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    balada de um deus embriagado

    balada de um deus embriagado   no princípio era o berro o caos do acaso pedaço de nada nó de garganta guilhotinada no precipício de tudo estava o silêncio semente de toda palavra a palma aberta vazio rindo distribuindo fogo por todas as bocas no particípio era a voz a vez de ser a fala […]

    POR: Redação

    6 min de leitura

    balada de um deus embriagado

     

    no princípio
    era o berro
    o caos do acaso
    pedaço de nada nó de garganta guilhotinada

    no precipício de tudo
    estava o silêncio semente
    de toda palavra
    a palma aberta vazio
    rindo distribuindo fogo
    por todas as bocas

    no particípio era a voz
    a vez de ser
    a fala oblíqua
    fálica nada flácida

    à fórceps
    do querer atômico
    das pedras que rolam da dança dos genes
    o sorriso banguela dos sóis
    plantados no escuro
    vaga-luzes de brilho outro forma alguma


    os deuses só nasceram depois
    muito muito muito mais tarde
    quando a sede aumentou a fome gritou na entranha a faca devorou a mão
    quando a guerra precisou de senhores
    os senhores de paz
    e a paz (coitada
    rezaram os pés de tudo que há)
    cansou de ser palavra e mais nada


    os deuses nasceram de todos os cantos

    de todas as formas e nomes e dores alegres
    vieram em cores
    em carnes
    asas pedras insetos imensos
    cancros abortos invernos
    madeiras ferros estrumes topázios ovos de todas as aves


    cada um no seu mundo
    ruminando infinitos

    mas um deles
    sem aviso
    belo dia sem data
    despertou
    como se pulasse de um sonho em outro
    gritou contra as portas que voaram desfeitas em luz
    e chorou
    diante do destino de estar eterno e não ser nada além
    de além


    contra que deus brandir o punho
    se deus era ele e supremo porque para ser supremo
    havia sido inventado?


    havia lido
    deuses gostam de livros
    que o maior castigo era a eternidade
    e nem pecado ele havia cometido
    desejo nenhum erro nenhum morte nenhuma nenhuma carne
    entre seus dentes sua carne


    a eternidade lhe caía sobre os ombros
    pedra infinita sem montanha


    a tarefa de ser deus se limitava a legislar o tempo
    mas alguma coisa lhe dizia
    que há muito
    o tempo
    não mais

    existia !

    revoltou-se

    homem
    cansado de ser deus
    se fez mulher criança birra de maluco

    pintou interrogações por dentro das nuvens
    e fez chover


    por trezentos tempos
    os homens ficaram perguntando inquirindo debatendo

    filos
    o fando

    e sua raiva não passou


    então resolveu embriagar-se


    e foi fazer de todas as maneiras sua maneira de estar assim

    recolheu de todos continentes as canas todas de açúcar

    as uvas
    de todas as parreiras aprendeu o cauim o álcool de arroz

    de batata de madeira de manga de goiaba de laranja de manjericão de amora

    arginica cantárida cascas de ovos de ema de águia

    chocolates corvos cornos de rinoceronte aspargos

    ginseng mel de ostras sangria de estrelas champanhe de

    ruínas morangos com laranja vinho verde amarelo

    cor-de-fogo-quando-foge olhos de camaleão ponches

    de todos os natais mortos açúcares cervejas venenos cevados

    brancos tintos secos de mesa e cama


    colheu todas as flores pra dar o tom certeiro
    mastigou fermentou
    bateu ferveu moeu acrescentou ao buquê
    o azedume da cicuta
    o amargo do curare

    e o sangue de todos os tipos de gente

    pra ferver no ponto certo o sol de ira do seu cálice

    na borda imensa de sua taça
    giravam sóis de girassóis
    borbulhando galáxias em torno do vermelho vivo


    bebeu


    bebeu


    bebeu

    goles coagulados de gula

    como se beber fosse só o que importasse e existisse


    bebeu com tanto gosto tanta sede tanto trato
    que nem se diria ser um deus que estava ali embriagado

    quando jogou longe seu corpo vazio
    estava repleto de nada
    nem se lembrava mais

    do que era tempo ser deus essa conversa

    de infinito e orações mal-terminadas


    estava livre
    e livre
    se apoiou sobre um quasar
    e caminhou sobre seus pés


    mudando no giro incerto do seu passo
    a desordem do espaço órbitas formando novos pares
    a vida escorrendo de sua boca


    em gotas


    de alegria e liberdade

    resolveu inventar enquanto era tempo

    (mas que tempo ainda se sustentaria?)
    o corpo que lhe coubesse

    a vida que lhe bastasse
    em que sua carne reinventada
    se misturasse ao sonho simples que arrastava

    o ser inteiro e só
    que sustentasse no colo e no olhar
    sua leveza


    desceu então
    porque não era
    de espaço vazio
    e de negrume
    que ia inventar de embriaguez seu amor


    vermelha
    rosácea
    lâmina vulto esperma pétala folha-de-relva pérola luz apagada vento


    foi tecendo de mar
    de fruta
    de pedra
    os olhos
    as mãos
    a espera

    girava gritava gargalhava
    caía sorria mergulhava
    e soprava entre as mãos
    pra fazer da areia branca
    a seda
    da pele

    fez dois pés de vento e plantou em cada um

    dez

    mil

    caminhos

    porque não queria amor roubado de si mesmo
    e mesmo embriagado como só um deus pode poder

    sabia ser amor o que era a liberdade

    assim fez
    e fez de nada o tudo desse sonho
    cada poro pêlo umbigo boca cabelo sexo curvas de acento variado

    montes de vênus veias nuas
    grandes pequenos
    lábios

    colos de calor inesperado


    e viu que era boa

    porque não era perfeito

    o amor em pedaços multiplicados ali a sua frente


    faltava olhar e viço
    fôlego que banhasse seu rosto


    em vez de soprar
    (chega de barro de vento)
    beijou
    a sombra de luz que havia inventado


    beijo molhado de tudo que era e havia bebido
    beijo incerto dado entre astros palavras na altura possível


    beijo de deus e de homem
    de filho e de pai
    beijo de bicho

    de homenino entre tardes
    que se perderam da memória


    enquanto beijava e criava
    se sentiu criado e beijado

    ele mesmo também inventado pelo ser que inventara


    deus completo agora carne
    no verbo dessa palavra

    abriu os olhos nos olhos que lhe deram os seus

    cruzou os dedos com as mãos que criou se criando
    e viu no outro rosto o seu rosto diverso

    não narciso de fôlego curto
    nem lago de sede infinita

    ele mesmo outro no espelho de sua fome seu nome dentro do

    (silêncio)


    amor do fundo à superfície


    vestido de sol
    e de água não disse seu nome nem nomeou

    semelhança

    ela que se quisesse se dissesse
    livre agora como era
    ou nome algum se rotulasse
    que amar é ser sem nome

    e estar reencontrado


    na relva imensa do universo
    as duas silhuetas sentaram
    longamente olhando
    o mar imóvel de tudo


    adormeceram
    em paz

    no mundo
    reinventado

    deitados na areia do silêncio
    assim vivos assim mortos

    superestrelados


    na paz da paz do amor
    sonhado por um deus

    embriagado

     

     

    Carlos Moreira – fonte : http://carlosmoreira-silencio.blogspot.com.br/

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