A cara da derrota
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São 40 crônicas selecionadas pelo próprio ministro em um trabalho de pesquisa de mais de um ano. O futebol foi a metáfora utilizada por Nelson Rodrigues para a apresentação e a divulgação de um Brasil eficiente e vitorioso.
Confira abaixo a 14ª crônica da série: “A cara da derrota”. O site do ministério vai publicar dois textos por semana, aos domingos e às quintas-feiras.
“Um subdesenvolvido não pode manter a sua dignidade sem o protesto. É o protesto, repito, que o salva, que o redime e que o potencializa.”
A cara da derrota (1)
Amigos, o mínimo que se pode esperar do subdesenvolvido é o protesto. Ele tem de espernear, tem de subir pelas paredes, tem de se pendurar no lustre. Sua dignidade depende de sua indignação. Ou ele, na sua ira, dá arrancos de cachorro atropelado, ou temos de chorar pela sua alma.
E, vamos e venhamos, nada mais abjeto do que o subdesenvolvimento consentido, confesso e até radiante. Agora mesmo, um grande povo, o inglês, assombra o mundo com uma vitória altamente suspeita, e mesmo comprometedora. Tudo se organizou sem mistério e sem disfarce. Aliás, não se devia esperar outra coisa. A História informa que o cinismo é próprio dos grandes povos. A vitória inglesa foi, assim, um crime quase perfeito. Digo “quase”, porque teve o defeito do descaro.
A Copa da Inglaterra foi roubada duas vezes. Duvidar ou sofismar com o segundo roubo é o mesmo que duvidar do primeiro. Um e outro foram de um óbvio ululante, e o segundo teve tanta sutileza quanto o anterior. Mas eu falei em cinismo inalienável do grande povo. Imaginem que a imprensa inglesa farta-se de publicar charges deprimentes sobre o comportamento britânico no campeonato.
Está mundialmente reconhecida e aos berros proclamada a seguinte verdade: — havia um límpido, um cristalino, um transparente complô contra o futebol sul-americano. Brasileiros, uruguaios e argentinos estavam condenados, previamente, a um cano deslumbrante. Essa Copa, que o nosso Armando Nogueira chama de “Tacinha”, é tão indigna que aconteceu apenas isto: — nela não pôde jogar Pelé, o maior craque do futebol em todos os tempos. Sim, o crioulo foi caçado a patadas, como uma ratazana obesa. Note-se: — isso aconteceu graças à deslavada conivência da arbitragem.
Mas eu não vou citar tudo o que caracteriza o crime como tal. Por que demonstrar o que é de uma evidência estarrecedora? Mas aqui começa o nosso subdesenvolvimento, com todas as suas nuanças. O normal é que nós, paus de arara, estivéssemos vociferando contra a iniquidade. Um subdesenvolvido não pode manter a sua dignidade sem o protesto. É o protesto, repito, que o salva, que o redime e que o potencializa.
Mas leio que houve ontem, ou anteontem, uma reunião de colegas. O normal, o correto, o justo é que os presentes começassem a berrar, numa unanimidade compacta e trovejante: — “Ladrões! Ladrões!” Pois bem, e o que se viu foi uma página de Os Maias. Justiça se lhes faça: — houve duas exceções, uma a de Ricardo Serran, que arrasou a Copa, e a outra a de Armando Nogueira, que pelo menos silenciou. Mas os demais, ou quase todos, desandaram numa desenfreada adulação da Inglaterra, de sua mediocridade futebolística e da torpeza de sua arbitragem.
Então eu vi que a tragédia do subdesenvolvimento não é só a miséria ou a fome, ou as criancinhas apodrecendo. Não. Talvez seja um certo comportamento espiritual. O sujeito é roubado, ofendido, humilhado e não se reconhece nem o direito de ser vítima. Mas, senhor! No jogo Inglaterra x Uruguai, presente a rainha, o facínora Stiles dá um tapa no uruguaio. Pois sabem quem é o criminoso? É o uruguaio! Vejam vocês, o uruguaio! O mesmo Stiles dá na cara de um francês e continua maravilhosamente impune. No dia seguinte, ainda Stiles (sempre este homem fatal!) agride outro adversário, e nada lhe acontece.
Pelé foi exterminado a coices por trás, e a tal mesa-redonda não estranha, não vê nada de inusitado? O time da Argentina, antes de jogar com a Inglaterra, foi advertido e ameaçado. E essa coação miserável, deslavada não impressiona o sr. [Alberto da Gama] Malcher? O sr. Rui Porto fala em “rispidez”. Foi, por acaso, ríspido o assassinato de Pelé? E o pior vocês não sabem! No fim, levanta-se alguém, deplorando a histeria do brasileiro, que só sabe ganhar e não sabe perder.
Oh, meu Deus do céu! Virgem Santíssima! Nós já somos um povo que não faz outra coisa senão perder! Olhem a nossa cara. Reparem: — é a cara da derrota. Afinal de contas, o que é o subdesenvolvimento se não a derrota cotidiana, a humilhação de cada dia e da cada hora? E é uma ignomínia que venha alguém dizer a esse povo desesperado: — “Vá perdendo! Continue perdendo! Aprenda a perder!”
Graças a Deus, nem todos falam a linguagem do subdesenvolvimento. Muito antes da finalíssima, o meu colega Armando Nogueira, no mais puro sabor machadiano, escrevia uma crônica admirável. Nessa página profética ele respondia e esmagava, por antecipação, o que se disse na referida mesa-redonda. Sim, lá está reduzida a pó a opinião de Malcher, Rui Porto, Araújo Neto.
O Globo, 12/8/1966
(1) Título sugerido pela edição do livro A pátria em chuteiras (Companhia das Letras, 1994). A crônica foi publicada originalmente na coluna “À sombra das chuteiras imortais” sem título. (N.E.)