Era uma vez o Brasil, terra de cobras e feras. Mais de feras do que de cobras. João Saldanha, o mais brilhante dos técnicos da Seleção Brasileira de futebol, quando montou o “esquadrão de ouro” de 1970 disse que cobra estava barato demais. Para ele, a maior fera é o homem. E, para ganhar a Copa, era preciso ter homens — feras em contato com o povo. “Havia aquele negócio de canarinho, ‘os onze canarinhos’, mas eu achava meio fraco para os objetivos”, disse Saldanha. Ele criou as “feras” para infundir um discurso otimista e transmitir ao time a alma do povo brasileiro. O futebol teria de ser jogado com as raízes brasileiras, e não como uma cópia europeia. Saldanha jogou por terra o mito, já forte à época, do fim da história para o futebol-arte.

Segundo o escritor Nelson Rodrigues, fã confesso de Saldanha, aquela seleção de feras desmentia os “idiotas da objetividade” — máxima cunhada por ele para definir o jornalismo artificial —, que defendiam a “velocidade burra” no lugar da arte. Saldanha provava que o futebol brasileiro autêntico, de toques, dribles e passes cadenciados, ainda era o melhor. O técnico escolheu os jogadores um a um, sem interferência de natureza política ou comercial. Com isso, legou a oportunidade para um profícuo debate sobre a raiz e a natureza do futebol brasileiro, permeado por elementos históricos, filosóficos e sociais — sempre, obviamente, com generosas pitadas de arquibancadas.

Quando se fala em raízes, está se dizendo que a história do futebol guarda simetria com a formação do povo brasileiro, que ganhava identidade nacional quando ele chegou por aqui. Não sem razão, diversos intelectuais apostaram no fracasso do futebol no Brasil porque era um esporte trazido por ingleses grã-finos na belle époque. Era, como diz o escritor uruguaio Eduardo Galeano, “um produto de exportação tão tipicamente britânico como os tecidos de Manchester, as estradas de ferro, os empresários do banco Barings ou a doutrina do livre comércio”. Aonde chegava, o futebol levava com ele os modos britânicos — o uniforme, o equipamento e o vocabulário eram importados da Inglaterra.

A causa do fenômeno era o progresso trazido pelos ingleses por meio de grandes investimentos em ferrovias, em infra-estrutura urbana, em energia. No final do século XIX e começo do XX, a economia mundial viveu grandes mudanças. A tecnologia da Revolução Industrial aumentou ainda mais a produção, o que gerou uma grande necessidade de mercado consumidor para esses produtos e uma nova corrida por matérias-primas. Era natural que a expansão do capitalismo difundisse os modos ingleses — entre eles o futebol.

Em outubro de 1848, uma associação de escolas reuniu-se no Trinity College, em Cambridge, e elaborou as famosas “quatorze regras de Cambridge”.Em 1863, representantes dos clubes de futebol ingleses fundaram a Football Association, a partir de uma reunião realizada na taverna Freemason’s, e redigiram um código de leis para o esporte, num total de treze itens. Essas regras sofreram sucessivas alterações até chegarem aos dezessete itens que formam hoje as leis do jogo. As regras foram aprimoradas, nasceram organizações semelhantes em outros países e no início do século XX o futebol afirmou-se como esporte de massas.

No final do século XIX, as federações inglesa, escocesa, irlandesa e galesa criaram o International Football Association Board (IFAB), responsável pelo monitoramento das leis de jogo. Em 1904, surgiu a Federação Internacional de Futebol Associado, mais conhecida pelo acrônimo Fifa, a instituição internacional encarregada de dirigir o futebol, com sede em Zurique, na Suíça. A Fifa passou a integrar o IFAB em 1913 e, hoje, o International Board continua a ser o guardião das leis do futebol.

Quando os ingleses desembarcaram no Brasil, trouxeram na bagagem toda essa formulação futebolística. A elite brasileira, como observou Eça de Queiroz, logo começou a imitar os ingleses e tentou erguer barreiras para manter o povo distante da bola. Mal sabia ela que o futebol já havia conquistado ampla popularidade entre os súditos de Sua Majestade Britânica. Segundo o sociólogo britânico Stephen Wagg, muitos clubes ingleses surgiram como times de fábricas — o Arsenal, por exemplo —, ou de igrejas — como o Aston Villa. Tornado religião laica do povo, na bela definição de Eric Hobsbawm, aonde o futebol chegava ganhava simpatia das massas.

