III. Gonçalves Dias e o Romantismo brasileiro

Dando sequência ao projeto teórico que anima este ensaio, cabe-nos passar agora a um segundo nível de aproximação: a análise do contexto nacional que emoldura a obra de Gonçalves Dias. Aqui perseguiremos os sentidos mais específicos — sociais, políticos e intelectuais — que informam as práticas do grupo romântico brasileiro em geral, e da aventura literária gonçalvina em particular. É o momento de perscrutarmos as vertentes principais dos mapas de sentido que orientam a experiência intelectual brasileira, em especial no campo das letras, em meados do século XIX.

O contexto da revolução romântico-nacionalista no Brasil

A Independência brasileira, embora tenha como marco o episódio conhecido como Grito do Ipiranga, começou bem antes e estendeu-se até bem depois. Trata-se de um processo cumulativo, cujos primórdios podem ser mais bem situados no episódio da transferência da corte portuguesa para o Brasil. Na ocasião, vale notar, as tropas napoleônicas já ocupavam toda a Europa Central. Mobilizavam, como vimos anteriormente, todo um aparato intelectual de resistência, servindo assim como elemento catalisador do desenvolvimento de culturas como a germânica. Em outra frente, esses mesmos exércitos napoleônicos empurravam para o Brasil a corte de D. João VI, impulsionando, ainda que por vias transversas, o esforço de construção identitária da jovem civilização brasileira.

A vinda da corte portuguesa e sua instalação no Rio de Janeiro contribuíram para a aceleração dos processos políticos que resultariam na Independência do Brasil, em 1822. A Independência teve papel crucial na conformação do caldo de cultura responsável pela eclosão do Romantismo brasileiro. Porém, uma vez mais, é necessário lembrar que o empreendimento independentista não se esgota em 1822. Fatos ocorridos posteriormente, como parte do mesmo processo, seriam igualmente decisivos à configuração da mentalidade romântica. Entre eles merece destaque o episódio da chamada Abdicação, quando, em abril de 1831, um movimento de cunho nativista derrubava D. Pedro I, colocando nas mãos dos próprios brasileiros a responsabilidade pela definição de seus destinos.

“Para os nacionalistas de 1831, se em parte estava em causa o problema das nossas liberdades constitucionais, postergadas por atos personalistas e de certo modo despóticos de Pedro I, no fundo, o que realmente se sentia é que perigava a autonomia do país, tais os compromissos que o Imperador progressivamente assumia com Portugal, tal o comprometimento dele com os que ainda não tinham aceitado francamente a Independência de 1822, e tais as ambições do mesmo Imperador, com respeito ao trono português, vago desde a morte de D. João VI, em 1826. Ante o periclitar de nossa Independência e das liberdades por que se lutara na Constituinte de 1823, só um caminho se via para a salvação da Pátria e de suas ideias liberais — impor a D. Pedro o compromisso com essa salvação e com essas ideias, ou forçá-lo à renúncia, para que o País, entregue aos brasileiros, definisse finalmente sua autodeterminação, e se realizasse, com liberdade, como nova nação sul-americana.” (AMORA, 1967, p. 76)

Após o episódio da Abdicação, já durante os primeiros anos do reinado de Pedro II, o Brasil definia os instrumentos de Estado responsáveis pela construção do novo sentido de brasilidade. Como destaca Soares AMORA (1967, p. 88), vinha do primeiro reinado a convicção a respeito da importância da ciência e das artes para a glória do Império. Essa convicção se tornaria ainda mais forte no segundo reinado, com D. Pedro II fazendo as vezes de um “déspota esclarecido”. É assim que, em 1938, nascia o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), e, com ele, o primeiro programa de construção de uma interpretação genuína da realidade brasileira.

Gonçalves Dias foi membro da instituição, de cujas reuniões participava também o Imperador. E foi por encomenda do próprio que o literato romântico escreveu, em 1852, seu célebre ensaio etnográfico Brasil e Oceânia, apresentado ao longo de nove audiências consecutivas. O trabalho, repleto de insights de grande originalidade, foi assim comentado por Manuel BANDEIRA:

