Nos últimos tempos historiadores da escravidão tentam fazer uma “revisão” do que foi o modo de produção escravista no Brasil e as causas que determinam sua dinâmica, decadência e extinção. Haveria uma diferença flagrante entre a realidade da escravidão e aqueles autores que a interpretam de forma exagerada. Isto porque eram destacadas nessas obras as formas contraditórias de relacionamento senhor/escravo e expostos os métodos bárbaros usados para que a racionalidade do escravismo fosse mantida em seu nível de produção e a estabilidade social conservada.

Afirmam os “revisionistas” que a escravidão no Brasil foi benigna e proporcionava aos escravos áreas e níveis de negociação (social, cultural e mercantil) o que dava às duas partes em interação a possibilidade de estratégias compensadoras capazes de preservar o escravo dos seus rigores. Por outro lado, proporcionava aos senhores a tranqüilidade necessária para exercer seu papel e conseguir níveis adicionais de lucro. Tudo mais ou menos equilibrado e, se não harmônico, pelo menos consensual. Muitos chegam a dizer que os historiadores da escravidão do passado baseavam as suas conclusões nas obras dos viajantes do século XIX. Todos eles europeus, adeptos do trabalho livre e que por isso exageravam a situação do escravo no Brasil.

Em primeiro lugar é generalização inconsistente (talvez por falta de leitura dos seus textos) ver assim a posição desses viajantes. Em segundo lugar, os historiadores do passado, os quais analisaram a escravidão como um sistema cerrado de exploração econômica e extra-econômica, também recorreram a fontes primárias nos seus trabalhos, talvez até de forma mais diversificada e sistemática para tirarem suas conclusões do que os atuais. Muitos dos quais apoiados em uma única fonte generalizam as suas conclusões através da criação de tipologias.

Mas, o problema é outro, como veremos posteriormente. Nessa história “revisionista” não apenas as relações senhor/escravo devem ser revistas, como, também, os quilombos, pois, para eles, não foram focos de resistência social no processo global de luta de classes, mas módulos de negociação, entre senhores e escravos. Os quilombos seriam um centro de negócios, pois “Entre Zumbi e Pai João o escravo negocia” – Eduardo Silva. Era o quilombo participando ativamente do mercado.

Essa visão “revisionista” é uma postura ideológica (no mau sentido) contra a existência da luta de classes durante a escravidão. Ou, através de outra forma de expressão: é uma conciliação em nível teórico capaz de dar uma visão de relacionamento orgânico entre o senhor e o escravo, no qual suas funções se completariam sem contradições e conflitos relevantes. Quando muito seriam parcialmente divergentes. Ora, o funcionalismo já foi chamado de aplicação do liberalismo à sociologia. E é através desta posição funcionalista que procuram rever a escravidão no Brasil.

Com a vitória do neoliberalismo na esfera econômica, claro que haveria necessidade de sua extensão à esfera ideológica na sua totalidade. Hoje, os historiadores especialmente na área acadêmica, embora não concordem publicamente com o “fim da história”, invertem o problema e procuram entender o passado a partir de critérios neoliberais do presente. No caso particular da escravidão no Brasil é só ver a analogia que eles fazem entre o quilombo de ontem e o papel que eles atribuem aos sindicatos no presente. Ambos são centros de negociações, de barganha, de complementação orgânica do sistema, mas nunca instrumentos de resistência à exploração capitalista, no presente, e ao sistema escravo, no passado. É tão visível analogia entre uns e outros segundo a ideologia neoliberal que nos eximimos de dar exemplos.

Sobre o próprio tráfico de escravos a visão neoliberal tem uma teoria: os escravos que vieram para a Afro-América no fundo dos porões dos navios negreiros tiveram a oportunidade de criar uma nova civilização, foi uma espécie de convite para que eles escolhessem a sua parceria na construção da Disneyworld. Infelizmente, como todo processo social tem o seu preço. Muitos morreram na travessia ou nas fazendas trabalhando. Venceram os mais competitivos e o que conta são os resultados.

Essa ideologia neoliberal está cada vez mais visível na produção acadêmica. E é contra essa tendência de ver-se a História passada pelos valores neoliberais de hoje que insurge o historiador Solimar Oliveira de Lima com seu livro Triste Pampa – sobre a situação do escravo no Rio Grande do Sul. O autor abordou o problema da criminalidade de escravo, entre 1818 a 1833. Trabalhou com 112 processos criminais envolvendo 131 escravos-réus. E é sobre esse universo que ele desenvolve sua argumentação e tira conclusões que destoam, ou melhor, desmentem esse relacionamento empático entre senhores e escravos. No particular o professor Mário Maestri, apresentador do livro, situando-o na atual produção de trabalhos sobre a escravidão, escreve: “nos últimos anos, escreve-se abundantemente sobre a benignidade da escravidão brasileira. As relações entre senhores e trabalhadores escravizados basear-se-iam em acomodações, transigências e acordos sistêmicos. Os pretensos horrores dos castigos físicos seriam exageros compreensíveis dos abolicionistas. As condições de vida e trabalho dos cativos seriam superiores às geralmente descritas.