Quando o paulista Charles William Miller voltou ao Brasil em 1894, depois de passar dez anos estudando na Inglaterra — país natal de seus pais —, trouxe na mala um livro de regras da Football Association, duas bolas, uma bomba de ar, um par de chuteiras, uma camisa do Banister Court School e outra do Saint Marys’s Football Club — onde se destacara como atacante.

Aos poucos, por trem ou navio, ao transpor fronteiras a bola tornava o mundo mais redondo por diversas razões. O futebol chegou ao Brasil quando o país respirava os novos ares da Independência e da Abolição. Os primeiros chutes vistos por aqui foram de marinheiros britânicos, frequentadores habituais da costa do país — de Belém do Pará ao Rio Grande, no Rio Grande do Sul —, e logo o futebol desencadearia uma intensa luta de classes. O Colégio São Luis, de Itu (SP), por exemplo, reunia filhos dos “barões do café” e professores em animadas partidas. Outro brasileiro que trouxe a experiência do futebol a colégios foi o carioca Oscar Cox, que conhecera o esporte durante seus estudos no Collège de La Ville, em Lausane, na Suíça. Mais jovens que estudaram no exterior espalharam a prática pelo Brasil.

Os clubes começaram a surgir, inclusive entre os trabalhadores. Em São Paulo, Charles Miller promoveu o primeiro jogo em 1895, reunindo funcionários da Companhia de Gás e trabalhadores da São Paulo Railway — a maioria formada por sócios do The São Paulo Athetic Club. Já existiam cinco clubes que promoviam o futebol: o São Paulo Athletic Club, a Associação Athletica Mackenzie College, o Sport Club Germania, o Sport Club Internacional e o Club Athletico Paulistano. Foram eles que criaram, em 1901, a primeira Liga de clubes do país, que começaria, no ano seguinte, a promover o Campeonato Paulista.

Ainda em 1901, o carioca Oscar Cox reuniu uma comitiva de futebolistas e viajou para São Paulo a fim de participar de duas partidas com um grupo paulista liderado por René Vanorden. Os dois empates — 1 a 1 e 2 a 2 —, segundo o cronista Leopoldo Sant’Ana, citado por Thomaz Mazzoni — um dos pioneiros do jornalismo esportivo brasileiro — em seu livro História do futebol no Brasil, de 1950, traduziram a cordialidade do encontro. “Foram verdadeiras festas ao ar livre, nas quais predominava o esporte pelo esporte, num ambiente da mais franca camaradagem”. Tudo isso sem se descuidar do “desenvolvimento físico da raça, aliado ao intercâmbio social entre a mocidade das duas grandes capitais brasileiras”.

O empate do primeiro jogo foi festejado por ambos os lados em um banquete na Rotisserie Sport, quando um brinde foi levantado ao rei Eduardo VII, da Inglaterra, e ao presidente brasileiro, o paulista Campos Salles. O encontro serviu para dinamizar o futebol nos dois estados. No Rio de Janeiro, Oscar Cox fundou, em 1902, o Fluminense Football Club, reunindo jovens que tentavam criar na cidade um espaço para manter os novos hábitos adquiridos no exterior. No mesmo ano, nasceu o Rio Foot-ball Club, considerado o primeiro clube de futebol da capital carioca, reunindo ingleses e brasileiros sem ascendência britânica.

Mas o futebol era ainda essencialmente elitista. Ser jogador de futebol era chique. O jornalista Mário Filho, outro pioneiro da nossa literatura futebolística, diz em seu livro O negro no futebol brasileiro que as partidas eram presenciadas por moças maquiadas, bem penteadas e elegantes em seus grandes chapéus emplumados, torcendo nas arquibancadas com lencinhos em suas mãos delicadas.

