A brutalidade dos homens
A explosão de vandalismo nas ruas e nas redações dos telejornais desatou uma nova rodada de manifestações de baixo moralismo empenhadas em desfazer os padrões de convivência conquistados a duras penas ao longo do processo civilizador.
Dividir o mundo entre bons e maus está na moda. A reinvenção dessa banalidade alcançou foros de seriedade na construção do discurso midiático e político contemporâneo.
Não estamos sós nessa empreitada. Sugiro ao brasileiro a leitura do livro The Outrage Industry, Political Opinion Media and The New Incivility. Trata-se de um estudo acurado da degradação do debate político nos Estados Unidos entre a extrema-direita e liberais dispostos a responder no mesmo tom agressivo e violento. Nessa batalha é impossível distinguir godos de visigodos. O livro analisa os comentaristas de telejornais, celebridades dos talk shows, blogueiros e comentaristas fulminantes da internet, porta-vozes das insanidades midiáticas, sempre protegidos pelo anonimato, isto sim, em escracho ao direito à livre expressão do pensamento.
Os ululantes atacam com as armas do preconceito, da intolerância e com as bordunas da apologia da brutalidade, sem falar nos ataques em massa à última flor do Lácio, inculta e bela. Alguém já dizia que há método na loucura, mas, em sua marcha, a desrazão capricha na metodologia. As expressões “fascistas”, “idiotas politicamente corretos”, “elite vagabunda” poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade e descuido. Em alguns sítios e comentários, as generosas imprecações adjetivadas ganham a companhia de exaltadas conclamações para o retorno dos militares ou sugestões para que os black blocks sejam mais eficientes em seu “empreendedorismo” anárquico, destruidor e, não raro, mortal.
Os estudiosos do totalitarismo sabem que a “autovitimização” da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram métodos eficientes para a conquista do poder absoluto. Vejo nos blogs: os mais furiosos se apresentam como “humanos direitos”, em contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista de massa, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da anarquia de massa, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de amadores.
O magnífico projeto iluminista-burguês da liberdade, igualdade e fraternidade, avaliado em seus próprios termos e objetivos, está fazendo água diante do desenvolvimento alucinante e alucinado da competição das mídias para buscar os esgotos.
Fredric Jameson, no livro A Cultura do Dinheiro (Vozes, 2001), lamenta: “Os quatro pilares ideológicos, jurídicos e morais do alto capitalismo – constituições, contratos, cidadania e sociedade civil – são, hoje, vadios maltrapilhos, mas sempre lavados, barbeados e vestidos com roupas novas para esconder sua verdadeira situação de penúria”.
A civilização ocidental, disse Gandhi, teria sido uma boa ideia. Imaginei, santa ingenuidade, que as batalhas do século XX, além do avanço dos direitos sociais e econômicos, tivessem finalmente estendido os direitos civis e políticos, conquistas das “democracias burguesas”, a todos os cidadãos. Mas talvez estejamos numa empreitada verdadeiramente subversiva, ainda que não revolucionária: a construção da República dos Mais Desiguais. Uma novidade política engendrada nos porões da inventividade contemporânea, regime em que as garantias republicanas recuam diante dos esgares da máquina movida pela “tirania das boas intenções”. Um sistema em que bons meninos exibem sua retidão moral para praticar brutalidades em nome da justiça. O direito e a eticidade do Estado desaparecem no buraco negro do moralismo particularista e exibicionista.
Desterrar o conflito social para fora da esfera pública e colocá-lo à margem da ordem jurídica certamente fará irromper na sociedade de massa a verdadeira face da política de aniquilamento do outro. Muitos democratas sinceros e outros nem tanto são incapazes de avaliar corretamente o papel do ultraje pessoal na avacalhação do debate público. A ofensa pessoal desqualificadora usada como argumento, sobretudo se praticada sob a capa do anonimato, e a resposta no mesmo tom são instrumentos da brutalização das consciências.
Publicado em Carta Capital