balada de um deus embriagado
balada de um deus embriagado
no princípio
era o berro
o caos do acaso
pedaço de nada nó de garganta guilhotinada
no precipício de tudo
estava o silêncio semente
de toda palavra
a palma aberta vazio
rindo distribuindo fogo
por todas as bocas
no particípio era a voz
a vez de ser
a fala oblíqua
fálica nada flácida
à fórceps
do querer atômico
das pedras que rolam da dança dos genes
o sorriso banguela dos sóis
plantados no escuro
vaga-luzes de brilho outro forma alguma
os deuses só nasceram depois
muito muito muito mais tarde
quando a sede aumentou a fome gritou na entranha a faca devorou a mão
quando a guerra precisou de senhores
os senhores de paz
e a paz (coitada
rezaram os pés de tudo que há)
cansou de ser palavra e mais nada
os deuses nasceram de todos os cantos
de todas as formas e nomes e dores alegres
vieram em cores
em carnes
asas pedras insetos imensos
cancros abortos invernos
madeiras ferros estrumes topázios ovos de todas as aves
cada um no seu mundo
ruminando infinitos
mas um deles
sem aviso
belo dia sem data
despertou
como se pulasse de um sonho em outro
gritou contra as portas que voaram desfeitas em luz
e chorou
diante do destino de estar eterno e não ser nada além
de além
contra que deus brandir o punho
se deus era ele e supremo porque para ser supremo
havia sido inventado?
havia lido
deuses gostam de livros
que o maior castigo era a eternidade
e nem pecado ele havia cometido
desejo nenhum erro nenhum morte nenhuma nenhuma carne
entre seus dentes sua carne
a eternidade lhe caía sobre os ombros
pedra infinita sem montanha
a tarefa de ser deus se limitava a legislar o tempo
mas alguma coisa lhe dizia
que há muito
o tempo
não mais
existia !
revoltou-se
homem
cansado de ser deus
se fez mulher criança birra de maluco
pintou interrogações por dentro das nuvens
e fez chover
por trezentos tempos
os homens ficaram perguntando inquirindo debatendo
filos
o fando
e sua raiva não passou
então resolveu embriagar-se
e foi fazer de todas as maneiras sua maneira de estar assim
recolheu de todos continentes as canas todas de açúcar
as uvas
de todas as parreiras aprendeu o cauim o álcool de arroz
de batata de madeira de manga de goiaba de laranja de manjericão de amora
arginica cantárida cascas de ovos de ema de águia
chocolates corvos cornos de rinoceronte aspargos
ginseng mel de ostras sangria de estrelas champanhe de
ruínas morangos com laranja vinho verde amarelo
cor-de-fogo-quando-foge olhos de camaleão ponches
de todos os natais mortos açúcares cervejas venenos cevados
brancos tintos secos de mesa e cama
colheu todas as flores pra dar o tom certeiro
mastigou fermentou
bateu ferveu moeu acrescentou ao buquê
o azedume da cicuta
o amargo do curare
e o sangue de todos os tipos de gente
pra ferver no ponto certo o sol de ira do seu cálice
na borda imensa de sua taça
giravam sóis de girassóis
borbulhando galáxias em torno do vermelho vivo
bebeu
bebeu
bebeu
goles coagulados de gula
como se beber fosse só o que importasse e existisse
bebeu com tanto gosto tanta sede tanto trato
que nem se diria ser um deus que estava ali embriagado
quando jogou longe seu corpo vazio
estava repleto de nada
nem se lembrava mais
do que era tempo ser deus essa conversa
de infinito e orações mal-terminadas
estava livre
e livre
se apoiou sobre um quasar
e caminhou sobre seus pés
mudando no giro incerto do seu passo
a desordem do espaço órbitas formando novos pares
a vida escorrendo de sua boca
em gotas
de alegria e liberdade
resolveu inventar enquanto era tempo
(mas que tempo ainda se sustentaria?)
o corpo que lhe coubesse
a vida que lhe bastasse
em que sua carne reinventada
se misturasse ao sonho simples que arrastava
o ser inteiro e só
que sustentasse no colo e no olhar
sua leveza
desceu então
porque não era
de espaço vazio
e de negrume
que ia inventar de embriaguez seu amor
vermelha
rosácea
lâmina vulto esperma pétala folha-de-relva pérola luz apagada vento
foi tecendo de mar
de fruta
de pedra
os olhos
as mãos
a espera
girava gritava gargalhava
caía sorria mergulhava
e soprava entre as mãos
pra fazer da areia branca
a seda
da pele
fez dois pés de vento e plantou em cada um
dez
mil
caminhos
porque não queria amor roubado de si mesmo
e mesmo embriagado como só um deus pode poder
sabia ser amor o que era a liberdade
assim fez
e fez de nada o tudo desse sonho
cada poro pêlo umbigo boca cabelo sexo curvas de acento variado
montes de vênus veias nuas
grandes pequenos
lábios
colos de calor inesperado
e viu que era boa
porque não era perfeito
o amor em pedaços multiplicados ali a sua frente
faltava olhar e viço
fôlego que banhasse seu rosto
em vez de soprar
(chega de barro de vento)
beijou
a sombra de luz que havia inventado
beijo molhado de tudo que era e havia bebido
beijo incerto dado entre astros palavras na altura possível
beijo de deus e de homem
de filho e de pai
beijo de bicho
de homenino entre tardes
que se perderam da memória
enquanto beijava e criava
se sentiu criado e beijado
ele mesmo também inventado pelo ser que inventara
deus completo agora carne
no verbo dessa palavra
abriu os olhos nos olhos que lhe deram os seus
cruzou os dedos com as mãos que criou se criando
e viu no outro rosto o seu rosto diverso
não narciso de fôlego curto
nem lago de sede infinita
ele mesmo outro no espelho de sua fome seu nome dentro do
(silêncio)
amor do fundo à superfície
vestido de sol
e de água não disse seu nome nem nomeou
semelhança
ela que se quisesse se dissesse
livre agora como era
ou nome algum se rotulasse
que amar é ser sem nome
e estar reencontrado
na relva imensa do universo
as duas silhuetas sentaram
longamente olhando
o mar imóvel de tudo
adormeceram
em paz
no mundo
reinventado
deitados na areia do silêncio
assim vivos assim mortos
superestrelados
na paz da paz do amor
sonhado por um deus
embriagado
Carlos Moreira – fonte : http://carlosmoreira-silencio.blogspot.com.br/