No gramado, os jogadores se apresentavam enfeitados com toucas de tricô e faixas de cetim. “O futebol prolongava aquele momento delicioso de depois da missa”, disse ele, na mais perfeita consonância com a etiqueta social da belle époque. Ao cair nas graças da juventude, era inevitável que o futebol chegasse às camadas sociais que não pertenciam aos seletos clubes e aos prestigiados colégios. Mário Filho diz que os jogadores entravam em campo, saudavam as moças nas arquibancadas, mas não repetiam seu hip-hip-hurrah “diante da geral, onde se amontoavam os torcedores sem colarinho e gravata”.

Mas os sem-colarinho e sem-gravata logo começaram a fundar seus próprios clubes. Em 1906, a cidade do Rio de Janeiro já contava com mais de trinta deles. O Clube Regatas Botafogo, o Clube de Regatas Flamengo e o Clube de Regatas Vasco da Gama abriram suas portas ao futebol. Em São Paulo, segundo Thomaz Mazzoni, “a semente da popularidade futebolística brotou logo prodigiosamente”. “O exemplo dos estudantes e dos moços ricos do Mackenzie, Paulistano etc. não deixou indiferentes os rapazes operários dos bairros, e daí surgirem pequenos clubes em pouco tempo. Assim, se consultarmos, por exemplo, os jornais de 1903 leremos em duas ou três linhas que ‘estão combinados para hoje alguns matches de football’ no ponto final do Tramway da Cantareira, entre os clubes A. A. Cruzeiro Paulista x A. A. Santos Dumont e S. C. Sílvio de Almeida x S. C. Guarani”, escreveu.

Mazzoni cita também o exemplo de Campinas, um dos polos da economia cafeeira do interior do estado de São Paulo, aonde o futebol chegou em 1897 pelos pés de estudantes do Colégio Culto à Ciência e encontrou abrigo no bairro da Ponte Preta. Ali, os rapazes limparam uma área de terreno junto aos trilhos da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, levantaram traves feitas de bambu e passaram a jogar. “Com o passar do tempo, outros rapazes, moradores do mesmo bairro, dos bairros vizinhos e mesmo da cidade, vieram juntar-se aos primeiros e o aglomerado de adeptos do esporte bretão foi pouco a pouco aumentando, e esse desenvolvimento a todos entusiasmou. Foi quando resolveram constituir-se em associação”, escreve Mazzoni. Nascia assim, em agosto de 1900, a Associação Atlética Ponte Preta.

Thomaz Mazzoni diz que os marujos realizavam seus jogos “nos capinzais desertos do litoral norte e sul do país”. Distantes do mar, afirma, alguns obscuros e mal-documentados, como uns tais mister Hugh e mister John, um em São Paulo e outro no Rio de Janeiro, juntaram operários brasileiros e funcionários ingleses em gramados improvisados.

Nasciam também os clubes de várzea — sinônimo de futebol humilde. Mazzoni relata que por volta de 1908 as modestas equipes da Pauliceia começaram a se reunir aos domingos na vasta área da Várzea do Carmo, próximo ao centro da capital paulista. “Nos vários campos improvisados, era um suceder-se interminável de partidas”, diz ele. A prática também se expandiu para terrenos baldios da cidade e surgiram vários clubes nas periferias. O futebol explodia em todo o país e rompia as barreiras geográficas e sociais que separavam a elite e o povo.

foto: Pedro Luís Osório, grande benemértio e patrono do Esporte Clube Pelotas, cortou a fita simbólica na inauguração de campo em 1908.

Outro exemplo de influência da popularidade do futebol na expansão desse esporte no Brasil ocorreu no estado do Rio Grande do Sul. O antropólogo Arlei Sander Damo diz que um clube formado na cidade portuária de Rio Grande, o Sport Club Rio Grande, aproveitou-se das conexões marítimas e principalmente ferroviárias da cidade com o estado para se tornar uma espécie de semeador de bolas. “A ‘cosmopolita’ Pelotas, integrada ao circuito internacional das turnês culturais, foi pioneira na incorporação dos negros ao futebol de ponta — através do E. C. Brasil, primeiro campeão gaúcho — e é, ainda hoje, uma das poucas cidades do interior do Brasil onde os torcedores dividem sua predileção clubística entre os times locais, sem maiores considerações pelos da capital”, diz ele.

