Clóvis Moura investigava o passado histórico para compreender melhor as lutas do presente
Celso Furtado, tributário de idéias tradicionais – e mesmo do limitado marxismo brasileiro de então – comparava os escravos dos engenhos de açúcar “às instalações de uma fábrica”, pois eram comprados como elas e sua manutenção representava os custos fixos.
Rebeliões da Senzala contrapunha-se pioneiramente a essa visão do escravo como vítima passiva de seu destino. As visões dominantes da história de nosso passado escravista descreviam uma sociedade idílica, sem luta de classes e onde os conflitos entre senhores e escravos eram vistos como choques entre a cultura superior dos europeus, os senhores, e a barbárie dos africanos, os escravos, uma contradição que só seria resolvida quando os últimos fossem aculturados e, abandonando suas raízes originárias, adotassem a cultura dos dominadores. A principal fonte dessa visão rósea foi a obra de Gilberto Freyre, mas os ecos da visão senhorial podiam encontrados em quase todos os autores importantes de então, inclusive em marxistas como Caio Prado Jr. Foi preciso o esforço pioneiro de gente como Edison Carneiro, Clóvis Moura – com a sistematização definitiva feita em Rebeliões da Senzala – e da geração de estudiosos liderada por Florestan Fernandes, Octávio Ianni, Emilia Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, e tantos outros, para que essa visão idílica pudesse ser colocada em seu justo lugar de apologia da ordem dominante, nostálgica do império e do escravismo.
Rebeliões da Senzala é obra de um autor marxista, no sentido ortodoxo da palavra. Seu objetivo é investigar o passado histórico para compreender melhor as lutas do presente, e forjar os instrumentos conceituais que permitam, aos oprimidos de todos os matizes de nosso tempo, lutar pela igualdade entre os homens e por uma forma superior de organização da sociedade. Nesse sentido, Clóvis Moura partiu, contra aquelas visões tradicionais, de uma premissa teórica marxista fundamental: como em todas as demais sociedades divididas em classes, na sociedade escravista também existiu luta de classes.
Seu livro, Rebeliões da Senzala, é assim um marco, o primeiro painel das lutas escravas no Brasil, que assinala o declínio das velhas concepções sobre a passividade e a docilidade do escravo. Livro que abriu uma vertente que levaria, nos anos seguintes, a um reconhecimento aprofundado da luta escrava e sua importância para a dinâmica da sociedade brasileira. O número de estudos que surgiram, então, muitos inspirados diretamente pela sua leitura, levaram ao reconhecimento de que a história do negro no Brasil se confunde com a história do povo brasileiro.
As lições de Rebeliões decorrem disso. Ele nos ajuda a compreender como, a partir daquelas contradições de nosso passado histórico, o Brasil tornou-se o que é hoje. Em primeiro lugar, o caráter e a persistência de algumas características que, enraizados no passado colonial e escravista, perambulam ainda como autênticos mortos-vivos pelo presente de nosso país, na sobrevivência fantasmagórica do poder das oligarquias tradicionais, na pessoa de políticos como Antonio Carlos Magalhães e assemelhados, estes sim os verdadeiros dinossauros de nossa vida política e social. Foi a relevância numérica da escravidão, seu tempo de duração e a forma como foi abolida no Brasil que “determinaram a emergência do modelo do capitalismo dependente em que vivemos até hoje”, ensina Clóvis Moura. Aquelas elites, que dominaram durante todo o período escravista, na Colônia e no Império, conduziram e determinaram a forma como se deu a abolição em nosso país, e continuaram à frente do Estado e do governo sob a República. Contra essas elites, Rebeliões da Senzala é talvez o primeiro estudo onde a história do escravo (e do negro) brasileiro é colocada no seu justo lugar de história do povo brasileiro, e não de um segmento populacional à parte, específico e segmentado. Rebeliões reata, assim, a história do povo brasileiro de nossos dias com a história daqueles que, antes de 1888, mourejavam sob o instituto infame e desumano que foi a escravidão.
Ao aprofundar o conhecimento de nosso passado, e demonstrar que a história da história da escravidão faz parte do fio contínuo da história de nosso povo, Clóvis Moura aprofundou também, e inovou, o pensamento marxista e contribuiu para que aprofundar a consciência socialista e anti-racista das gerações seguintes de historiadores e militantes do movimento revolucionário e anti-racista brasileiro.
