América Latina 2013-2014
Acaba um ano de alta densidade política na América Latina. A região, em seu conjunto, permaneceu em constante movimento, cada vez mais politizada, com uma batida democrática que continua interpelando a injusta ordem internacional estabelecida pelos poderes econômicos hegemônicos. A América Latina continua imersa em uma tensa disputa interna sem poder ficar alheia à atual transição geopolítica/geoeconômica mundial que avança a um mapa multipolar.
Fronteira adentro, muitos países avançaram na consolidação de sua particular mudança de época. Em um eixo mais vigoroso, Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina (e o Brasil em uma versão light) podem considerar uma década ganha, caracterizada pelo trânsito econômico a um estágio pós-neoliberal que recupera o Estado como ator político, salda a dívida social herdada das décadas perdidas, redistribui riqueza, democratiza boa parte da economia, controla setores estratégicos e realça a bandeira da soberania no renovado padrão de inserção no mundo, melhorando assim os termos de intercâmbio.
Esses países, cada um com suas especificidades, afrontaram um ano de guinada entre a década ganha e a próxima década disputada. As maiorias populares viram resolver – em grande medida – muitas de suas urgentes necessidades sociais-políticas-econômicas, e agora, os desafios –afortunadamente – são rejuvenescidos: mais direitos sociais, mais consumo, mais qualidade de vida, um estado mais eficaz e, inclusive, em alguns cantos do continente (leia-se Venezuela), se exige transitar do pós-neoliberalismo a uma etapa pós-capitalista. Portanto, se aproximam tempos de procurar renovadas respostas para as novas perguntas.
Este ano de 2013, por sua vez, foi aproveitado pelo outro bloco, o neoliberal, para continuar edificando a Aliança do Pacífico, uma espécie de ALCA em versão moderna, que aprende dos erros do passado: a) reitoria dos Estados Unidos, mas dissimulada, b) com vários níveis de integração, e c) sem isolar-se do resto dos processos de integração em curso. Esta nova coalisão se constitui, assim, em outra tentativa de dividir o Sul a partir do Norte, mas sem estar isenta de grandes protestos sociais em seu foro interno, em resposta às políticas de (des)ajuste em matéria social. Ao outro lado do Pacífico está um Mercosul com a Venezuela como membro pleno, e com a Bolívia cada vez mais próximo de sê-lo. O Paraguai volta a seu seio, mas sem descartar que procura também uma saída ao Pacífico.
O Equador ainda não se decidiu, mas tudo parece indicar que cairá – por efeito – neste bloco por perigo de acabar em terreno de ninguém, ameaçado permanentemente pelas propostas de TLC da União Europeia. O Chile muda de governo, mas com poucas esperanças de uma grande transformação em sua política externa. A ALBA tampouco fica quieto e continua seu curso, mas apostando por uma relação mais estreita com a Petrocaribe e com o Mercosul.
Tudo isso supôs, realmente, um ano de muitas transformações que, como se demonstrou, deriva em um funcionamento cada vez mais defeituoso de uma instituição que padeceu um ano complicado, a Unasul. Nesse mesmo sentido, a Celac, apesar de ter passado sem pena nem glória, continua sendo uma iniciativa com potencialidade porque propõe substituir a OEA mediante uma troca de peças: Cuba pelos Estados Unidos. Isso, obviamente, não é do agrado dos Nortes do Norte.
Não obstante, este ano tem uma página especial, de luto, para a história da América Latina: a partida física do comandante Hugo Chávez foi um acontecimento mundial e de impacto político superlativo na região. Esse fato abriu um dos grandes interrogantes, até o momento desconhecido no devir dos processos latino-americanos. Poderia haver chavismo sem a existência de seu líder? Apesar dos esforços da oposição venezuelana – com a inestimável ajuda internacional – para fazer desaparecer retrospectivamente Chávez, o povo já decidiu há anos que o chavismo é uma nova identidade política que veio para ficar no imaginário durante muitos anos mais.
Para terminar, na outra dimensão, fronteira afora, a América Latina diversificou seu padrão de dependência; mudou substancialmente sua matriz relacional com o exterior: sua relação com China-Rússia-Índia é cada vez mais sólida. Também é com o Irã e com a África. Frente a isso, a dupla União Europeia-Estados Unidos, em seu último documento do Conselho Atlântico: “O vínculo trilateral. Uma nova era para América Latina, Estados Unidos e Europa”, volta à carga na busca de “trazer ao redil atlântico” uma América Latina que cada dia é mais potência política e econômica.
Uma amostra disso é a tentativa da União Europeia de negociar um acordo comercial com o Mercosul, com duplo objetivo: um, buscar saída para a crise europeia e dois, de forma indireta, desintegrar um bloco homogêneo. Entretanto, toda esta nova arremetida dos países centrais não terá nenhum êxito, sempre que e quando alguns países da região continuarem com suas políticas de 2013, considerando os desafios de 2014, mas tendo claro um princípio fundamental: não existe democracia real e justiça social com o retorno das caravelas.
(*) Doutor em Economia. Centro Estratégico Latino-americano Geopolítico (Celag). Artigo publicado na seção opinião de Página12, Argentina, em 03.01.2014 e traduzido para a Carta Maior.