O futebol só chegaria a Porto Alegre em 1903, quando os riograndinos realizaram uma partida entre duas equipes do Sport Club Rio Grande. Uma semana depois, a cidade já possuía dois clubes dedicados ao esporte bretão — o Fuss-Ball Clube Porto Alegre e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense, ambos originados entre a juventude e profundamente marcados pela presença alemã.

Contudo, ainda demoraria um bom tempo para o futebol provar que tinha muito a ver com o povo brasileiro. Graciliano Ramos, em texto de abril de 1921 publicado no jornal O Índio, da cidade alagoana de Palmeira dos Índios, disse que o futebol não pegaria como esporte de massa no Brasil porque havia uma diferença gigantesca entre os sertanejos e os habitantes das cidades:

“As cidades regurgitam de gente de outras raças ou que pretende ser de outras raças; nós somos mais ou menos botocudos, com laivos de sangue cabinda e galego. Nas cidades, os viciados elegantes absorvem o ópio, a cocaína, a morfina; por aqui há pessoas que ainda fumam limba. Nas cidades assiste-se, cochilando, à representação de peças que poucos entendem, mas que todos aplaudem, ao sinal da claque; entre nós, há criaturas que nunca viram um gringo. Nas cidades há o maxixe, o tango, o fox-trote, o one-step e outras danças de nomes atrapalhados; nós ainda dançamos o samba. Estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe, nada pega.”

Eça de Queiroz também via um certo tipo de brasileiro nas cidades com pouca identidade nacional:

“No Brasil, as cidades eram cabeças de ponte do mundo moderno. Grupos urbanos procuravam aproximar-se o máximo possível dos exemplos europeus de organização econômica, estrutura social, atitudes e modo de viver. Os brasileiros se habituaram a consumir comida estrangeira, a usar remédios patenteados para curar suas moléstias, a perfumar-se com novas essências, a encher suas casas com móveis estranhos e novidades em artigos sanitários, a iluminar as casas sem o uso do óleo, a ir e a retornar da cidade mais rapidamente, a vestir-se à moda estrangeira e a adotar novos tipos de divertimentos, tudo porque os europeus davam o exemplo.”

Ele atribuía o fenômeno à ostensiva presença dos ingleses no mundo. “Estão em toda parte, esses ingleses! Porque, por mais desconhecida e inédita que seja a aldeola onde se penetra, por mais perdido que se ache num obscuro canto do Universo o regato ao longo do qual se caminhe, encontra-se sempre um inglês, um vestígio de ingleses!”, afirmou. Para ele, os confins do mundo estavam recebendo o seu Times ou o seu Standart e formando a sua opinião não pelo que viam ou ouviam ao redor de si, mas pelo artigo escrito em Londres. “A alma voltada sempre para trás, para o home; abominando tudo o que não é inglês, e pensando que as outras raças só podem ser felizes possuindo as instituições, os hábitos, as maneiras que os fazem a eles felizes na sua ilha do Norte”, disse.

Lima Barreto também via o futebol como coisa essencialmente estrangeira. “O futebol é coisa inglesa, ou nos chegou por intermédio dos arrogantes e rubicundos caixeiros dos bancos ingleses, ali, da Rua da Candelária e arredores, nos quais todos nós teimamos em ver lordes e pares do Reino Unido”, escreveu na obra Feiras e Mafuás. Para ele, era um “jogo de elite” disputado por “moços ricos” em clubes fechados que não permitiam jogadores negros.

Graciliano Ramos, Eça de Queiróz, Lima Barreto e outros intelectuais interpretavam elementos do seu tempo. Na verdade, o futebol estava prestes a se transformar em patrimônio cultural do povo brasileiro. Em 1915, com a fundação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) — que mais tarde se transformaria na Confederação Brasileira de Futebol (CBF) —, a organização do futebol deu um salto importante no país. Nasceu ali a grande amálgama entre o sentimento nacional e a bola. A realização do terceiro Campeonato Sul-Americano de Futebol no Rio de Janeiro em 1919 fez explodir a nacionalidade futebolística brasileira.

foto: Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva os dois primeiros gênios do futebol brasileiro