Uma dessas inovações é a lição fundamental, aprofundada nas obras que vieram depois de Rebeliões da Senzala, de que, em sociedades como as nossas, os conceitos de classe e raça são inseparáveis para a compreensão da situação das classes dominadas. Não se compreende a situação das classes dominadas no Brasil, hoje como no passado, sem que se leve em conta as duas dimensões essenciais da dominação, a classista e a racial. Elas imbricam-se, e conferem características próprias às relações de dominação em nossas sociedades.
Rebeliões da Senzala preparou também o rompimento com os esquemas fossilizados do oficialismo marxista de então, que impunham uma evolução das sociedades obrigatoriamente em cinco estágios sucessivos – comunidade primitiva, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo. Ao ajudar a resolver o problema que durante décadas atormentou os estudiosos do passado brasileiro – qual a natureza do modo de produção que aqui existia, capitalista ou feudal – Clóvis Moura deu importante passo para a compreensão de elas estavam ligadas a uma visão eurocêntrica da evolução das sociedades, que não se aplica ao Brasil, onde o passado foi escravista colonial e o modo de produção capitalista emergiu, depois de uma lenta transição, da desagregação do escravismo – e não do feudalismo, como na versão clássica européia.
Finalmente, um último aspecto que deve ser ressaltado: contra as análises tradicionais, que enfatizavam o caráter reflexo de nossa história, Rebeliões da Senzala mostrou que a formação social brasileira era um pouco mais complexa. Aqui, influência externa interage com a dinâmica interna da sociedade brasileira, e nossa história resulta da combinação destes dois elementos, a influência externa, colonial e neocolonial (e imperialista, hoje), com os interesses que dominam nossa sociedade.
Historiador marxista e veterano militante comunista, o objetivo da atividade intelectual e científica de Clóvis Moura é compreender o passado para fundamentar a ação transformadora no presente. Neste ponto, um elemento se destaca: o que é o conhecimento histórico, como se dá a intervenção consciente do homem na história, e qual é a natureza da consciência de classe. São temas marxistas fundamentais, não por um capricho teórico, mas por uma necessidade prática. A luta política orientada pelo marxismo não se fundamenta nos desejos arbitrários dos militantes, sendo orientada por teses que surgem da análise cuidadosa da origem da situação atual, análise em que os aspectos históricos combinam-se com os conjunturais, compreendidos como desdobramento de um processo histórico mais longo e que, portanto, só podem ser entendidos em sua inteireza a partir de sua gênese.
A história é, para os marxistas, a ciência no sentido mais profundo. A objetividade do processo histórico deve ser procurada na análise cuidadosa do desdobramento da aventura humana através do tempo. A lógica deste processo, que é a lógica da história, está inscrita na ação dos atores da história. Nesse sentido, a história não é linear ou previsível como, por exemplo, a trajetória dos astros no firmamento, e toda compreensão teleológica da história de uma história que seja autora de seu próprio destino mais próxima do providencialismo religioso com seu passado já pré-definido na mente eterna de um criador, do que propriamente do marxismo, que compreende a história como resultado da ação humana, que encara o processo histórico como conseqüência do entrechoque de vontades, interesses, culturas, preconceitos, nível de conhecimento, dos homens que são personagens desse processo.
Assim, o processo histórico não é externo à ação dos agentes sociais e às suas lutas, mas intrínseco a eles, determinado por eles e pela consciência histórica e social daqueles atores sociais. Isto introduz outro elemento fundamental na visão marxista da história, cuja compreensão em nosso país foi iluminada pelas conquistas registradas em Rebeliões da Senzala: trata-se da complexa questão da consciência de classe.
Clóvis Moura aborda esta questão de forma explícita nas conclusões de seu livro, onde diferencia os escravos que, ao rebelar-se, iniciavam o processo de formação de uma “classe para si”, daqueles que, conformados com seu destino e prostrados sob o escravismo, sem compreender sequer sua situação imediata, eram ainda componentes “de uma classe em si, simples objeto do fato histórico”.
