“É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro (…). A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação” (trecho do Ato Institucional nº 1, decretado pela junta militar em abril de 1964).

“A primeiro de abril o que houve foi um golpe militar fascista, com toda a sequência de arbitrariedade, despotismo e opressão” (Carlos Marighella. Por que resisti à prisão, 1965).

Até a década de 1990 existia um amplo consenso entre os principais intelectuais e organizações marxistas brasileiros em relação ao caráter do golpe e do regime implantado no país em março de 1964. Poucos na esquerda questionavam que havíamos tido em 1º de abril de 1964 um “golpe militar” e que este, por sua vez, implantara uma “ditadura militar”. As maiores críticas a essas conceituações vinham dos liberais que, muitas vezes, preferiam usar os termos regime e governos autoritários, de carga semântica mais suavizada.

Atualmente cresceu o número daqueles que utilizam termos como “golpe civil-militar” e “ditadura civil-militar”. Talvez, o primeiro intelectual de esquerda a problematizar o uso do termo “ditadura militar” tenha sido René Armand Dreifuss. O seu livro 1964: a conquista do Estado é fruto de uma exaustiva pesquisa em torno do papel dos grandes empresários, vinculados ao complexo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais/ Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IPES-IBAD), na conspiração que levou ao golpe e nos próprios governos “autoritários” que se seguiram.

Escreveu ele: “Apesar de a administração pós-1964 ser rotulada de ‘militar’ por muitos estudiosos de política brasileira, a predominância contínua de civis, os chamados técnicos, nos ministérios e órgãos administrativos tradicionalmente não-militares, é bastante notável (…). Um exame mais cuidadoso desses civis indica que a maioria esmagadora dos principais técnicos em cargos burocráticos deveria (em decorrência de suas fortes ligações industriais e bancárias) ser chamada mais precisamente de empresários, ou, na melhor das hipóteses, de técnico-empresários”. E vai mais longe ao afirmar que “os empresários e técnico-empresários do IPES controlavam os mecanismos e processos de formulação de diretrizes e de tomadas de decisão no aparelho de Estado”. Menos, é claro, a presidência da República e a chefia das Forças Armadas – e isso não é algo trivial.

Nesta obra, curiosamente, ele não usa os termos ditadura ou golpe. Prefere palavras menos carregadas, como intervenção, administração e governo autoritários. Contudo, se Dreifuss tem dúvidas quanto ao caráter “militar” da “administração”, parece não tê-las quanto ao caráter da “intervenção” ocorrida em primeiro de abril de 1964. Sobre isso escreveu: “As classes capitalistas se ‘unificariam’ sob uma única liderança – o complexo IPES/IBAD – no Estado-Maior da burguesia, como também agiram sob a bandeira de um único partido da ordem: as Forças Armadas”. Continua: “por intermédio da intervenção militar, o bloco de poder multinacional-associado emergente elevava o nível e a qualidade da luta de classes, impondo soluções próprias para a crise, controlando a sociedade política e produzindo um realinhamento nas relações de domínio através de uma forma de governo militar autoritário”.

Nos últimos anos a tese do “golpe civil-militar” (e da “ditadura civil-militar”) ganhou importante apoio do historiador Daniel Aarão Reis, um dos maiores estudiosos da atuação da esquerda brasileira durante a ditadura. Fazendo uma autocrítica dos seus escritos anteriores, onde usava livremente a palavra ditadura militar, passou a utilizar o termo “civil-militar”. Fez isso não apenas para jogar luz sobre a participação dos grandes empresários no golpe e o apoio destes à ditadura, mas também para problematizar a complexa relação existente entre a sociedade brasileira e o regime implantado em 1964. Aarão chega mesmo a afirmar, de maneira polêmica, que os “anos de chumbo” (1969-1973) também poderiam ser considerados “anos de ouro” para “não poucos” brasileiros.

A primeira crítica que devemos fazer aos criadores deste neologismo – na qual não incluo Aarão Reis – é quanto à acusação que fazem aos que criaram e utilizaram os conceitos “golpe militar” e “ditadura militar”. Eles teriam por objetivo esconder a participação da grande burguesia e dos latifundiários naqueles trágicos eventos. A exclusão do termo “civil” seria, na verdade, uma operação ideológica. Esta ideia é errônea e injusta, pois a esquerda marxista – a primeira a constatar o caráter militar do golpe e do regime implantado em 1964 – sempre denunciou o papel desempenhado pela burguesia, o latifúndio e o imperialismo estadunidense.