“O professor Raimundo Lopes, no seu trabalho Gonçalves Dias e a raça americana, assinala as excelências dessa memória, admirado de que um homem ‘cuja visão de poeta envolveu em tanta fantasia a vida do selvagem, não se deixou levar no labor erudito, pela sedução de tão arrojadas hipóteses como as em que se emaranharam cientistas de valor e de uma educação mais técnica’. A intuição do poeta acertou em vários pontos confirmados posteriormente pelas pesquisas dos especialistas: assim acerca das migrações dos tupis, Métraux desenvolve as ideias expostas por Gonçalves Dias. Compreendera este ‘a importância do vale amazônico e especialmente da zona inferior paraense na formação cultural dos povos sul-americanos’. Para o professor Raimundo Lopes o capítulo mais forte talvez da memória é o que trata da decadência pré-colombiana dos índios. Sem acreditar que os nossos selvagens tivessem alcançado uma alta civilização, pensava Gonçalves Dias que eles tiveram cultura mais ampla e mais completa antes do descobrimento: ‘É o que a arqueologia brasílica, cujos achados são posteriores à sua morte, mostraria, em Marajó e alhures.’ A valorização do indígena, romântica nos poemas indianistas dos Cantos e n’Os timbiras, apresenta-se, segundo o juízo de Gilberto Freire, ‘com qualidades surpreendentes de equilíbrio científico’.” (in DIAS, 1998, p. 32)

Mas seria no campo da literatura, bem mais que no do frio discurso tecnocientífico, que o Brasil daria os primeiros passos no sentido da efetiva construção de um pensamento próprio, distante dos decalques europeus que haviam pontificado até então. O recurso à narração, com a maior liberdade expressiva que proporcionava, justificava-se plenamente. Mostrou-se este o “instrumento ideal para explorar a vida e o pensamento da nascente sociedade brasileira” (BOSI, 1992, p. 113).

É sob o signo dessa necessidade de construção ideológica da nova brasilidade que se construirá a literatura de extração romântica. Como assevera Sílvio ROMERO (1960, p. 915), “a maior vantagem da romântica entre nós […] foi afastar-nos da exclusiva influência da imitação portuguesa”.

De fato, a literatura anterior encontrava-se prenhe de decalques da realidade europeia, fato que não passou despercebido à sagacidade de um HERCULANO: “Nos poetas transatlânticos há por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que crescerem à sombra das suas selvas primitivas” (in DIAS, 1998, p. 100).

Embora Herculano — como ele próprio declara em seu artigo de apreciação sobre os Primeiros Cantos — não conhecesse Gonçalves Dias, suas palavras descreviam bem a situação do poeta maranhense que, crescido ao abrigo de nossas “selvas primitivas”, saberia de fato, como nenhum outro, cantar as belezas naturais e humanas de nosso país.

Passemos então a uma breve exposição das tendências ideológicas principais que orientaram os esforços, empreendidos naquele momento, de desenvolvimento dos princípios de uma cultura nacional. Trata-se, aqui, de expor as vertentes de significado que contribuíram para a materialização, naquele momento, de um pensamento original sobre nosso país e a gente brasileira.

O indianismo

Era compreensão comum entre os historiadores e literatos da primeira geração romântica, como Araújo Porto-Alegre e Gonçalves de Magalhães, que as culturas indígenas do Brasil poderiam ter fornecido contribuição mais efetiva para a constituição da nacionalidade brasileira, não fosse o fato de terem sido aniquiladas pelo colonizador português. De todo modo, no momento vivido pelo Brasil em meados do século XIX, quando se buscava a realização do “princípio nacional” nas letras e a afirmação da brasilidade, exaltar a tragédia indígena em nosso país revelou-se uma forma eficaz de diferenciação em face dos portugueses. Essa modalidade crítico-romântica cresceu de importância naquele período, abrindo espaço às tentativas nacionalistas de singularização da cultura nacional. Intentava-se apresentar o brasileiro como “raça própria”, distinta da lusitanidade e mesmo superior a ela — visto que muito mais prenhe de humanidade.

É assim que, desde o início dos anos 1830, uma voz geral de simpatia levanta-se em benefício dos índios, valorizando sua contribuição étnica, convocando-os a integrar-se em sua herança cultural ao esforço de construção dos princípios de uma cultura nacional. “O índio, fonte da nobreza nacional, seria, em princípio, o análogo do ‘bárbaro’, que se impusera no Medievo e construíra o mundo feudal: eis a tese que vincula o passadista da América ao da Europa” (BOSI, 1992, p. 110).

