O “naturalismo” romântico

Elemento adjacente ao indianismo, a valorização lírica da natureza brasileira também jogou papel de destaque na construção de nossa autoimagem. Trata-se, aqui, de mais um elemento a dar margem à singularização de nossa cultura.

“[…] Essa natureza se singularizava, em face da natureza de outros países, por um conjunto insuperável de belezas, desde o grandioso ao mais delicado […]; doutro lado, essa natureza, tão pródiga de cenários majestosos e até sublimes, e de mimos, sem par, inspirava, como fizeram sentir Magalhães e sobretudo Varela, uma religiosidade profunda, pelo que expressava do poder criador de Deus […].” (AMORA, 1967, p. 127)

A natureza já havia sido um elemento caro ao classicismo e ao arcadismo. Mas, quando observamos de perto a poesia árcade, é possível perceber o caráter paisagístico-decorativo que assumem naquela perspectiva os ícones da ordem natural. A natureza romântica possui outro caráter. Seu naturalismo pode mesmo ser considerado, se comparado às expressões árcades anteriores ou ao positivismo posterior, como um antinaturalismo.
Como vimos na primeira parte deste ensaio, a natureza romântica é expressiva, encarna os impulsos, as pressões anímicas do Eu poético. É um objeto que se torna, ele próprio, sujeito. Na famosa “Canção do exílio”, que tem por epígrafe um trecho da poesia de Goethe, está dito que

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

Há, nesses versos, o sentido profundo da unidade entre a natureza e o espírito que canta. O espírito do sujeito e a força da natureza interagem — como propôs Schelling — criando uma unidade em torno do belo. A natureza não é buscada exteriormente ao Eu lírico, não está fora da poesia, das palavras, mas dentro do poeta, da linguagem, do espírito. O poeta expressa a própria natureza na linguagem, porque ela está dentro dele, é uma ideia real, uma realidade ideal, pois o sujeito encontra no seu espírito sua própria terra, como se com ela se forjasse em unidade indissolúvel. Não existe aqui o ser humano universalista e abstrato do Aufklärung. O homem é, necessariamente, o homem de uma terra. Todos pertencem em última instância ao seu torrão natal. Esse torrão natal, por sua vez, é o próprio homem em comunhão com o cosmo. O homem concreto não se separa da terra, a qual carrega dentro de si, no âmago de sua subjetividade.

As palmeiras, o sabiá, as estrelas e as flores são sentidas e vividas no exílio, nas terras distantes. O Eu lírico vai para dentro de si para trazer a força dessa natureza pungente. É na sua alma que está o sabiá que canta. É o poeta que canta como o sabiá. Se “nossos bosques têm mais vida” e “nossa vida mais amores”, então há mais amores em nossos bosques! Há amor na natureza e na alma que faz parte dessa natureza! Se não há um sujeito abstrato que não pertença a uma terra, tampouco há uma terra que não pertença a um povo, a uma nação. A natureza que Gonçalves Dias canta no exílio é o Brasil, sua terra, seu povo — é ele mesmo como parte do povo brasileiro.

O sentimentalismo

O caráter intimista e sentimental tem sido ressaltado como traço marcante da psicologia do homem brasileiro. Nos quadros da mentalidade romântica, essa característica, na maioria das vezes, tomou a forma de um temperamento nostálgico, um culto desmedido do passado. Os poetas românticos entregavam-se facilmente à saudade e à melancolia. Com Gonçalves Dias não era diferente. Passava horas perdido de si mesmo, errando pelas vagas da memória, lamentando os tempos idos. “É que só lhe sorria à imaginação”, diz Manuel BANDEIRA, “o que lhe ficava longe, no tempo ou no espaço” (in DIAS, 1998,p. 18).

Para a crítica literária, neste caso em sua esmagadora unanimidade, esse seria um traço revelador do conservadorismo de nosso movimento romântico. A confusão entre amor e sofrimento, fruto da deformação ocasionada pelo mal du siècle, constituiria um ethos condenável, a marcar indelevelmente o espírito de nosso Romantismo. Mesmo na opinião abonadora de um Sílvio ROMERO, é impossível não perceber um quê de censura, como se Gonçalves Dias fosse um poeta sublime apesar de todo o sentimentalismo:

“O sentimentalismo é, por certo, uma das notas mais intensas do seu trovar; é preciso, entretanto, ser muito surdo para não ouvir que um intenso naturalismo americano, um certo misticismo religioso, e o calor e a efusão lírica juntam às notas monótonas daquele sentimentalismo as volatas e as fanfarras de uma poesia variada, ampla, serena, meiga, ousada e embriagadora” (1960, p. 918).