A esquerda marxista diante do golpe e a ditadura

Vejamos agora como alguns dos principais marxistas brasileiros definiram o golpe e a ditadura brasileira. O historiador e general comunista Nelson Werneck Sodré escreveu: em 1964 “as Forças Armadas tomam e instalam-se no poder, não o cedendo às forças políticas que as manipularam. Há um significado novo, portanto, na forma de intervenção das Forças Armadas, que é o de manter as velhas estruturas que controlavam este país desde a época colonial”. O golpe e a ditadura não eram socialmente neutros, pois serviam aos interesses de determinadas classes: a burguesia associada ao imperialismo e o latifúndio.

Golpes e tentativas de golpes militares não eram novidades na história do Brasil. “A forma dos golpes”, continua Sodré, “é sempre a mesma: a ação preparatória da mídia, uma pregação intensiva, visando isolar as forças políticas progressistas e o coroamento por meio de uma intervenção militar do tipo que vai e vem. Ou seja, as forças militares intervêm, depõem o detentor do poder naquele momento, asseguram a sua substituição e se retraem”. Em 1964, ao contrário do que ocorrera antes, os militares não voltaram aos quartéis e permaneceram no centro do poder político por mais de 20 anos.

Outro intelectual marxista oriundo do PCB – mas de uma tradição teórica diferente da de Sodré –, Jacob Gorender, referindo-se ao golpe afirmou: “A solução encontrada foi inédita na história do Brasil, porque logo depois do golpe de 64, a partir do Ato Institucional nº 1, tivemos a primeira ditadura militar brasileira (…). O Estado Novo não foi uma ditadura militar, mas civil. Getúlio Vargas encarnava, em sua pessoa, a liderança carismática própria do populismo. Exerceu um poder ditatorial apoiado nas Forças Armadas (…), mas isso não chegou a se caracterizar uma ditadura militar”.

“No Brasil, o poder foi assumido, em 1964, pelas Forças Armadas, que institucionalizaram um processo de sucessão de presidentes da República escolhidos entre os pares do alto comando, de tal maneira que não houve lugar para caudilho militar”. A diferença entre a nossa ditadura e a argentina e a chilena – além da falta de caudilhos – foi a tentativa de manter uma fachada democrática, através da permanência do Congresso Nacional e de um partido de oposição consentido, o MDB.

Esta, em certo sentido, é a mesma opinião do professor João Quartim de Moraes: “A fórmula ditadura militar é a designação mais adequada para o regime instaurado em 1964 no Brasil. Expressões como regime autoritário ou autoritarismo não passam, no melhor dos casos, de eufemismo, explicáveis quando vigorava a censura ditatorial (…). Ditadura não carrega, como o autoritarismo, uma ambiguidade intrínseca, mas também apresenta inconvenientes, que no uso corrente se manifestam principalmente na confusão entre os militares enquanto categoria social e as Forças Armadas enquanto corporação da burocracia estatal. Vulgarmente (…) entende-se a ditadura militar como a ditadura dos militares. É evidente, porém, que não são os militares enquanto categoria diferenciada, massa de funcionários armados e uniformizados, que exercem o poder de Estado e sim a corporação enquanto tal que extrapola suas funções profissionais, transpondo para o poder político suas normas constitutivas internas, cujo primeiro princípio é a disciplina hierarquizada sob comando central”. A massa dos militares – inclusive da oficialidade – estava submetida ao férreo princípio da unidade de comando. Romper com esse princípio seria romper com a legalidade castrense. Foi justamente isso o que fizeram milhares de militares que não se submeteram ao golpe de Estado e ao regime implantado pela cúpula das Forças Armadas.

“A ordem burguesa” – segue Quartim – “especializa crescentemente as funções hegemônicas, coercitivas, econômicas e administrativas do Estado (…). É na cúpula e no leme da máquina do Estado, no nível mais alto da burocracia, que elas se centralizam e coordenam. Portanto, por ditadura militar entendemos o regime político em que o poder de Estado é assumido pela cúpula da hierarquia das Forças Armadas (e não pelos militares enquanto categoria)”.

