A desigualdade americana
Em seu livro A Consciência de um Liberal, Paul Krugman apelidou de “Grande Compressão” o período de intensa redução das desigualdades encravado entre os anos 30 e início da década dos 60. Esse fenômeno foi sustentado por quatro forças: 1. A sindicalização incentivada por Roosevelt impulsionou a elevação dos salários reais. 2. O Social Security Act de 1935 fortaleceu o consumo de massa ao proteger os mais débeis dos problemas criados pela insegurança econômica. 3. A elevação da carga tributária e o caráter progressivo dos impostos transferiram renda dos mais ricos para os mais pobres e remediados. 4. A baixa intensidade da concorrência externa permitiu às empresas manter os investimentos no âmbito doméstico e abiscoitar os lucros proporcionados pela sustentação da demanda interna.
A arquitetura capitalista desenhada nos anos 30 sobreviveu no pós-Guerra e, durante um bom tempo, ensejou a convivência entre estabilidade monetária, crescimento rápido e ampliação do consumo dos assalariados e dos direitos sociais. Entre 1947 e 1973, na era do Big Government, como a denominou o economista keynesiano Hyman Minsky, o rendimento real da família americana típica praticamente dobrou. O sonho durou 30 anos e as classes trabalhadoras gozaram de uma prosperidade sem precedentes.
A pretexto de reduzir o papel do Estado na economia, as políticas neoliberais destravaram as forças da desigualdade. Nos Estados Unidos, entrou em voga nos anos 80 a “economia da oferta” e sua filha dileta, a curva de Laffer, que preconizavam a redução de impostos para os ricos “poupadores” e empresas. Os adeptos da supply side economics decretaram a ineficácia dos sistemas de tributação progressiva da renda, que, segundo eles, promoviam o desincentivo à produção e à poupança geradora de novo investimento. A macroeconomia de Ronald Reagan defendia a tese do “gotejamento”: as camadas trabalhadoras e os governos receberiam os benefícios da riqueza acumulada livremente pelos abonados empreendedores sob a forma de salários crescentes e aumento das receitas fiscais.
A enrolação do gotejamento não entregou o prometido. A migração da grande empresa para as regiões de baixos salários, a desregulamentação financeira e a prodigalidade de isenções e favores fiscais para as empresas e para as camadas endinheiradas não promoveram a esperada elevação da taxa de investimento no território americano e, ao mesmo tempo, produziram a estagnação dos rendimentos da classe média para baixo, a persistência dos déficits orçamentários e o crescimento do endividamento público e privado. A procissão de desenganos foi acompanhada da ampliação dos déficits em conta corrente e da transição dos Estados Unidos de país credor para devedor.
A crise da classe média americana não é fruto da Grande Recessão, iniciada em 2008, mas é um fenômeno de longo prazo. Desde 1973 até 2010, o rendimento de 90% das famílias americanas cresceu 10% em termos reais, enquanto os ganhos dos situados na faixa dos super-ricos – a turma do 1% superior – triplicaram. Pior ainda: a cada ciclo a recuperação do emprego é mais lenta e, portanto, maior é a pressão sobre os rendimentos dos assalariados.
Os lucros foram gordos para os senhores da finança e para as empresas empenhadas no outsourcing e na “deslocalização” das atividades para as regiões de salários “competitivos”. Obama e seus economistas salvaram Wall Street da derrocada financeira, mas não responderam às demandas dos americanos atormentados, em sua maioria, pelas perspectivas de um crescimento pífio do emprego e dos salários. A lenta recuperação da economia americana não consegue oferecer aos seus cidadãos soluções críveis para atenuar as desgraças da anomia social e da destruição dos nexos básicos da sociabilidade, inclusive os familiares.
Mobilidade do capital financeiro e, ao mesmo tempo, centralização do capital produtivo à escala mundial. Essa convergência suscitou os surtos intensos de demissões de trabalhadores, a eliminação dos melhores postos de trabalho, a maníaca obsessão com a redução de custos.
Não se trata de nenhuma inevitabilidade tecnológica. Foram, de fato, gigantescos os avanços na redução do tempo de trabalho exigido para o atendimento das necessidades, reais e imaginárias, da sociedade. Mas os resultados mesquinhos em termos de criação de novos empregos e de melhora das condições de vida só podem ser explicados pelo peculiar metabolismo das economias capitalistas, sob o império da competição desbragada e das finanças globais desreguladas.
Publicado em Carta Capital