O ocaso da democracia nos EUA
Se os norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o aparelho de segurança e vigilância, não haverá jornalismo investigativo ou supervisão judicial que detenha o abuso de poder. Não haverá contraditório organizado. Não haverá pensamento independente. A crítica, por morna que seja, será tratada como ato de subversão. O aparelho de segurança amortalhará o corpo político como mofo negro, até que o mais banal e ridículo seja convertido em questão de segurança nacional.
Os EUA vivemos nossos últimos estertores como democracia. A intrusão do estado na vida de cada um e todos, e a obliteração da privacidade já são agora fatos. O desafio para todos nós – dos desafios finais, suspeito eu – é nos levantarmos ultrajados e pôr fim ao assalto aos nossos direitos à liberdade e à livre expressão. Se não o fizermos, nos veremos convertidos numa nação de cativos.
Os debates públicos sobre medidas do governo para impedir o terrorismo, o assassinato de reputação contra Edward Snowden e seus apoiadores, as garantias, pelos poderosos, de que ninguém estaria dando mau uso à quantidade massiva de dados coletados e armazenados das nossas comunicações eletrônicas não visam ao alvo alegado.
Qualquer governo que tenha capacidade para monitorar seus cidadãos; qualquer estado tenha capacidade para descartar o debate público sobre fatos; qualquer estado que tenha ferramentas suficientes para calar instantaneamente a oposição discrepante é estado totalitário.
Hoje, o estado-empresa [orig. corporate state] norte-americano pode talvez não estar usando todo esse poder. Mas o usará, se se sentir ameaçado por uma população tornada impotente pela corrupção entre os próprios cidadãos, pela incapacidade para organizar-se para agir, ou por repressão galopante. No instante em que surja um movimento popular – e algum surgirá – que realmente confronte nossos patrões na imprensa-empresa ou no estado-empresa, o venal sistema-empresa norte-americano de vigilância total será posto a trabalhar a pleno vapor.
O mal mais radical, como Hannah Arendt apontou, é o sistema político que efetivamente esmaga seus oponentes marginalizados e abusados e, pelo medo e pela obliteração da privacidade, incapacita todos os demais. O sistema norte-americano de vigilância de massa é a máquina pela qual esse mal radical será ativado.
Se os norte-americanos não desmantelarmos imediatamente o aparelho de segurança e vigilância, não haverá jornalismo investigativo ou supervisão judicial que detenha o abuso de poder. Não haverá o contraditório organizado. Não haverá pensamento independente. A crítica, por morna que seja, será tratada como atos de subversão. O aparelho de segurança amortalhará o corpo político como um mofo negro, até que o mais banal e ridículo seja convertido em questão de segurança nacional.
Conheci mal dessa qualidade, quando trabalhei como repórter no estado-Stasi(al. no orig., “Ministério da Segurança do Estado”) da Alemanha Oriental. Era seguido por homens de cabelo cortado à militar, metidos em jaquetas de couro, que eu presumia que fossem agentes do Stasi, que eram apresentados como “escudo e espada” da nação. As pessoas que eu entrevistava eram visitadas por agentes do Stasi, imediatamente depois de eu sair da casa delas. Meu telefone era “grampeado”. Alguns dos que trabalhavam comigo eram pressionados para tornar-se informantes. O medo descia como gelo duro, sobre cada conversa.
O Stasi não criou massivos campos de morte e gulags. Não precisou. O Stasi, com rede de dois milhões de informantes, numa população de 17 milhões, estava em todos os cantos. Havia 102 mil funcionários da polícia secreta que trabalhavam em tempo integral para monitorar a população – um, para cada 166 alemães do leste. Os nazistas quebraram ossos; o Stasi quebrou almas. O governo da Alemanha Oriental foi pioneiro da “desconstrução psicológica”que os torturadores e interrogadores nos buracos negros da CIA pelo mundo, e dentro do sistema prisional norte-americano, elevaram à mais aterrorizante perfeição.
O objetivo da vigilância total, como Arendt escreveu em Origens do Totalitarismo, não é, no fim, descobrir crimes, “mas estar a postos, quando o governo decide prender uma dada categoria da população.
E porque os e-mails, as conversas telefônicas, as pesquisas na Web e os deslocamentos geográficos são gravados e armazenados para sempre nos bancos de dados do governo dos EUA, haverá sempre “provas” em quantidade suficiente para nos encarcerar, caso o estado considere necessário. A informação espera, como um vírus mortal, nos cofres do governo, para ser usada contra nós. Não importa o quanto a informação seja trivial ou inocente. Em estados totalitários, a justiça, como a verdade, é irrelevante.