Florestan Fernandes, por sua vez, nos perguntava “por que os militares julgaram-se no dever de dar um golpe de Estado cujo paradigma procede da contrarrevolução ‘preventiva’?” A lógica militar responderia: “sem a presença ativa dos militares, o governo ditatorial seria incapaz de defrontar-se com algo mais grave que ‘turbulências’ e a restauração da ordem continuaria ameaçada”. Segundo esse raciocínio, uma “tirania civil (mesmo) com apoio militar” seria incapaz de conter “as lutas de classes e a propagação e o crescimento de forças sociais desestabilizadoras e incontroláveis”. Assim, “cortar o mal pela raiz (…) requeria a montagem de um Estado subfascista e de um governo militar ditatorial! Isso não resolveria a crise social crônica, mas permitiria salvar as classes dominantes e suas elites de uma tragédia histórica”.

Os quatro artigos citados acima não foram escritos no “calor da hora” e sim muitas décadas depois do golpe militar. Compuseram a coletânea 1964: visões críticas do golpe, resultado de um importante seminário realizado no IFCH-Unicamp e coordenado pelo professor Caio Navarro de Toledo. Era, também, um período em que já começavam a circular – ainda sem grandes repercussões – termos como “golpe civil-militar” e “ditadura civil-militar”. Podemos conjecturar que esses textos se constituíam em tentativas de inocular a militância socialista contra o “revisionismo” histórico em marcha, tanto na sua vertente de direita como de esquerda.

As organizações de esquerda e o golpe militar

Trataremos agora de como as organizações de esquerda revolucionárias brasileiras que combateram a ditadura – muitas vezes de armas nas mãos – encararam o golpe e o regime implantado em 1964.

Em agosto daquele mesmo ano, a Comissão Executiva do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) se reuniu clandestinamente para debater as razões do golpe de Estado e aprovar a tática a ser adotada naquela nova quadra histórica. O documento saído desse encontro afirmava: “Em situação difícil e num clima de insegurança e violência vive o povo brasileiro, desde que foi desfechado o golpe militar (…). Sob o falso pretexto de que Goulart favorecia os comunistas, há muito grupos militares e de civis tinham iniciado a conspiração para derrubar o governo e deter a ascensão das lutas populares”. Continua ele: “(…) para derrubar o presidente da República uniram-se desde Magalhães Pinto, Nei Braga e Mauro Borges até Lacerda e Adhemar de Barros”. Como é possível ler, os comunistas não tinham a menor dúvida da participação civil no golpe desfechado, mas sabiam que os agentes principais haviam sido os militares.

“O governo chefiado pelo Mal. Castelo Branco é fruto de uma quartelada nos moldes tradicionais latino-americanos (…). Lidera o novo governo um punhado de militares de alta patente que tem como centro a Escola Superior de Guerra, fundada por inspiração do Pentágono”. E segue o texto: “(…) a oficialidade retrógrada não somente depôs o governo como se apoderou da máquina governamental, inclusive da presidência da República”. De maneira pioneira, o PCdoB conseguiu ver o caráter permanente – e não provisório – do regime: “o grupo de militares que desfechou o golpe não revela a intenção de entregar o governo nem agora nem depois, em 1967”.

As dissidências do PCdoB, formadas entre 1966 e 1967, como o Partido Comunista Revolucionário (PCR) e a Ala Vermelha (AV), pensavam da mesma forma. Em maio de 1966, o PCR lançou seu primeiro documento intitulado Carta de 12 pontos. Nele, se lê: “(…) o imperialismo ianque dirigiu e executou por intermédio dos militares reacionários, os ‘gorilas’, o golpe de 1º de abril de 1964. Estabeleceu-se uma ditadura militar apoiada internamente na alta burguesia nacional e nos latifundiários (…). A classe operária, os camponeses, os estudantes e intelectuais revolucionários constituem as massas fundamentais para a revolução, isto é, aquelas que exigem de fato a derrubada da ditadura militar, a expulsão do imperialismo norte-americano e a eliminação como classe da alta burguesia nacional e do latifúndio”. A Ala Vermelha, por sua vez, afirmava: “A sociedade brasileira está submetida à dominação, opressão e exploração do neocolonialismo e do seu suporte social interno, que as exercem através da contrarrevolução armada no poder, sob a forma de uma ditadura militar”. Tanto o PCdoB quanto as suas dissidências não pareciam ter dúvidas quanto ao caráter de classe do golpe e da ditadura militar. Os documentos da Ação Popular (AP) desde 1964 também falam em golpe e ditadura militar.

O Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro (PCB) conseguiu se reunir apenas em maio de 1965. No documento aprovado naquela ocasião falava-se em “golpe militar reacionário”, que teria instaurado “uma ditadura reacionária e entreguista”. Na resolução do seu VI Congresso, de 1967, esse mesmo partido afirmava: “(…) o Brasil se encontra hoje asfixiado por um regime ditatorial, militar, de conteúdo entreguista, antidemocrático e antioperário”. Vários anos depois – em novembro de 1973 – concluía que o “regime evoluiu de uma ditadura militar reacionária para uma ditadura militar caracteristicamente fascista”. Esta também era a visão das dissidências do partidão, nascidas depois de 1964.

Marighella e a Ação Libertadora Nacional (ALN) acreditavam que, em primeiro de abril, havia ocorrido um golpe militar e que, desde então, passamos a viver sob o domínio despótico de uma ditadura militar. Bem antes da criação da ALN, no seu livro Por que resisti à prisão, o futuro líder da guerrilha urbana afirmaria: “Não houve, pois, revolução. Os ‘gorilas’ simplesmente desfecharam o golpe e acabaram com a democracia. O termo é mesmo golpe, quartelada, abrilada, gorilada. E o mais jocoso de tudo, um autêntico primeiro de abril”. Em outro trecho, de maneira enfática, disse: “fiz questão de tornar público que vivemos sob uma ditadura militar fascista. E outra não pode ser a caracterização do atual estado de coisas”.

“Tratando-se, pois de uma ditadura militar (…) criou uma contradição com o poder civil. O Brasil entrou numa fase de militarização da política – resultado lógico de um militarismo que se implantou no poder pela força – entendido como militarismo o predomínio dos militares sobre os civis em todos os aspectos da vida da nação, a subordinação dos interesses do país aos interesses do poder militar”. E concluiu: “a contradição militarismo versus poder civil voltou a ser um fenômeno político na vida do povo brasileiro”.

Um último exemplo. O Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) – outra dissidência do PCB comandada por Mário Alves, Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender –, no seu documento programático de 1968, afirmava: “Sendo a ditadura militar a expressão do poder burguês-latifundiário, a luta pela sua derrubada está indissoluvelmente ligada ao objetivo principal da forças revolucionárias – a formação de um governo popular que leve a termo a revolução e abra o caminho socialista de desenvolvimento”.

Reconheço que esse primeiro artigo não passa de um elenco de “argumentos de autoridade” – e que autoridades! Mas isso foi necessário para demonstrar que a utilização dos conceitos “golpe militar” e “ditadura militar” tem uma longa e respeitável tradição no seio da cultura marxista e revolucionária brasileira. Não são invenções pós-fato, criadas com o simples objetivo de inocentar a burguesia, os latifundiários e o imperialismo de suas responsabilidades. Eram, pelo contrário, resultado de um louvável esforço teórico-político, desenvolvido por centenas de militantes revolucionários em condições nem sempre favoráveis.

No próximo artigo apresentarei as bases teóricas e as implicações políticas da utilização dos conceitos “golpe militar” e “ditadura militar” entre as décadas de 1960 e 1980.

* Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e a revolução brasileira e Meu Verbo é Lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos publicados pela Editora Anita Garibaldi.

Bibliografia  

DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de classe. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1981.
MARIGHELLA, Carlos. Por que resisti à prisão. São Paulo/ Bahia: Brasiliense/Edufba, 1995.
MORAES, João Quartim de. Liberalismo e ditadura no Cone Sul. Campinas: IFCH-Unicamp, 2001.
PCdoB. Em defesa dos trabalhadores e do povo brasileiro – documentos do PCdoB de 1960 a 2000. São Paulo: Anita Garibaldi, 2000.
REIS FILHO, Daniel Aarão & SÁ, Jair Ferreira de. Imagens da Revolução. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
REIS FILHO, Daniel Aarão. O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois. São Paulo: Edusc, 2004.
____________. “O sol sem peneira”. In: Revista de História. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, agosto de 2012.
TOLEDO, Caio Navarro de (org.). 1964: visões crítica do golpe. Campinas: Ed. da Unicamp, 1994.