A conquista daquele Campeonato Sul-Americano pela Seleção Brasileira, com um golaço do genial Arthur Friedenreich na final contra o Uruguai, despertou o país definitivamente para o futebol. Até o sisudo historiador Capistrano de Abreu se rendeu à crescente mobilização popular. Em carta dirigida à senhora Assis Brasil, ele no Rio de Janeiro e ela no Rio Grande do Sul, escrita às vésperas do jogo contra os uruguaios, ele disse: “O grande acontecimento desse aldeão é o foot-ball. O Brasil só tem pela frente o Uruguai. Vencerá? (…) Nunca assisti a uma partida, não posso fazer ideia de como é, e os termos técnicos soam-me aos ouvidos como a mais arrevesada das gírias; mas enquanto for independente de socorros federais ou municipais, contará com minhas simpatias incondicionais o jogo de foot-ball.”

A decisão, realizada dia 29 de maio de 1919, uma quinta-feira, às 14 horas, no novíssimo estádio do Fluminense, no bairro das Laranjeiras, fez o presidente da República, Delfim Moreira, decretar ponto facultativo nas repartições públicas da capital, enquanto os bancos e boa parte do comércio sequer abriram as portas. Ao meio dia, o bonde da Companhia Light em direção às Laranjeiras começou a circular a cada dez minutos. O estádio lotou. Os morros ao redor foram tomados pela população. A conquista do título levou os torcedores ao delírio. Era, na expressão do historiador Nicolau Sevcenko, a “descoberta de uma vocação”. Segundo ele, o jornal O Estado de S. Paulo publicou que “os jogadores brasileiros evidenciaram possuir as melhores qualidades que se podem desejar em ‘footballers’, qualidades que somente ele, e nenhum outro povo, reúnem todas”.

Na ocasião, o jornalista Américo R. Netto, editor da então recém-lançada revista Sports, anunciou o surgimento da “escola brasileira de futebol”. Segundo ele, todos os povos que jogavam futebol imitavam os ingleses, mas aos brasileiros cabia a honra e a glória de terem criado seu uso próprio, um sistema novo de jogar. O futebol já era, de fato, parte importante do movimento modernizador da nação brasileira. Mas a entrada de pobres, negros e trabalhadores em campo escandalizava os que se imaginavam donos do futebol. Tanto que ameaçaram criar regras para enquadrá-lo em seus limites dominantes.

No começo da década de 1920, a revista Sport Ilustrado relatou um distúrbio no campo do Botafogo de forma acentuadamente preconceituosa. “Há (…) em todos os clubs uma classe que sem fazer parte dos quadros sociais, é causa, quase que exclusiva, dos distúrbios verificados nos campos de futebol: a classe dos ‘torcedores’. Essa classe constituída em sua maior parte por indivíduos de baixa condição social, sem instrução e sem educação, não podendo, portanto, discernir com critério, a quem nada fica mal, pois a sua própria condição assim o permite. O problema é difícil, mas pode e deve ter solução, do contrário a polícia encarregará de resolvê-lo”, escreveu a publicação.

O texto dizia que a “famosa torcida” se avolumava a cada dia. E com ela o número de mal-educados. “Quem se der ao trabalho de fazer uma ligeira análise sobre esses pedidos de inscrição verificará facilmente que quanto menos elevada é a posição social de um bom jogador, quanto mais duvidoso pode ser o seu nível moral. Tanto maior o número de clubs que o inscreveram e com as circunstâncias de que esses clubs são tais que não escolhem elementos de ordem moral para os seus quadros, mas, apenas bons jogadores”, disse a revista.

A mesma publicação aplaudiu, em 1921, a decisão do presidente da Liga de Desporto Terrestre de Natal, Rio Grande do Norte, de promover “uma limpeza geral nos teams de club de foot ball”. “É muito melhor e mais bonito apresentar-se em campo um team de rapazes decentes, embora não saibam jogar, porém que tem educação esportiva e representação no meio social, aos que se tem apresentado mal educados”, completou.

O alvo principal das discriminações era o negro. As demarcações sociais remanescentes da escravidão aparecem com nitidez quando se percorre a história do futebol, ainda que rapidamente. O livro de Mário Filho é uma referência importante, mas a imprensa da época revela, em toda a sua dimensão, o submundo do futebol daquele tempo. Já em 1907, o jornal Gazeta dos Sports noticiou que o Bangu Athletico Club oficiou a Liga Metropolitana dos Sports Athleticos desligando-se da entidade. O motivo era um ofício da Liga comunicando que não seriam aceitos registros de “pessoas de cor”.