O objetivo de estados totalitários eficientes, como George Orwell compreendeu, é criar um clima no qual as pessoas não pensem em rebelar-se, um clima no qual a tortura e a matança praticadas pelo governo são usadas só contra um punhado de renegados inadministráveis. O estado totalitário obtém esse controle, Arendt escreveu, mediante o esmagamento sistemático da espontaneidade humana e, por extensão, da liberdade humana. Espalha o medo incansavelmente, para manter a população traumatizada e imobilizada. Converte os tribunais, como os corpos legislativos, em mecanismos para legalizar os crimes do estado [e os crimes das classes e grupos de força dominantes, como os crimes da imprensa-empresa (NTs)].
O estado-empresa norte-americano, no caso dos EUA, usou a lei para silenciosamente abolir a 4ª e a 5ª Emendas da Constituição, estabelecidas para nos proteger contra intrusão do governo-empresa em nossa vida privada, sem mandado judicial. A perda da representação e da proteção judicial e política, parte do coup d’état engendrado pelo estado-empresa, implica que não temos nem voz nem proteção legal contra os abusos do poder. A recente sentença judicial que apoia e legaliza a espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, emitida pelo Juiz Distrital dos EUA, William H. Pauley III, é parte de uma longa e vergonhosa lista de sentenças e decisões judiciais que repetidas vezes sacrificaram nossos mais caros direitos constitucionais, no altar da segurança nacional, desde os ataques de 11/9.
Os tribunais e corpos legislativos do estado-empresa invertem agora, rotineiramente, nossos mais básicos direitos, para justificar a pilhagem-empresa e a repressão-empresa. Declaram que doações secretas massivas para campanhas eleitorais – que é uma forma de legalizar a propina – são ações protegidas pela 1ª Emenda. Definem a empresa-lobby – mediante a qual empresas privadas fazem chover dinheiro sobre funcionários eleitos e escrevem nossas leis – como direito do povo, de agir como governo. E podemos, conforme as leis norte-americanas, ser torturados ou assassinados ou presos por tempo indefinido pelos militares; e podemos não receber o devido processo legal; e podemos ser espionados sem mandado judicial.
Cortesãos obsequiosos, servis, que se apresentam como jornalistas, santificam o poder da empresa e do estado-empresa e amplificam suas mentiras – a redeMSNBC faz isso tão caninamente quanto a rede Fox News – ao mesmo tempo em que enchem nossa cabeça com a imbecilidade das fofocas sobre “celebridades” e “notícias” que nem notícia são.
Nossas “polêmicas”, que permitem que políticos e jornalistas de futrica falem sem parar sobre questões que nem questões são, mascaram um sistema político que deixou de funcionar. História, arte, filosofia, investigação intelectual, nossas lutas sociais e individuais passadas, por justiça; o próprio mundo das ideias e da cultura, com a compreensão do que significa viver e participar numa democracia funcional, foram jogados nos buracos negros do que se deve esquecer, apagar.
O filósofo político Sheldon Wolin, em seu livro indispensável, essencial, Democracy Incorporated” [“Democracia-empresa”, sem edição no Brasil, “esgotado no fornecedor”, cf. webpage da Livraria Cultura (NTs)] chama o sistema de governo-empresa [orig. corporate governance] nos EUA, de “totalitarismo invertido”, que representa “a nova era de política-empresa e de desmobilização política da cidadania”.
O totalitarismo da política-empresa difere das formas clássicas do totalitarismo, que giram em torno de um líder carismático ou demagogo; sua expressão é o anonimato do estado-empresa [orig. “the anonymity of the corporate state” (NTs)]. As forças da empresa [orig. corporate forces] ativas por trás do estado-empresa inverteram o totalitarismo, para não substituir estruturas decadentes, como fazem os movimentos totalitários clássicos, por novas estruturas.
Em vez disso, fingem honrar a política eleitoral, a liberdade de manifestação e a imprensa democrática, o direito à privacidade e as garantias legais.
Mas manipulam a política eleitoral de tal modo, corrompem-na de tal modo, tão completamente – como também corrompem juízes, tribunais, a imprensa e todas as alavancas essencial do poder – que tornam impossível a genuína participação democrática das massas [isso está para acontecer também aqui no Brasil com a USURPAÇÃO pelo Poder Judiciário de prerrogativas dos Poderes Executivos e Legislativos (Nrc)].
A Constituição dos EUA não foi reescrita, mas já foi capada, nas interpretações que lhe dão juízes e corpos legislativos. E cá ficamos, com uma frágil capa democrática e um duro núcleo totalitário.
A âncora desse totalitarismo-empresa são os sistemas norte-americanos de segurança interna, que nada e ninguém supervisiona ou controla.
Nossos governantes totalitários-empresa se autoenganam, com tanta frequência quanto enganam o público. Política, para eles, é pouco mais que RP (Relações Públicas). Contam-se mentiras, não para obter algum resultado discernível de política pública, mas para proteger a imagem do governante e do governo dos EUA. Essas mentiras tornaram-se uma grotesca modalidade de patriotismo.
