Duas visões diplomáticas para a recusa da Ucrânia ao acordo com o bloco europeu
Por que aderir à Europa é ruim para a Ucrânia, por Fabiano Mielniczuk
Desde o fim da guerra fria, o Ocidente, representado pela OTAN e pela UE, iniciou sua expansão para a área de influência da antiga URSS. A justificativa oficial baseava-se na hipótese de que a segurança do continente dependeria da implementação de regimes com democracia política e economia de mercado na região, tendo em vista que “democracias não lutam contra democracias” (Há uma corrente em relações internacionais chamada de teoria da paz democrática, que postula que esses regimes criam laços duradouros de paz entre seus vizinhos, fomentados pelo comércio e pelos controles dos civis sobre os militares, entre outros aspectos).
Todavia, na prática, o processo de expansão representou a manutenção das políticas de contenção à URSS aplicadas agora à Rússia, uma vez que esse país foi deixado de fora dos arranjos institucionais pensados pelos ocidentais. Aliada a uma grave crise econômica dos anos 1990, tal exclusão fomentou o anti-ocidentalismo na população russa, sentimento importante para se entender a legitimidade de iniciativas antagônicas aos interesses ocidentais por parte do governo russo.
E no meio do caminho tinha a Ucrânia! Desde sua independência a Ucrânia soube se valer de sua posição intermediária e utilizou a Europa e os EUA para contrabalançar a influência russa e a Rússia para contrabalançar a influência dos Ocidentais.
A Rússia e a Ucrânia quase entraram em guerra nos anos 1990 devido aos movimentos separatistas da Criméia e às disputas em torno da base militar de Sevastópol e do arsenal nuclear, ambos legados do período soviético. Nesse período, o apoio dos Europeus e dos norte-americanos foi fundamental para que os ucranianos equilibrassem as relações com a Rússia.
No final dos anos 1990, com a desilusão dos ucranianos a respeito dos pífios resultados econômicos obtidos com o apoio (ou falta de apoio) ocidental, ocorreu uma inflexão pró-Rússia. Os generosos subsídios oferecidos por esse país ao setor energético ucraniano trouxeram conforto para uma elite política que pretendia se manter no poder por meio de práticas condenáveis.
Com a crescente e justificável insatisfação popular em relação à administração Kuchma e a ativa participação de governos ocidentais na Revolução Laranja, inaugurou-se uma nova fase europeia na Ucrânia, tendo Victor Yushenko a frente do país.
Novamente, frente à falta de assertividade da Europa em promover mudanças econômicas no país, o apoio da população ao pró-ocidentalismo do governo esmoreceu e a Ucrânia voltou a ter uma postura mais ponderada, com a eleição democrática de Yanukovich, mais próximo da Rússia. Yanukovich mantinha a clássica postura de barganhar com os dois vizinhos até que os europeus forçaram uma opção unilateral pela Europa.
Os motivos para a postura intransigente da UE não fazem parte do escopo desse texto. O que ocorre hoje é que a Europa está pressionando a Ucrânia para aceitar algumas de suas imposições políticas (a libertação de Yulia Timoshenko, antiga aliada de Yushenko e opositora de Yanukovich) em troca de benefícios econômicos.
Nesses termos, seria impossível à adesão ao acordo de livre comércio com a Europa e o governo da Ucrânia se voltou para a Rússia para neutralizar essa pressão. A redução dos preços da energia vendida pela Rússia para Ucrânia após o anúncio de que a Ucrânia ingressaria na União Euroasiática é um resultado desse jogo de barganhas.
A partir dessa breve retrospectiva, cabe sugerir que a Ucrânia mantenha sua posição de autonomia relativa frente a seus vizinhos, pois a adesão formal à Europa ou a um bloco controlado pelos russos diminuiria sua capacidade de barganha para alcançar seus interesses nacionais.
(*) Fabiano Mielniczuk é doutor em relações internacionais pelo IRI/PUC-Rio e diretor da Audiplo: Educação e Relações Internacionais
A má escolha de Yanukovich, por Daniel Edler
A decisão de Viktor Yanukovich de abandonar as negociações para um acordo de associação com a União Europeia remete a um debate de natureza política e econômica que tem marcado a história recente da Ucrânia.
Apesar de passadas mais de duas décadas desde que Kiev conseguiu a independência frente à Moscou, as relações entre os dois países ainda são viscerais e, por vezes, conflituosas. Isso se dá por dois motivos: (1) a política externa agressiva da Rússia em relação a seu “exterior próximo”, que busca evitar a perda de influência nas ex-repúblicas socialistas soviéticas; e (2) a presença de uma importante diáspora russa na Ucrânia – concentrada na porção leste do país – que pressiona por uma postura mais próxima ao vizinho.
Além da dimensão política, é possível encontrar fatores econômicos que complexificam esta relação. Ucranianos necessitam de bons termos comerciais com a Rússia, destino de cerca de 26% das exportações e origem de quase 33% das importações. Além disso, o processo de desindustrialização recente (este setor encolheu 5% em 2013) aumenta a dependência e torna o país mais suscetível a pressões comerciais do regime de Putin. Não faz muito tempo desde o último inverno em que a Rússia cortou o envio de gás.
Apesar de Yanukovich ter o apoio da diáspora russa, este percebia a importância da diversificação das relações comerciais. O acordo com a UE se inseria nesta pauta, ganhando urgência graças à impossibilidade de acesso a créditos do FMI, ao déficit na balança comercial (pelo oitavo ano seguido) e ao fraco desempenho do PIB.
No processo de negociação com Bruxelas, o governo ucraniano conseguiu garantir salvaguardas para alguns setores e um longo prazo para adaptação de suas empresas. Além de acesso ao mercado europeu, seriam disponibilizados créditos de 610 milhões de euros, somados aos 120 milhões já previstos na Política de Vizinhança. O acordo também incluía um aumento de investimentos, superando os atuais 634 milhões de euros. Por fim, havia a previsão de subsídios no valor de 200 milhões de euros para a modernização de setores sensíveis da economia ucraniana.
Indo além, o acordo de associação não era excludente em relação à união aduaneira proposta pela Rússia. Nada diminuía a liberdade de Kiev de promover a redução de tarifas com outros países.
Em suma, o acordo com a UE era assimétrico, mas em favor da Ucrânia, dando a esta tempo e recursos para adaptação e garantindo sua liberdade para promover relações comerciais com outros parceiros. Avaliações externas calculam que o PIB ucraniano cresceria 6% em função do maior fluxo comercial com a UE.
Apesar disso, Yanukovich esnobou Bruxelas. Usou como desculpa que o livre-comércio seria prejudicial para sua indústria e estaria atrelado a demandas políticas inaceitáveis. De fato, a UE pressionou para o fortalecimento das instituições democráticas e para a libertação da líder oposicionista, Yulia Tymoshenko, mas nem isso o governo ucraniano precisou fazer.
Pesquisas apontam que 45% da população apoia melhores relações com a Europa. Apenas 14% preferia que o país ingressasse no bloco econômico formulado por Moscou. No dia 21 de novembro, com o anúncio da suspensão da assinatura do acordo com a UE, Yanukovich tomou uma decisão controversa. No dia seguinte, milhares de pessoas foram às ruas de Kiev exigindo sua renúncia.
Com a inesperada interrupção do diálogo, a Ucrânia sucumbiu a pressão russa e aceitou o destino de dependência econômica. O acordo com a UE não era uma panaceia, mas o caminho escolhido pelo governo não contribui para o aumento da autonomia do país.
(*) Daniel Edler é fellow em estudos europeus do Centro de Relações Internacionais, CPDOC/FGV