Embora tenha sido esboçado desde os primeiros românticos, esse programa só se realizará plenamente, em matéria poética, com Gonçalves Dias. É claro que merece destaque a realização, por um Gonçalves de Magalhães, do poema épico A Confederação dos Tamoios. Mas em Magalhães, não obstante o poder sugestivo de suas ideias literárias, a realização da tarefa ainda não estava madura, seja no plano da expressão, seja no plano léxico ou rítmico. Era ainda uma visão dos setores dominantes sobre a realidade das populações indígenas. Ou, como coloca Soares AMORA,

“[…] Magalhães, se não foi um ‘monstro sagrado’, foi, contudo, um elemento enérgico, inegavelmente eficaz na altura da definição de nosso Romantismo, e depois, ao longo da vida, um poeta que pelo menos satisfaz o gosto de nossa classe conservadora e socialmente dominante, em cujo ápice estava a Família Imperial, um gosto que, felizmente, nenhum papel teve no mais significativo da evolução do nosso Romantismo […]” (1967, p. 139)

Ocorre que a geração de Porto-Alegre e Magalhães, educada na Europa e, muitas vezes, dentro dos padrões do classicismo, encontrava-se ainda excessivamente alienada e espiritualmente distante da realidade brasileira. Eram parcas suas possibilidades de ir além de uma definição genérica de nosso programa romântico. A efetiva consecução desse programa seria tarefa da segunda geração do Romantismo brasileiro, nucleada por Gonçalves Dias.

Resta a pergunta: também Gonçalves Dias não fora educado ao longo de uma permanência de anos em Coimbra? Sim, mas ocorre que o contexto do sertão maranhense — bem mais eloquente neste sentido que a urbanidade carioca — já havia marcado em definitivo seu espírito e suas aptidões intelectuais, morais e sensitivas com os traços do contexto pátrio. Isso para não tornar a citar sua condição de mestiço esquálido. Alguém que cresceu por entre ruas, praças e sobrados do Rio de Janeiro ou de São Paulo jamais terá sido capaz de intuir a vivência popular no mesmo sentido e da mesma maneira. É o que sugere Manuel Bandeira citando Henriques Leal, ao tratar da infância do poeta caxiense:

“Menino vivo, inteligente e travesso, trazendo no sangue a herança da agilidade em todos os exercícios físicos no seio das matas, não tardou Gonçalves Dias em atestá-la e diz Antônio Henriques Leal que nenhum companheiro o batia ‘na luta, em trepar árvores, passarinhar e nadar’. Muito deviam impressionar-lhe a imaginação infantil, onde certamente terão lançado os primeiros germes da inspiração indianista, os bandos de índios mansos que de tempos em tempos desciam à vila para trocar por unidades da civilização as suas grandes bolas de cera, as suas plumas de variegados coloridos, as suas armas de combate e caça, arcos e flechas delicadamente trançados. Índios como os que vira Martius alguns anos antes, airosos e robustos, com brilhantes cilindros de resina ou abalastro no furo dos lábios, com grandes batoques de pau cobrindo a concha das orelhas, executando as suas danças selvagens ao rouco trombetear dos borés, ao estrépido dos maracás.” (BANDEIRA in DIAS, 1998, p. 15)  

É por isso que, ao comparar o indianismo de Gonçalves de Magalhães com o de Gonçalves Dias, afirma Soares AMORA que o primeiro “não estava em diapasão emotivo com o que era uma latente sensibilidade brasileira” (1967, p. 144). Por isso teria conseguido sensibilizar apenas pequenos círculos, constituídos por “companheiros de geração, intelectualmente mais modestos, e por velhos intelectuais, que, no espírito conservador e católico do Poeta, viram a garantia de uma reforma da literatura nacional, sem os abusos do espírito ‘libertino’ e da ‘anarquia’ romântica” (Id. Ibid.).

Gonçalves Dias, por outro lado,

“Porque era em todo o sentido um grande poeta e porque possuía uma sensibilidade lírica em simpatia com a sensibilidade do comum do homem brasileiro, com uma pequena obra, por timidez e modéstia posta ao amparo das ideias reformadoras de Magalhães, logrou criar, imediatamente, nos críticos e nos leitores […] a convicção de que, finalmente, a poesia brasileira havia encontrado seus rumos novos e nacionais, e seu grande poeta.” (Id. Ibid.)