Há aqueles que chegam a pensar que, em países como o Brasil, onde a revolução burguesa ocorreu de maneira retardatária, segundo os padrões da chamada “via prussiana”, isto é, em um período no qual o projeto burguês já revelava sua face conservadora, o Romantismo teria-se inclinado para esse lado. Consequentemente, “o que poderia ter sido um alargamento da oratória nativista dos anos da Independência (Fr. Caneca, Natividade Saldanha, Evaristo)” (BOSI, 1992, 110) acabou por dar meia volta, compondo-se de colorações menos radicais e mais passadistas e sentimentais, fato que se teria refletido no caráter até certo ponto artificial do indianismo brasileiro,

“A ponto de o nosso primeiro historiador de vulto [Varnhagen] exaltar ao mesmo tempo o índio e o luso, de o nosso primeiro grande poeta [Gonçalves Dias] cantar a beleza do nativo no mais castiço vernáculo; enfim, de o nosso primeiro romancista de pulso [Alencar] — que tinha fama de antiportuguês — inclinar-se reverente à sobranceria do colonizador. A América já livre, e repisando o tema da liberdade, continuava a pensar como uma invenção da Europa.” (Id. Ibid.)

Aqui, novamente, para tentar seguir pensando como Bosi, “a análise do contexto é a regra de ouro”. Com efeito — e levando em conta neste momento apenas o contexto interno —, é preciso tomar cuidado com as análises “em bloco” de nosso Romantismo. Pois não é possível desconhecer que, perto de um Magalhães, Gonçalves Dias nada tem de elitista, podendo ser considerado, em larga medida, e malgrado toda a sua erudição, como um poeta de vigorosa inspiração popular. Nesse sentido, mesmo seu intimismo sentimental — o mesmo que poderíamos identificar, séculos mais tarde, na música de um Villa-Lobos ou de um Tom Jobim, porém aqui sem a mesma coragem de classificá-lo como “conservador” — diferencia-se gravemente do sentimentalismo que possamos encontrar em um Álvares de Azevedo, ou no próprio Magalhães.

Além disso, e agora num outro plano de análise, colocar simplesmente o sentimentalismo romântico — e, ademais, todo o intimismo que marca a cultura brasileira — na conta das “raízes conservadoras” de nossa civilização significa não enxergar a especificidade do Brasil no concerto das nações.

País jovem e promissor, o Brasil desempenhou, desde sempre, o papel de uma nação subordinada, que ainda hoje tenta desenvolver plenamente suas potencialidades. Assim, não é profícuo traçar um sinal de igualdade entre nosso “aristocratismo” e aquele que permeou (e permeia) a vida europeia. Nossas aristocracias jamais tiveram o poder e a influência das aristocracias europeias. No mesmo sentido, a civilização brasileira possui costumes e temperamento muito mais densamente populares que os de qualquer nação europeia de ontem ou de hoje. Nosso Volksgeist é mais profundo — nele se fundem os geister de três civilizações distintas (europeia, ameríndia e africana) — e, exatamente por isso, tanto mais fugidio, difícil de apreender.

É mais do que evidente que nosso país, durante o século XIX, “continuava a pensar como uma invenção da Europa”. O que é menos evidente é que ainda hoje isso aconteça. Senão vejamos muitas de nossas próprias apreciações sobre o Romantismo brasileiro. Não estariam elas, ainda, impregnadas de boa dose do melhor Iluminismo? Quando identificamos o “conservadorismo” romântico brasileiro com o sentimentalismo passadista não estaríamos no fundo pensando, como propôs Kant, que o conhecimento deve dissociar-se do pensamento, que o saber deve ser tomado como coisa distinta do gosto e da liberdade? Que a emoção é necessariamente obscura e só a razão seria “luminosa”? Que a racionalidade científica seria mais merecedora do estatuto de atividade “construtora” do espírito humano do que a ética ou a estética?

Poucos observam que o sentimentalismo de Gonçalves Dias traz à tona, na verdade, o melhor do antigo humanismo. Pois o sentimentalismo brasileiro, ao contrário de seu equivalente europeu, é uma explosão de vida! O que faz Gonçalves Dias nas letras é resgatar, em contraste com o espírito científico da Aufklärung, a Studia Humanitatis, a tradição da formação clássica, humanista, forjada ainda na Idade Média, que prefere tratar os homens não desde a ótica exterior e muitas vezes mecanicista das novas “ciências sociais” — bem ao gosto do então nascente positivismo —, mas como formação (paideia, no grego). Dá-se aqui importância à interpretação, ao sentido e à significação do que está sendo dito e vivido por uma comunidade efetiva. Por isso disciplinas como a retórica, a crítica literária, as artes e, principalmente, a tradição filosófica, prestam-se à denúncia de uma visão meramente instrumental da existência humana. É nesse contexto não iluminista, não liberal e não positivista que nos surge a concretude da poética de Gonçalves Dias.

Ao afirmar as Humanitatis como pressuposto teórico da tradução do tupi para a tradição latina, promovendo a fusão entre duas visões de mundo, o poeta maranhense não faz mais que seguir a tradição ibérica iniciada no Brasil com José de Anchieta (1534-1597), espírito renascentista, o primeiro intelectual formador da nacionalidade, e seguida pelo padre Antônio Vieira (1608-1697), pensador, filósofo, mestre de retórica e oratória. É a essa tradição humanista que se filia Gonçalves Dias. Daí seu apego teórico ao Romantismo e ao idealismo filosófico alemão, legítimos guardiões das tradições das ciências históricas do espírito — as Geissenswissenchaften.