Uma polêmica envolvendo o Vasco da Gama e a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, em 1924, também mostra a força do racismo no futebol. O clube protestou contra a eliminação de doze atletas e obteve a resposta de que a Associação alimentava “a esperança de que para o futuro, elle (o Vasco) fizesse todos os esforços para constituir equipes genuinamente portuguezas, para uma demonstração sportiva das verdadeiras qualidades dessa nobre raça secular”.

foto: O Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha apresentaram ao mundo as credenciais da verdadeira arte futebolística brasileira

A Revolução de 1930 começaria a mudar mais radicalmente a face elitista do futebol, mas ela, ainda nos dias que correm, se mostra vez por outra. De toda forma, é significativa a constatação de que dois jogadores que seriam os maiores ídolos da “era Vargas”, Arthur Friedenreich e Leônidas da Silva, têm a marca do negro brasileiro. E que, mais tarde, dois negros, Pelé e Garrincha, lideraram o ciclo de ouro do futebol brasileiro.

A “era Vargas” abriu as portas para uma nova manifestação cultural brasileira. O reflexo disso no futebol pode ser visto nas páginas esportivas dos jornais, nos textos de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e José Lins do Rego. No prefácio do livro Copa Rio Branco: 32, de Mário Filho, José Lins do Rego escreveu: “Os rapazes que nos representaram, triunfalmente, em Montevidéu, eram no fundo um retrato da nossa democracia social, onde Paulinho, filho de uma família importante, se uniu ao negro Leônidas da Silva, ao mulato Gradim, ao branco Martim. Tudo feito à boa moda brasileira. Lendo este livro sobre futebol, eu acredito no Brasil, nas qualidades eugênicas dos nossos mestiços, na energia e na inteligência dos homens que a terra brasileira forjou, com sangues diversos, dando-lhes uma originalidade que será um dia o espanto do mundo.”

O Brasil passou a ter aquela identidade nacional descrita por Eric Hobsbawm. A nascente paixão nacional ganhou impulso nas décadas 1930 e 1940, quando o futebol passou a representar uma espécie de unidade simbólica poderosa. Nos anos seguintes, o Santos de Pelé e o Botafogo de Garrincha apresentaram ao mundo as credenciais da verdadeira arte futebolística brasileira. A conquista da Copa de 1958 selou definitivamente o encontro do futebol brasileiro com a arte. E em poucas sociedades uma competição esportiva específica assumiu as dimensões que a Copa do Mundo assumiu no Brasil. “Hoje, com a nossa impecabilíssima linha disciplinar no Mundial, verificamos o seguinte: o verdadeiro, o único inglês, é o brasileiro”, afirmou Nelson Rodrigues, fazendo um contraponto às palavras dos intelectuais que viam o futebol como coisa de Vossa Majestade.

Ninguém sintetizou melhor o futebol brasileiro daqueles tempos do que Nelson Rodrigues em sua clássica crônica sobre a famosa partida entre Santos e Milan pelo mundial interclubes. “O que procuramos no futebol é o drama, é a tragédia, é o horror, é a compaixão. E o lindo, o sublime na vitoria do Santos é que atrás dela há o homem brasileiro, com o seu peito largo, lustroso, homérico”, escreveu. À alusão a teoria clássica do drama, estabelecida por Aristóteles, Nelson Rodrigues agregou que a vitória do Santos valeu pela vitória do homem brasileiro.