A capacidade do governo dos EUA, mediante vigilância total, para impedir qualquer investigação externa sobre o poder, engendra apavorante esclerose intelectual e moral, que se dissemina no interior da elite governante.
Noções absurdas, como a de implantar alguma “democracia” em Bagdá pela força, para que essa “democracia” se espalhasse pela região, ou a ideia de que os EUA poderiam aterrorizar o Islã radical no Oriente Médio para forçá-lo à submissão, já não são mantidas sob equilíbrio pela ação da realidade ou pela experiência ou por discussão social racional baseada em fatos. Dados e fatos que não se encaixem nas teorias-fantasias-alucinações das elites políticas norte-americanas, dos generais, dos gerentes do aparelho de inteligência são ignorados e ocultados para que os cidadãos não os vejam. A capacidade dos cidadãos para tomar medidas autocorretivas é frustrada, para todos os efeitos. E no final, como em todos os sistemas totalitários, os cidadãos norte-americanos tornam-se vítimas da loucura do governo norte-americano, de mentiras monstruosas, de corrupção avassaladora e do terror de estado.
O poeta romeno Paul Celan capturou a lenta ingestão de um veneno ideológico – no caso dele, o fascismo – em seu poema “Fuga da Morte” [1]:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Nós, os norte-americanos, como em todos os estados totalitários emergentes, fomos mentalmente inseminados por uma amnésia histórica cuidadosamente orquestrada; uma imbecilidade induzida pelo estado-empresa norte-americano. Cada dia menos nos recordamos do que seja ser livre. E porque esquecemos, não reagimos com a ferocidade apropriada quando afinal toma-se conhecimento de que nossa liberdade nos foi roubada. As estruturas do estado-empresa têm de ser derrubadas. Seu aparato de segurança tem de ser destruído. E os que pregam e defendem o totalitarismo-empresa – incluídos aí os líderes dos dois principais partidos dos EUA, os fátuos acadêmicos norte-americanos, jornais, televisões, imprensa-empresa e jornalistas-empresa corruptos – têm de ser expulsos dos templos do poder.
Protestos em massa, nas ruas, e prolongada desobediência civil são a única esperança que nos resta aos norte-americanos. Se esse nosso levante fracassar – fracasso com o qual o estado-empresa conta – os norte-americanos estaremos escravizados.
Nota dos tradutores
[1] “FUGA DA MORTE”, Paul Celan
(trad. Modesto Carone, do livro: “Quatro mil anos de poesia”, J. Guinsburg e Zulmira Ribeiro Tavares, Ed. Perspectiva, 1969, SP, em:
Leite negro da madrugada nós o bebemos de noite
nós o bebemos ao meio-dia e de manhã
nós o bebemos de noite nós o bebemos bebemos
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Um homem mora na casa bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
escreve e se planta diante da casa e as estrelas faíscam ele assobia para os seus Mastins
assobia para os seus judeus manda cavar um túmulo na terra
ordena-nos agora toquem para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos de manhã e ao meio-dia nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
Um homem mora na casa e bole com cobras escreve
escreve para a Alemanha quando escurece teu cabelo de ouro Margarete
Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado
Ele brada cravem mais fundo na terra vocês aí cantem e toquem
agarra a arma na cinta brande-a seus olhos são azuis
cravem mais fundo as pás vocês aí continuem tocando para dançar
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia e de manhã nós te bebemos de noite nós bebemos bebemos
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita ele bole com cobras
Ele brada toquem a morte mais doce a morte é um dos mestres da Alemanha
ele brada toquem mais fundo os violinos vocês aí sobem como fumaça no ar
aí vocês têm um túmulo nas nuvens lá não se jaz apertado
Leite negro da madrugada nós te bebemos de noite
nós te bebemos ao meio-dia a morte é um dos mestres da Alemanha
nós te bebemos de noite e de manhã nós bebemos bebemos
a morte é um dos mestres da Alemanha seu olho é azul
acerta-te com uma bala de chumbo acerta-te em cheio
um homem mora na casa teu cabelo de ouro Margarete
ele atiça seus mastins sobre nós e sonha a morte é um dos mestres da Alemanha
eu cabelo de ouro Margarete
teu cabelo de cinzas Sulamita.
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Por Chris Hedges*, Truthdig, em “The Last Gasp of American Democracy”. Traduzido pelo coletivo Vila Vudu
[*] Chris Hedges, cuja coluna é publicada às segundas-feiras emTruthdig, passou quase duas décadas como correspondente internacional na América Central, no Oriente Médio, na África e nos Bálcãs. Escreveu reportagens em mais de 50 países e trabalhou paraThe Christian Science Monitor, National Public Radio, The Dallas Morning News e The New York Times, para o qual foi correspondente internacional por 15 anos.