Ignacio Rangel, 100 anos: “a nação como categoria histórica”
Prestar uma homenagem a Ignacio de Mourão Rangel por passagem de seu centenário de nascimento neste curto espaço não é uma tarefa das mais fáceis. Honestamente, fiquei em dúvida com relação ao título desta coluna. Por um instante pensei em titulá-la como “Ignacio Rangel, 100 anos: o caminho brasileiro ao socialismo”.
Preferi deixar como está. É uma forma de exprimir o essencial do pensamento deste grande brasileiro nascido na pequena cidade de Mirador, no estado do Maranhão a 20 de fevereiro de 1914. Tratou-se de um marxista muito peculiar que como homem de um tempo deixou-se influenciar sobremaneira pelo pensamento econômico e político de Lênin, além de economistas burgueses longe da vulgaridade como Keynes e Schumpeter.
Não tenho nenhuma resignação de afirmar que Ignacio Rangel foi o mais brilhante pensador brasileiro do século 20 e, certamente, o marxista mais completo e original a pintar pelas bandas da América Latina. E se me perguntares a razão desta “adjetivação”, respondo com clareza que Ignacio Rangel foi o pensador que melhor sintetizou as leis do funcionamento de uma formação social complexa como a do Brasil o que o possibilitou a colocar o dedo no futuro de nosso país conforme as concessões à iniciativa privada das infraestruturas estranguladas e o surgimento de um incipiente mercado de capitais demonstram.
Influenciado por Vladimir Lênin, criou uma noção exata da categoria de formação social e sua lei fundamental no Brasil num mix de atraso e dinamismo que confere, até hoje, a existência do avançado em detrimento do pretérito em todas as variantes da base econômica e da superestrutura. Assim, não caiu na tentação da vã explicação, estruturalista e dependentista, da relação entre estagnação e atraso tão comum entre nosso pensamento dito progressista.
A sofisticação de seu jeito de pensar e escrever sem as amarras da academia e da 3ª Internacional expressou-se na observação de fenômenos macroeconômicos complexos (inflação) partindo de características de nossa formação social: forte formação de capital no seio da fazenda de escravos + substituição de importação precoce pré-industrial + especialização da agricultura + industrialização sem reforma agrária + teratológico exército industrial de reserva + baixa propensão ao consumo das classes trabalhadoras = inflação por preços administrados de produtos agrícolas e industriais.
O fio condutor de sua obra é a sua tese da dualidade. Trata-se de uma engenhosa construção analítica que articula contribuições do materialismo histórico marxista, de Smith, de Keynes, da teoria dos ciclos e das crises de Kondratieff e Juglar à formação econômica brasileira, no intuito de entender sua dinâmica e especificidades.
A partir da tese da dualidade, para efeitos analíticos, são classificados em outras quatro as grandes teses de Rangel, expressões de suas interpretações sobre a economia brasileira, a teoria econômica e o desenvolvimento econômico, social e político: 1) sobre a Dinâmica Capitalista, que articula as teorias dos ciclos, das crises e a questão tecnológica ao movimento da economia brasileira e mundial; 2) a tese da Inflação Brasileira, contida em seu famoso livro do mesmo nome, transformada, pela sua densidade analítica, nível de formulação e grau de universalidade em uma verdadeira teoria da inflação, feito inigualável na história do pensamento econômico brasileiro; 3) acerca da Questão Agrária, onde altamente influenciado por Lênin, interpreta os determinantes da crise agrária brasileira e suas conseqüências para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil e 4) sobre a Intervenção do Estado e Planejamento, onde analisa o valor do planejamento do setor público como fator de equilíbrio econômico global e de redução de ociosidades setoriais na economia.
Poderia ficar até amanhã escrevendo sobre a monumental obra de Ignacio Rangel, que se constituiu num verdadeiro libelo ao desenvolvimento. Quero, no espaço que me resta, somente colocar alguns questionamentos sobre as razões de se estudar a obra de Rangel: 1) para entender as razões de nosso não realizado desenvolvimento; 2) para entender, partindo da constatação de transições lentas, graduais e seguras no Brasil, a necessidade de um Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento (capitalismo de Estado) como o caminho brasileiro ao socialismo; 3) para compreender a historicidade tanto do mercado quanto da iniciativa privada, inclusive no que tange a transição socialista no Brasil; 4) para que não façamos política com a “ciência” dos neoliberais: a inflação no Brasil não é de demanda e a poupança, definitivamente, não é pressuposto ao investimento; 5) para proscrevermos, de uma vez por todas, a falsa noção socialdemocrata que distingue crescimento e desenvolvimento 6) para observarmos o estado da arte do marxismo no Brasil: Marx não pode ser reduzido a um mero pensador da questão social e Lênin não deve ser objeto de redução a um punhado de obras políticas datadas e 7) O marxismo-leninismo deve ser um corpo científico capaz de ampliar nossa visão de mundo e realidade e não algo tomado como um dogma pobre e doente como constantemente se vê.
Por fim, o que é para Ignacio Rangel a nação? O que é para ele e como se constitui a transição do capitalismo ao socialismo e desta ao comunismo? Segue trecho interessante a este respeito retirado de “Recursos Ociosos na Política Econômica”:
“A nação é, sem dúvida, uma categoria histórica, uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho dúvida de que todos os povos da Terra caminham para uma comunidade única, para ‘Um Mundo Só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais. Mas não antes disso. O ‘Mundo Só’ não pode ser um conglomerado heterogêneo de povos ricos e de povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos”.