“Lentamente o cativeiro perde a pecha de regime despótico, baseado na violência e na coerção física, transmitida pela tradição e revelada por inúmeros estudos historiográficos. Em alguns casos chega-se a delinear passagens sociais escravistas quase bucólicas. Os cativos viveriam em família, com seus filhos, trabalhariam geralmente pouco e o castigo físico seria quase uma exceção” (p. 3).
Não é isto, porém, que o livro que estamos comentando demonstra.

O autor, analisando e interpretando o material disponível e no qual se concentrou, chega a conclusões bem diferentes. E, estudando a faixa etária desses escravos criminalizados, constata que eles tinham entre 14 a 70 anos. Neste conjunto, “Thomás, aos setenta ‘ainda era obrigado a ganhar seu jornal de 21 vinténs por dia’. Outros tinham defeitos físicos. Dentre as cicatrizes ‘eram arroladas tanto as adquiridas possivelmente, durante as jornadas de trabalho como os resquícios de doenças com ênfase na bexiga (varíola)’. Dentre os ‘defeitos’ apareciam calvície, ‘doença nos olhos’, falta de dedos ou dentes, deformação nas pernas” (p. 57).

Sobre a estabilidade e harmonia conjugal (casamentos entre escravos) escreve o autor “a desproporcionalidade entre os sexos foi uma constante no Brasil Colônia, de Norte a Sul. Com poucas mulheres disponíveis e grande quantidade de homens sequiosos de poder e sexo, não fica difícil imaginar o ‘caldeirão fervente’ que era o Rio Grande. Disputas por mulheres eram constantes e acirradas. A taxa de masculinidade nas charqueadas pelotenses, por exemplo, manteve-se, sempre superior a 80%; de 1760 a 1831, alcançou 82,6%; entre 1831 a 1850 chegou a 85,7%, e até o momento da Abolição, atingiu 87,8% segundo informação de Assunção”.

A análise total de escravos-réus pesquisados expõe uma massa de condenados à solidão, tolhidos da convivência familiar. “Homens e mulheres, fadados a uma vida solitária. Dentre as rés, só uma era casada. Com relação aos homens apenas dez conheceram o matrimônio, um dos quais viúvo. Os dados comprovam que 91% dos escravos viviam sozinhos. Desta forma tudo indica que buscavam soluções e alternativas para o exercício da sexualidade. Aliás, sobre as alternativas sexuais dos escravos, ver por exemplo Mott” (p. 69).

O autor analisa também as formas de violência do escravo diante da realidade conflituosa a que estava imerso, o comportamento momentâneo na hora do delito e as possíveis inibições capazes de produzir a agressão.

É um painel dramático que o autor apresenta apoiado nos textos dos processos criminais e que descortina uma realidade nada idílica ou paternal. Pelo contrário. A pena, de 100 a 1000 açoites foram aplicadas, em 85 escravos condenados. Essas penas somaram 40.950 golpes de açoites.
Evidentemente, muitos dos condenados devem ter morrido em conseqüência da execução das sentenças. A pena de açoite era executada diariamente em parcelas que chegavam até 100 por dia. Esse panorama da escravidão no Rio Grande do Sul vem demonstrar como ela não era nada benigna como estão tentando demonstrar os “revisionistas” da nossa história social. Como diz o autor “Não temos maiores informações sobre o comportamento do Poder Judiciário em outras regiões. Mas, ao que parece, o gaúcho foi um dos mais severos. Como descrito antes foram 40.950 açoites atribuídos como punição, equivalente à média de 2.925 por ano, durante o funcionamento efetivo da Junta, 14 anos” (p. 167).

Como se vê por este livro de Solimar Oliveira Lima, o qual surge num momento oportuno como restaurador da verdade, a escravidão no Brasil nada teve de benevolente, ao contrário dos historiadores e sociólogos de plantão que querem colocar uma maquiagem cor-de-rosa para cobrir a face da verdade. Essa visão neoliberal de ver o passado de nossa história social através dos valores do presente nada mais é, portanto, do que um subterfúgio daqueles que desejam esconder a realidade de nosso passado da mesma forma como procuram esconder a realidade atual. Para eles o Brasil foi neoliberal desde as suas origens.

Clóvis Moura

EDIÇÃO 53, MAI/JUN/JUL, 1999, PÁGINAS 80, 81