A apreciação é seguida por BOSI quando este observa “na força de Gonçalves Dias indianista o ponto exato em que o mito do bom selvagem, constante desde os árcades, acabou por fazer-se verdade artística” (1992, p. 115). Esta é, de fato, a primeira impressão causada pela leitura de poemas como “O canto do guerreiro” e o “Canto do piaga”, cronologicamente as primeiras expressões do indianismo de Gonçalves Dias. Na última delas, em que se narram os infortúnios vividos pela civilização indígena com a chegada do homem branco, chama atenção o vigor da inspiração gonçalvina:

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja…
Esse monstro… – o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade –
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar Manitôs, Maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.

Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

No poema, a natureza, em comunhão com os homens que nela vivem, constitui a nação, a pátria, o lócus do “espírito do povo”. Tal espírito se materializa na linguagem própria da nação. Linguagem para a qual o índio, o elemento original, autóctone, nativo, oferece sua contribuição: a língua tupi, que só a pátria brasileira possui. É preciso cantar essa originalidade. E Gonçalves Dias o faz com inigualável maestria. Seu indianismo, tanto quanto o de José de Alencar, baseia-se na aspiração valorosa de fundar, sobre o solo fértil do mito, a visão de mundo e os anseios da gente brasileira. Na arte romântica brasileira, essa tendência expressou-se na tentativa de mitificação da saga indígena, o que lhe conferiu, por óbvio, colorações sentimentalistas.

Com o tempo surgiriam as primeiras críticas ao indianismo: a seus exageros, a seu sentimentalismo “pueril”, a sua “artificialidade”. Com efeito, é preciso reconhecer, com ROMERO, que “a chamada poesia puramente indiana é uma poesia biforme, que nem é brasileira, nem indígena” (1960, p. 921).

No entanto, apesar dos alegados exageros — cometidos menos pelos grandes mestres do que pelos poetas menores, “vulgarizadores” da tendência —, o indianismo “teve um grandíssimo alcance: foi uma palavra de guerra para unir-nos e fazer-nos trabalhar por nós mesmos nas letras” (Id. Ibid. p. 914). Nessa mesma visão, a poesia indianista foi “útil como um tônico, um abalo necessário imposto aos nervos de nossos burgueses para os arredar da mania das imitações europeias […]” (Id. Ibid. p. 925).

É claro que nem todos interpretam dessa forma. Durante anos Gonçalves Dias foi criticado por ter idealizado um “tipo ideal” indígena, uma espécie de “índio de gabinete”, distante da realidade concreta. A condição indígena narrada em verso e prosa só existiria na mente delirante do poeta. Para Maria Antonieta Vilela RAIMUNDO (2002, p. 13), o indianismo do poeta maranhense era fruto de seu “extremado individualismo”, em cujo âmbito o índio apenas seria seu “alter ego, uma dilatação do seu eu”, fruto de um “artificialismo subjetivo”. Segundo a autora, a identificação do gentio como herói só se explica “em uma perfeição cristalizada em mito”, na qual o sofrimento do índio é, na verdade, “o poeta que se sente importunado e agredido pela realidade e pela civilização que lhe impedem de dar largas à sua sensibilidade” (Id. Ibid.).

Na contramão dessa forma de conceber o indianismo romântico, o que queremos destacar é que o índio surge na poética de Gonçalves Dias não como “idealização abstrata”, não como decalque do indianismo francês ao estilo do “bom selvagem” de inspiração rousseauniana, e muito menos como cópia de um Chateaubriand. O índio é, aqui, o portador de um espírito originário em uma terra singular cuja expressão se dará pela inclusão do tupi dentro da estética do pensamento ocidental. O índio de Gonçalves Dias faz-se concreto pelo uso de sua linguagem e pela intuição do sentido profundo de suas crenças e costumes, vislumbrados hermeneuticamente. Não terá sido formulado a esmo o juízo de um Sílvio ROMERO, para quem Gonçalves Dias

“Pressentiu, adivinhou inteligentemente a importância das crenças fetichistas dos aborígines. Ele não ficou em a descrição puramente exterior dos costumes indígenas. Na memória Brasil e a Oceânia penetrou-lhes nas crenças, e, logo nos primeiros versos de Os timbiras, mostra que na poesia compreendia a importância daquela região psicológica.” (1960, p. 929)

Não se trata, pois, de ver no indianismo de Gonçalves Dias a simples manifestação de uma subjetividade afetada pelo “mal romântico”. Trata-se, antes, de concretizar na história da nação um dos elos fundamentais de sua formação e originalidade, uma marca poderosa na vivência comum de nosso povo.