Conheci Clóvis Moura há quase 30 anos, em 1975. Eu era então um rapaz muito curioso sobre a história de nosso país, que tentava estudar meio às cegas. Já tinha lido um livro do Clóvis, Introdução ao pensamento de Euclides da Cunha, e sabia que era um autor marxista, condição que fazia aquele primeiro contato significar também, para mim, a chance de reencontrar o PCdoB, pois havia perdido minha ligação com o partido depois de uma série de prisões que ocorreram no ABC paulista nos anos anteriores e que, imagino, atingiram também o camarada que era meu contato.

Nasceu assim uma amizade que me honra. Pude trabalhar ao lado do Clóvis, quase que diariamente, até 1977. Através dele, obtive, de fato, notícias dos comunistas, de vez em quando pude mesmo ter acesso a algum documento clandestino, como edições de A Classe Operária (é preciso lembrar, para os mais novos, que a época era ainda de ditadura pesada!). O Clóvis Moura tornou-se, para mim, um orientador político e um grande professor. Não à maneira dos acadêmicos, mas da forma muito mais eficaz da transmissão de conhecimento e experiência através de atividades desenvolvidas em comum. E com tudo o que um professor tem direito: orientação de leitura, indicação de caminhos, crítica implacável das tentativas de atalhos e de caminhos que não dão em nada, etc.

Lembro-me, por exemplo, de minha tendência a seguir os autores consagrados pela universidade e pela mídia. Contra essa tendência, Clóvis insistia que o essencial é o conhecimento da luta de classes, não a história dos regimes políticos, dos governos, não a história da elite. O essencial, ensinava, é a história do povo brasileiro, que ainda não está feita. E indicava a riqueza de nosso passado, as lutas do povo, a luta de idéias que a refletia.

Era comum o Clóvis mostrar livros de autores brasileiros que não freqüentam listas de best sellers – entre eles, poetas como o telegrafista baiano Sosígenes Costa; ou como a gaúcha Lila Ripoll. Ambos comunistas e esquecidos pela mídia.

Também aprendi com Clóvis que não há teoria política fora do partido. O pensamento político precisa estar ligado, e a serviço, do instrumento da luta política que é o partido. Fora disso, é diletantismo, passatempo, jogo intelectual sem maiores conseqüências.

Porém, a maior lição que aprendi com Clóvis Moura é a de que a história do povo brasileiro se confunde com a história do trabalho no Brasil, e essa história é, principalmente, a história da escravidão e da luta dos escravos contra aquele estatuto iníquo. E que, decorrência disso, a história do negro no Brasil é a história do povo brasileiro, a história dos povos – negros, índios, mestiços – oprimidos primeiro pela colonização e pela escravidão e, depois, pelo capitalismo e pelo imperialismo.

Intelectual, jornalista, historiador, poeta, sociólogo, professor, escritor (como, quase sempre, definia-se).

Aquele que é seu livro mais importante – Rebeliões da Senzala, publicado inicialmente em 1959, reeditado em 1972, 1981 e 1988 – foi a primeira tentativa de apresentação sistemática da luta dos escravos em nosso país. Ele assinala o início de um esforço de compreensão teórica das lutas do povo brasileiro e do papel que o intelectual tem a desempenhar nela. De denúncia permanente do racismo e do estudo de seu significado numa sociedade como a nossa, que traz ainda muito vivas as marcas deixadas pelo escravismo.

Clóvis Moura era sobretudo um militante comunista do pensamento, da causa do socialismo. Ele ajudou a aprofundar a compreensão de nosso país, de nossa história e de nosso povo. Tinha verdadeira aversão aos estudiosos de gabinete, que tratam o povo como um objeto de pesquisa, distante e frio. Ao contrário, ele era parte da pesquisa que fazia, juntou-se ao povo, aos trabalhadores, aos operários, negros, camponeses, e colocou seu conhecimento e sua arte a serviço da libertação dos oprimidos. Nunca deixou cair essa bandeira. Era um intelectual indignado, mas também generoso, movido pela razão e também pelo coração.