“O poder Judiciário ainda deve ao país uma decisão sobre a questão da tortura”
Quando foi ministro da Justiça, entre 2007 e 2010, Tarso Genro externou a opinião de que os agentes da repressão que cometeram o crime de tortura durante o regime militar violaram a ordem jurídica da própria ditadura e não deveriam ser beneficiados pela anistia, deveriam pagar por seus crimes.
A opinião do então ministro provocou a ira de generais de pijama que logo trataram de organizar um ato de repúdio no mofado Clube Militar do Rio. Do lado de fora, centenas de estudantes e militantes davam apoio às declarações de Tarso.
O assunto continua dividindo opiniões até hoje, mas a de Tarso Genro não mudou. Em entrevista (por email) para Princípios, o agora governador do Rio Grande do Sul é enfático ao reafirmar: “Continuo totalmente convicto da justeza desse posicionamento, e entendo, inclusive, que hoje há uma maior consciência na sociedade, no poder judiciário, sobre a justeza dessas posições.”
Advogado com sólida formação intelectual, Tarso Genro defende um conceito mais avançado de anistia: “Anistia originalmente é o perdão do Estado, na visão que nós desenvolvemos e foi acolhida pelo governo Lula e por todos os grupos institucionais e não-institucionais que tratam da questão da anistia traduz-se no seguinte: o Estado é que pede perdão, o Estado é que pede desculpas (…) pela violência com que tratou aqueles que resistiram ao regime”, diz.
Confira, a seguir, a íntegra da entrevista:
Princípios: O senhor teve uma ativa militância em organizações de esquerda na época da Ditadura, participando da resistência democrática. Conte-nos um pouco sobre esta experiência.
Tarso Genro: Na época da Ditadura, militei, em sequência, no PCdoB. Logo após formamos a ala vermelha. Depois disso, de quase dois anos de exílio, voltei e comecei a participar da chamada esquerda do PCdoB. Depois, fundamos o Partido Revolucionário Comunista, no começo da década de 1980. Portanto, estive no movimento comunista, sempre numa relação que se estuda o eixo PCdoB, partidão e organizações comunistas, ou pequenas organizações comunistas formadas dentro dessa cultura.
Durante a Ditadura, militei no PMDB, na fase legal da atuação, depois no PT. A partir de 1989, o PRC se dissolveu e passamos a militar exclusivamente no Partido dos Trabalhadores. A experiência de participação na clandestinidade está dirigida para três frontes, principalmente: Uma atuação junto aos sindicatos, organizando o movimento sindical pela esquerda e célula dos partidos que eu participei; Uma participação bastante intensa no meio da intelectualidade, a partir da utilização de categorias Marxistas, tanto na crítica literária, quanto na teoria do direito; E uma relação com a legalidade através de candidaturas que levavam as mensagens da clandestinidade para a legalidade. Esse processo é um processo que se esgota politicamente com a Constituinte, em 1988, e depois traz todos os militantes da clandestinidade para os partidos legais ou para a legalização dos seus partidos, como é o caso do PCdoB.
Princípios: Quando o senhor foi ministro da Justiça disse que a tortura é crime imprescritível e inanistiável. E defendeu o julgamento dos que cometeram crimes durante a Ditadura Militar. O Clube Militar do Rio chegou a fazer um ato público contra suas declarações. Alguns setores do próprio campo democrático não respaldaram esta sua tomada de posição.O senhor continua convicto da justeza deste posicionamento?
TG: Continuo totalmente convicto da justeza desse posicionamento, e entendo, inclusive, que hoje há uma maior consciência na sociedade, no poder Judiciário, sobre a justeza dessas posições. Quando nós estamos tratando de tortura, é incompatível nós concebermos que a tortura tem algum nexo com delito de natureza política. Essa vinculação da tortura com crime de natureza política foi uma forma através da qual a ditadura, num ato de promoção de anistia, quis encobrir todas as ações cometidas pelos seus agentes na clandestinidade do próprio regime. Que formalmente, e que legalmente também não admitia tortura, embora fosse um regime de força e um regime que inclusive se amparava em aparatos irregulares pra combater o movimento democrático e a combater os movimentos socialistas e comunistas da época. Portanto, o Brasil ainda deve, e o poder Judiciário ainda deve ao país, uma decisão sobre essa questão. Não se trata, sequer, de colocar essas pessoas na cadeia, porque provavelmente todas estão muito velhas, outras já desapareceram, mas fazer com que fique transparente o que aconteceu na ditadura militar e não permitir que inclusive essas pessoas, que se escudaram no regime para cometer esses atos de barbárie, possam utilizar hoje as forças armadas como respaldo para aquilo que elas fizeram na época. É também uma mudança cultural, um aparato de segurança, que terá um efeito altamente positivo para a democracia se nós tornarmos esses crimes transparentes e essas pessoas serem expostas ao conhecimento público.
Princípios: Países vizinhos como Argentina, Chile e Uruguai têm tido iniciativas e aprovado legislações muito mais avançadas que o Brasil na punição dos crimes cometidos na Ditadura. Por que o Brasil não consegue avançar mais neste sentido?
TG: O Brasil não consegue avançar nesse sentido, porque a nossa transição foi uma transição conciliada. Nós não podemos esquecer que tivemos como primeiro presidente da República, na democracia brasileira, quem era o presidente do partido da Ditadura, o presidente da Arena, que foi o presidente Sarney, que mudou de posição política e acompanhou o movimento democrático, inclusive conferindo até a legalidade ao PCdoB. Esse processo conciliatório, que dissolveu, por assim dizer, gradativamente a ditadura no país gerou relações de compromisso no âmbito da política, inclusive em setores democráticos avançados, de que aquilo que tinha acontecido na Ditadura era um tabu. Então, houve um grande pacto de silêncio e de omissão em relação ao passado. Por isso o Brasil custa a avançar nessas questões, o que não aconteceu na Argentina, Chile e Uruguai, onde esse pacto não foi um pacto explicitado nas relações políticas que se deram na legalidade depois da abertura dos regimes militares.
