessidade de existir uma reforma no ensino da economia está estreitamente relacionada com o “status” intelectual da própria economia, no pós-crise. Mas não só.
Como se pode ler na carta aberta enviada ao The Guardian, os estudantes de Manchester têm uma ideia bastante precisa da desadequação do ensino da economia relativamente ao mundo em que vivemos. Quando abordam a questão das teorias econômicas, escrevem: “esta [a teoria neoclássica] gira em torno da ideia do agente individual. Um agente pode ser uma pessoa ou uma empresa, por exemplo, a interagir com uma outra através de preços, num mercado. E o carácter de um agente ou os desejos claros de uma empresa ou de um consumidor no mercado são-nos apresentados como modelos matemáticos. É esta simplificação da natureza humana, apresentada numa sucessão de equações que, muitas vezes, sufoca a economia neoclássica e lhe nega a fluidez necessária para descrever, de forma precisa, a mudança patente no mundo em que vivemos”.
E acrescentam: “indivíduos que compram e vendem bens para gerar lucro, sem qualquer ideia de que forma estes bens podem afetar o planeta ou afetar a vida das pessoas, é uma questão ignorada [no ensino da economia] mas que deve ser uma preocupação para todos nós. O sistema financeiro corre ao ritmo desenfreado da imediaticidade, sendo que o colapso financeiro de 2008 lançou alguma luz em como uma ausência de conhecimento dos fracassos do mercado pode ser desastrosa para a sociedade”.
Afirmando ainda que não pretendem afirmar que o modelo neoclássico é perfeitamente inútil, os estudantes concentram-se, ao invés, num conhecimento mais amplo de outro tipos de teorias – privilegiar o ensino da história do pensamento econômico é um “pedido” comum nos vários manifestos estudantis – em conjunto com outras ferramentas que lhes permitam perceber o que é melhor para uma economia, “não sendo esta limitada apenas por questões de crescimento e lucro, mas incluindo o estudo de mecanismos que permitam a sustentabilidade, a equidade e a consciência social”.
Na petição que consta no site da “sociedade de estudantes”, os promotores da iniciativa relembram ainda a variedade de escolas de pensamento existentes na disciplina e que a integridade acadêmica exige que teorias econômicas alternativas sejam ensinadas aos alunos. A forma como a Economia é ensinada, defendem, dá origem a consequências importantíssimas pois as nossas sociedades são moldadas por políticas e acontecimentos econômicos.
Adicionalmente, a desadequação entre os conteúdos programáticos e as necessidades do mundo real constitui um desafio enfrentado pelos Departamentos de Economia de Universidades de todo o mundo. Afirmando acreditar que a educação em Economia deveria incluir uma pluralidade significativa e uma ainda maior avaliação crítica, as propostas dos estudantes são claras:
1 Sublinhar, em cada módulo, as teorias econômicas a serem ensinadas, para que a economia não seja encarada como uma disciplina monolítica e sem debate.
2 Porque as teorias econômicas não podem ser devidamente compreendidas sem o conhecimento dos contextos sociopolíticos e tecnológicos nos quais são formuladas, o relacionamento com a história econômica deverá ser feito sempre que possível.
3 Disponibilizar cadeiras com perspectivas econômicas alternativas nos três primeiros anos do curso, deixando claro que a ideia não é a de se ignorar o ensino da Economia mainstream, mas sim compreender que a pluralidade de perspectivas é estritamente necessária.
4 Sempre que possível, os docentes deverão relacionar a matéria em causa com o mundo real para que os estudantes aprendam a aplicar a teoria e compreendam onde falha a teoria para explicar a realidade.
5 Os módulos devem encorajar também o desenvolvimento de competências críticas e os tutoriais deverão estimular a discussão e o pensamento reflexivo.
Já a Rethinking Economics,a comunidade que tem como objetivo desmistificar, diversificar e revigorar o estudo da Economia, em uma rede abrangente de cidadãos, estudantes acadêmicos e profissionais, com o objetivo de formar uma rede colaborativa de “re-pensadores”, apresenta três linhas por excelência para a reformulação do ensino da disciplina.
Uma linha acadêmica, que privilegie pontes com disciplinas direta e indiretamente relacionadas com a Economia, que faça progressos no ensino de outras perspectivas e metodologias até agora negligenciadas e que promova a colaboração, a humildade e a prática ética na academia;
Uma linha educacional, que desmistifique a Economia enquanto ciência técnica, construindo comunidades abertas e colaborativas de pensadores econômicos; que expanda a criatividade e a consciencialização social dos economistas e cidadãos do futuro, ao mesmo tempo em que encoraje a utilização de ferramentas de análise econômica por parte de todos os que participam numa sociedade que é significativamente moldada por forças econômicas;
E uma linha política que potencie a capacidade de organização efetiva por parte dos estudantes e professores de economia, que reconheça os seus papéis e as responsabilidades, enquanto agentes políticos, no interior das várias instituições e na vida pública alargada.
Um consenso une todos estes movimentos: se nada for feito para se alterar a forma como a Economia é ensinada nas universidades, os futuros líderes, empresariais e financeiros, continuarão a não perceber as consequências diretas das suas ações face à sociedade em que vivemos e, obviamente, relativamente ao planeta que habitamos. Estender a Economia para além da ortodoxia, abordando teorias alternativas que não se limitam a alocar recursos através da simples equação da procura e da oferta, mas sim privilegiando um pensamento reflexivo de longo prazo será imprescindível para que a questão da sustentabilidade ganhe momentum e para assegurar que as decisões das pessoas têm origem na responsabilidade social.
Leia mais: Coyle, Diane (2012), “Do economic crises reflect crises in economics?”, Keynote address, ‘Rethinking Economics’ conference, Stiftverband für die Deutsche Wissenschaft/Handelsblatt, Frankfurt am Main, 23 January.
Publicado no Jornal de Negócios (Portugal)