Essa interpretação das ciências históricas do espírito, em certo sentido oposta aos ditames do Esclarecimento, foi desenvolvida como tradição de pesquisa, segundo o filósofo e hermeneuta alemão Hans-Georg GADAMER, ainda na Alemanha romântica de fins do século XVIII e início do século XIX. Para ele, essa tradição parte do fato de que

“[…] As ciências históricas do espírito, nos moldes como procederam do Romantismo alemão e se impregnaram do espírito da ciência moderna, administram uma herança humanista que as distingue de todas as outras investigações modernas e as aproxima de uma experiência completamente diferente e fora do âmbito da ciência, sobretudo a experiência da arte.” (2011, p.14 )

O Romantismo foi um poderoso movimento de ideias e reflexões principalmente na filosofia, nas artes e na redescoberta da história. Como soube perceber Gonçalves Dias, essa tradição pode servir ao desenvolvimento das potencialidades do povo brasileiro. Afinal, não é possível desconhecer, a respeito dos brasileiros, o fato de que sempre fomos muito mais prodigiosos no manejo das narrativas religiosas e mito-poéticas do que no campo do discurso lógico-racional. Por isso, sem desprezar a importância do discurso analítico do Aufklärung, cabe-nos também valorizar a tradição de Humanitas. Foi o que fez o poeta de Os timbiras, como bem destacou, em síntese biográfica, o escritor Josué MONTELLO: “Havia em Gonçalves Dias uma personalidade goethiana, no sentido de ser ele um espírito aberto à curiosidade universal, tanto voltado para as belas-letras quanto para as indagações de ordem científica” (1973, p. 14). Trata-se de uma visão integradora, que não considera a cognição como superior à intelecção ou, mesmo, como a melhor parte dela, mas, ao contrário, persegue um discurso integrador, baseado no homem concreto, que conhece, pensa, ama, crê e… transforma!

É de fundamental importância, neste momento da formação da brasilidade, resgatar a compreensão do humanismo como um momento da verdade do conhecimento. Uma verdade que, emanada das ciências do espírito, mostra, como na dialética de Hegel, que a vida ela mesma contém o grande valor de verdade de nossas teorias. Ou seja: esse valor de verdade não reside nas teorias em si mesmas, mas em sua relação de integração com o mundo.

Esse é o ponto de que parte Gonçalves Dias para apresentar o índio como elemento máximo da nacionalidade. Seu índio é idealizado? Sim e não. Na verdade, é em seu aspecto de ficção — a evocação mítica dos costumes e da língua de uma população genuinamente americana — que o índio gonçalvino se mostra mais real. Pois a verdadeira realidade não existe como “coisa em si”. Ela será sempre parte de um projeto político e ideológico — de um projeto humano. Assim, para citar um exemplo, a Guerra de Tróia que se encontra no poema homérico pode até ser interpretada na perspectiva da realidade histórica, mas quem assim proceder já não estará lendo Homero e nem percebendo o sentido simbólico que os antigos gregos fizeram impregnar naquelas palavras. Sobre isso, valha o que nos afirma o poeta português Fernando Pessoa:

O mito é o nada que é tudo.
O mesmo sol que abre os céus
É um mito brilhante e mudo.

Por isso a construção do mito indígena surge na poética de Gonçalves Dias como um significado que contém em si mesmo sua verdade. Isto é, não podemos separar o que está sendo dito do universo simbólico ao qual pertence o poeta, sob pena de fazermos desmoronar a ideia original da mensagem.

É por isso que em poemas como a “Canção do Tamoio” e “I-juca-pirama” (do tupi: “o que é digno de ser morto”) o ethos guerreiro dos índios, com suas virtudes de força, coragem e bravura, deve ser mantido inclusive no ritual antropofágico, desvelando beleza e dignidade onde a maioria dos europeus só enxergava selvageria e barbarismos. Nessa inversão de valores, que só os mitos podem proporcionar, ser devorado pelos inimigos é sinal de honra e méritos:

Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi.

Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci;
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.

[…]

Então, forasteiro,
Caí prisioneiro
De um troço guerreiro
Com que me encontrei:

[…]

Não vil, não ignavo,
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não coro
Do pranto que choro:
Se a vida deploro,
Também sei morrer.

Como esperamos ter demonstrado, nada mais distante da estética gonçalvina do que os arroubos liberais e o universalismo do Aufklärung. Por esse motivo, o sentimentalismo romântico de sua poesia, seja o de seu indianismo, seja o que encontramos na vertente mais propriamente lírica de sua poesia, merece ser valorizado como mais uma legítima contribuição, de cunho antiliberal e antipositivista, à paideia nacional brasileira.