Princípios: Como o senhor avalia o trabalho e os desafios da Comissão Nacional da Verdade?
TG: Eu acho que a Comissão Nacional da Verdade está prestando um grande papel, está prestando um grande serviço à Nação, mas os seus efeitos têm que ser, na verdade, absorvidos e compreendidos em longo prazo. Nós não podemos supor que o trabalho da Comissão Nacional da Verdade vai esgotar todas as questões referentes aos crimes da Ditadura aqui no Brasil. Pelo contrário, isso é o início de um processo, que ao mesmo tempo é um processo de investigação, de luto, de reconhecimento e de democratização das instituições públicas. Nós como, ministros da Justiça, mudamos o conceito de anistia. Anistia originalmente é o perdão do Estado, na visão que nós desenvolvemos e foi acolhida pelo governo Lula e por todos os grupos institucionais e não-institucionais que tratam da questão da anistia traduz-se no seguinte: o Estado é que pede perdão, o Estado é que pede desculpas. O Estado não tem que perdoar os que resistiram, tem é que pedir desculpas pela violência com que tratou aqueles que resistiram ao regime. Esse é um conceito que nós introduzimos na dialética política brasileira e que está vigente até hoje. E eu tenho muito orgulho disso.
Princípios: Em 2009 o senhor esteve em São Domingos do Araguaia, no sul do Pará, quando a Comissão da Anistia do Ministério da Justiça anunciou a concessão de anistia política a camponeses perseguidos na época da Guerrilha do Araguaia, e disse que o Estado reconhecia o comportamento delituoso contra parte da população na época da Ditadura Militar. Ao fazer isso, segundo o senhor, o Estado estabelecia as condições da paz e da reconciliação. Como analisa essa formulação agora?
TG: Acho que a formulação que eu fiz em 2009, em pleno palco da Guerrilha do Araguaia, ela mantém toda a sua atualidade. É impossível, em uma conciliação, sem que haja o reconhecimento da verdade, e as condições de paz e de conciliação só podem ser obtidas a partir de uma concepção de justiça, de um certo tipo de justiça, de transição, que faça o reconhecimento de que vencedores e vencidos tinham lados que eram visíveis. E que os vencedores que suprimiram a resistência democrática e os movimentos socialistas e comunistas, suprimiram essas resistências, esses movimentos, ilegitimamente, porque suprimiram sacrificando a democracia, suprimiram ofendendo os direitos humanos, e suprimiram atrasando política e economicamente o país. Então é necessário que se faça justiça pra que haja conciliação e reconhecimento recíproco, inclusive, do papel que as partes tiveram nesse processo. Os que resistiram têm sua vida exposta, foram julgados, foram apresentados publicamente, muitas vezes, foram assassinados, foram torturados. Agora, os que cometeram esses delitos a partir do Estado, cometeram a partir de uma visão de que o Brasil não estava maduro para a democracia e que tinha que combater a resistência popular, porque isso significava construir um país novo. Tudo era uma fraude, como se viu. O país começou a ser construído a partir da Constituição de 1988.
Princípios: Durante seu mandato como governador do Rio Grande do Sul foi constituída uma Comissão Estadual da Verdade. Quais são as diretrizes de atuação e como estão caminhando os trabalhos da Comissão?
TG: A Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul tem por objetivo analisar, no estado, em relação aos órgãos de polícia e órgãos de informação do estado, em que esses órgãos contribuíram para dar solidez à Ditadura e apurar os delitos, os crimes que foram cometidos e expô-los publicamente, além de montar um arquivo sobre o comportamento da estrutura estatal do Rio Grande do Sul, das suas forças policiais, na época do Regime Militar. Essas diretrizes estão sendo encaminhadas, as pessoas estão sendo ouvidas, o material está sendo recolhido. E esse material todo vai ser entregue à Comissão Nacional da Verdade.
O governador Tarso Genro assina ato de nomeação da Comissão Estadual da Verdade no Rio Grande do Sul, destinada a facilitar o acesso da socieade a documentos oficiais da ditadura civil-militar
Princípios: Há hoje um razoável clamor na sociedade pela ampliação e aperfeiçoamento da democracia. Na opinião do senhor, o que deve ser feito para fortalecer a democracia brasileira?
TG: Eu acho que a democracia brasileira vai se fortalecer com um novo processo constituinte no Brasil. Seja um processo constituinte específico para fazer uma reforma política, seja um novo processo constituinte para reformar e reatualizar a constituição política do Brasil. Que hoje nós temos uma democracia que não é transparente, não temos controle público do Estado. O Estado brasileiro é um Estado que responde lentamente, tem capacidade de responder lentamente as demandas sociais, e é necessário que ele seja totalmente reformado e atualizado. Qual é a essência desse novo projeto democrático republicano? É combinar a democracia direta, a democracia conselhista, dos conselhos que já existem no país, a democracia participativa em geral, com a democracia representativa, fazendo com que uma energize a outra, e a democracia política possa reconquistar o Estado, que hoje está capturado pelo capital financeiro, para que o Estado possa construir grandes políticas públicas orientadas pela sociedade, pela representação política e não seja um peão do capital financeiro. Isso serve não só para o Brasil, serve para toda a América Latina. Hoje existe uma tutela, praticamente, normativa, do capital financeiro sobre a vida dos Estados, sobre as ações dos Estados, sobre como os recursos dos Estados devem ser empregados. Essa é uma tutela que só interessa ao grande sistema financeiro privado internacional.