O cronista aplicou a mesma lógica quando interpretou o significado do “escrete nacional” defendendo as cores brasileiras nas competições internacionais. Para ele, nessas ocasiões a pátria se apresenta em calções e chuteiras. Na sua ideia, o que está implicado é o sentido moderno da palavra nação. Ou seja: uma comunidade política que, para existir, precisa ser corporificada por signos que representem os laços de pertencimento e solidariedade.
Nelson Rodrigues entendia que o “escrete” fazia a nação se realizar plenamente. Em uma crônica de 1970, por exemplo, ele afirmou que os jogos da seleção são as únicas ocasiões “em que todos se lembram do Brasil, em que 90 milhões de brasileiros descobrem o Brasil”. E provocou: fora as esquerdas, que acham o futebol o ópio do povo, todos os outros brasileiros se juntam em torno da seleção. O “escrete”, nas competições internacionais, era o “mito” da nação brasileira, revelando por intermédio dele as qualidades do agente representado, o homem brasileiro.
Essa formulação começou a se desenvolver com a conquista da Copa do Mundo de 1958, quando – segundo Nelson Rodrigues – a seleção brasileira venceu o complexo de vira-latas. Ele não menciona, mas é preciso considerar alguns aspectos já então incorporados ao futebol brasileiro — como a criação de um estilo próprio de jogar. A influência de elementos da cultura negra, como o samba e a capoeira, era uma marca da identidade do mencionado “homem brasileiro”. Em outra crônica, Nelson Rodrigues elegeu o negro Didi como símbolo da vitória brasileira de 1958 — antes, o brasileiro era bom de bola, mas “frouxo como homem”.

Com a conquista, não era só a imagem de Didi que se transformava. Mas, sobretudo, a imagem que o brasileiro fazia de si próprio. “A partir desse mundial, o brasileiro começa a ter uma nova imagem de Didi. Repito: passa a ver Didi como um homem de bem. Pois nós sabemos que nenhum escrete levanta um campeonato do mundo sem extraordinárias qualidades morais. De nada adianta o futebol se o homem não presta. O belo, o comovente, o sensacional do triunfo de ontem está no seguinte: foi, antes de tudo, o triunfo do homem”, escreveu. Pelé e Didi mostraram em campo, além de virtuoses da bola, ser também bravos, sérios e responsáveis como os europeus.

Essa mesma definição ganhou formas mais sofisticadas quando o Brasil conquistou o bicampeonato mundial em 1962. As magistrais atuações de Garrincha fizeram Nelson Rodrigues dizer que ele havia jogado um futebol lúdico e dionisíaco. Em uma crônica antológica, na qual comenta o jogo final contra a Tchecoslováquia, Nelson Rodrigues se concentra nos minutos finais, quando Garrincha, depois de dar um espetáculo em campo, parou diante de alguns adversários:

“É de arrepiar a cena. De um lado, uns quatro ou cinco europeus, de pele rósea como nádega de anjo; de outro lado, feio e torto, o Mané. Por fim, o marcador do brasileiro, como única reação, põe as mãos nos quadris como uma briosa lavadeira. Num simples lance isolado, está todo o Garrincha, está a todo o brasileiro, está a todo o Brasil. (…) O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem. Aqueles quatro ou cinco tchecos, parados diante de Mané, magnetizados, representavam a Europa. Diante de um valor humano insuspeitado e deslumbrante, a Europa emudecia, com os seus túmulos, as suas torres, os seus claustros, os seus rios.”

As crônicas de Nelson Rodrigues não são teses produzidas com a objetividade do trabalho acadêmico. São parte do mundo do futebol, escritas no calor dos fatos comentados. Os leitores eram as mesmas pessoas que iam aos estádios, que acompanhavam os jogos, que conversavam sobre futebol. Elas interagem muito mais com a realidade do que a predominância das ideias acadêmicas de maior circulação. O antropólogo Roberto Da Matta, por exemplo, no ensaio Futebol: ópio do povo ou drama de justiça social? afirma que o futebol no Brasil é uma “metáfora da própria vida”, uma “dramatização” em que a sociedade representa seus dilemas.

Do mesmo modo, Anatol Rosenfeld, no artigo O futebol no Brasil, considera o futebol uma forma de “expressão simbólica”, ou “representação organizada”, em que a sociedade brasileira expia impulsos e tensões da vida social por meio de um processo de catarse. São formulações que descartam o modo como os sentidos associados ao futebol pelo imaginário coletivo brasileiro são produzidos.

Não há dicotomia entre academia e arquibancada, mas a essência do “homem brasileiro” descrito por Nelson Rodrigues tem muito mais a ver com o futebol como arte de uma nação, o motivo principal de sua enorme popularidade no país.


* Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e colaborador da Princípios

Publicado originalmente na revista Princípios, edição 127 (outubro-novembro/2013).