Isto é o que diferencia o conteúdo da consciência dos atores sociais e imprime sua marca ao processo histórico. Clóvis Moura filia-se à longa tradição marxista, iniciada em 1847 com a publicação de Miséria da filosofia, onde Karl Marx, sob nítida influência hegeliana, diz que massa de trabalhadores de um país, que é uma classe em si, só na luta contra o capital “constitui-se em classe para si mesma”. Os interesses que ela defende tornam-se interesses de classe”, e a luta de classe “é uma luta política”. Mais tarde, em Dezoito Brumário de Luís Bonaparte, Marx reafirma esta tese: os camponeses se distinguem dos demais franceses, diz, por suas condições econômicas de existência, seu modo de viver, seus interesses e cultura, e por se opor às outras classes de forma hostil. Por isso, eles “formam uma classe”; entretanto, sem nenhuma união nacional ou organização política, diz Marx, eles “não formam uma classe”.
A “consciência histórica”, a consciência social, de classe, não se reduz à percepção imediata, pelo oprimido, de sua situação, mas envolve uma reflexão aprofundada sobre as relações sociais, que tem caráter científico e elabora uma compreensão mais avançada e mais complexa do que mera sensação imediata. Marx já havia notado, em O Capital, que a ciência seria desnecessária se houvesse coincidência entre essência e aparência.
Em conseqüência, uma compreensão do processo histórico com as ambições que a análise marxista se impõe não pode resumir-se à apreensão dos significados com que a ação social, em seu sentido mais amplo, aparece para a consciência dos próprios agentes históricos. É preciso ir além disso; compreender o grau de consciência que a própria ação indicava – e, daí, a distinção entre as formas ativas e passivas de resistência do escravo, aquelas denunciadoras de elementos iniciais de uma compreensão que poderia englobar as múltiplas e complexas relações em que o escravo estava inserido; estas, indicadoras de uma compreensão ainda limitada e incipiente, presa às vicissitudes do dia a dia e das imposições da sobrevivência e da acomodação. É preciso distinguir também, aqui, o sentido político que a ação escrava tinha, não – de novo – na forma como ele aparecia imediatamente ao escravo, mas na sua capacidade de formular um projeto mais global de reordenação social, capaz ou não de transcender os limites do escravismo. O sentido político não se define apenas subjetivamente, mas depende também das condições objetivas da ação e da compreensão da relação entre estes dois aspectos, subjetivo e objetivo. Sem esta distinção, a expressão sentido político da ação indica mais propriamente a boa intenção do analista de respeitar a individualidade do personagem da história do que o caráter de sua ação que, assim indefinida, pode oscilar da malandragem adaptativa, macunaímica, à vontade revolucionária manifestada pelos malês em Salvador, em 1835 – um leque amplo o suficiente para diluir a correta compreensão nas miríades de forma que o sentido político da ação pode assumir.
Finalmente, é aqui que está ancorada a ênfase, no conjunto da obra de Clóvis Moura, na rebeldia escrava, na consideração da ação dirigida contra a manutenção do escravismo como principal elemento para a compreensão das contradições fundamentais não só daquele modo de produção, como do capitalismo que o sucedeu, e das formas políticas que, sobreviventes do passado, estão ainda baseadas num autoritarismo gerado e nutrido no domínio da senzala pela casa-grande.
Entre Zumbi e Pai João, para usar a metáfora que ficou famosa, a ênfase recai sobre o herói palmarino. Não por um gosto arbitrário do heróico, nem pelo desconhecimento das complexas formas que as relações entre senhores e escravos assumiram. A própria continuidade da exploração escravista e colonial impunha uma combinação complexa entre coerção e convencimento, onde o chicote e os castigos físicos combinavam-se em doses variadas com pequenas concessões cotidianas, num jogo de pressões e contrapressões que a historiografia de nossos dias descreve com muita precisão.
Entretanto, trata-se aqui de captar, primeiro, aquela dimensão onde o caráter e as contradições do escravismo possam emergir com nitidez. A negociação possível naquele regime desumano podia disfarçar as agruras da opressão e permitir ao escravo estratégias de sobrevivência que minoravam sua sorte, e a ênfase neste aspecto parece baseada num contratualismo impróprio e fora de época, envolvendo partes absolutamente desiguais, o dono do escravo e o escravo por ele possuído, uma assimetria social e política indisfarçável. O conflito, ao contrário, parte cotidiana da vida do escravo, podia variar de grau e intensidade, de pequenas resistências diárias no trabalho, à morte de feitores e senhores ou à rebelião aberta, e sua eclosão quebrava todos os véus, dilacerava os disfarces que a negociação construía, opondo as duas facetas contraditórias e inconciliáveis daquela relação, o senhor e o escravo.
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JOSÉ CARLOS RUY, é jornalista, membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil, editor do jornal A Classe Operária